sábado, 2 de fevereiro de 2013

Milhares de páginas inéditas de um escritor neo-realista perseguido no Estado Novo entregues à Faculdade de Letras de Coimbra





        O espólio do escritor Joaquim Ferrer vai ser entregue à Faculdade de Letras – Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas, da Universidade de Coimbra. O acto de entrega está previsto para o próximo dia 7, quinta-feira, pelas 14h30, na Sala dos Conselhos daquela Faculdade. Na circunstância, usará da palavra o Doutor Carlos Reis, que apresentará Joaquim Ferrer e a sua obra.
A notícia, dada desta forma, até pode passar despercebida, que é como quem diz: «Mais um que não sabe onde pôr os livros!». Contudo, uma leitura mais atenta poderá, afinal, provocar outra reacção, mormente se atentarmos que estamos perante um escritor praticamente desconhecido do actual grande público, mas que se insere na mais lídima corrente do neo-realismo português, tendo sido, por isso, perseguido pela censura de Salazar.
Nasceu Joaquim Falcão Marques Ferrer (de seu nome completo) em Miranda do Corvo, a 29 de Junho de 1914; faleceu em Lisboa, a 18 de Setembro de 1994. Fez os primeiros estudos em Miranda do Corvo, os estudos secundários em Coimbra e Lisboa, e formou-se em Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Ligado sempre ao movimento literário e artístico em Coimbra, Lisboa e, posteriormente, também em Paris, São Paulo e Rio de Janeiro, residiu na Suíça durante dois anos na sua juventude, e publicou, em 1941, o seu primeiro romance, Rampagodos, com capa de António Augusto de Oliveira, onde relata a infância no Portugal rural da época. O livro foi apreendido pela censura, o que muito reduziu a sua circulação; aliás, figura actualmente no rol dos livros raros e proibidos. Publicou, em 1945, com capa de Victor Palla (um conceituado nome na ilustração gráfica), outro romance, Ilha Doida, que retrata a vida num colégio interno e sobre o qual Eduardo Lourenço viria a escrever: «É uma mistura de queirozianismo e de realismo concreto, cru e chão dos nossos neo-realistas».
A situação não era, porém, a mais adequada aos seus propósitos e ideais, pelo que, no ano seguinte (1946) decide mudar-se para França, onde desempenhou funções no consulado português em Paris, até ser dispensado em 1949, por razões políticas.
Como pintor amador, apresentou a primeira exposição de arte abstracta em Portugal na galeria do Diário de Coimbra em 1950, exposição que causou escândalo na época.
Em 1951, partiu para o Brasil em digressão com o TEUC. Não tendo regressado com a Companhia, instalou-se em São Paulo como jornalista do Estado de São Paulo, e dirigiu a revista Atlante, de promoção da cultura luso-brasileira, onde defendeu a criação de uma comunidade de estados de língua portuguesa.
Continuando a escrever e a pintar, mudou-se em 1959 para o Rio de Janeiro, onde permaneceu, até regressar definitivamente a Portugal após o 25 de Abril.
Como alguém sublinhou, ao saudar a publicação, de A Morte Segundo Estácio de Saa (Livros de Portugal, Rio de Janeiro, 1968), «vindo de longo interregno, Joaquim Ferrer regressa à literatura com uma obra lírica», que Vitorino Nemésio não hesitou em qualificar de «raro e belo testemunho do espírito urbano de hoje». Seguir-se-ão, também em poesia, Objectos Recuperados (Sociedade de Expansão Cultural, Lisboa, 1969) e Ornitorrincos (Lisboa, 1970), este último de capa assaz curiosa pelo grafismo espalhado do título, como quem pretende debicar aqui e além…
A Revolução de Abril permitiu-lhe, enfim, respirar fundo; mas não voltou a tentar publicar o que, em prosa e poesia, foi escrevendo ao longo de décadas. Permitiu-lhe, também, ser reintegrado, de modo que o vemos em Lisboa, a trabalhar, a partir de 1976, na Secretaria de Estado da Cultura, no Gabinete de Relações Culturais Externas e no Instituto Português do Livro até 1984, ano em que se aposentou por limite de idade.
Continuou, porém, a escrever; e, por isso, é um vasto espólio de inéditos, dactilografados, em diferentes estados de acabamento que ora vai ser entregue à FLUC pela família: milhares de páginas (‘mais de três metros de estante’, confidenciou-me a Doutora Rita Marnoto, que gentilmente me facultou alguns dos elementos de que me estou a servir) de poesia, um romance, algumas centenas de contos e outras narrativas breves com tópicos da vida rural portuguesa, da vida urbana no Brasil, entre outros temas variados, pensamentos, além de cadernos manuscritos e diversos documentos biográficos do autor.
Não resisto a anexar a esta nota a página dactilografada em que Joaquim Ferrer traça, em pinceladas breves, o que foi a sua vida. No fundo, aquilo que ele gostava que ficássemos a saber dele. Ficamos, no entanto, a saber muito mais, porque – por detrás do que está explícito – há um mundo implícito por desvendar. E estou certo que, nesta descoberta, muitos estudos passarão doravante a ser feitos, a partir dos escritos que nos legou.

Publicado em Cyberjornal, edição de 02-02-2013:

1 comentário:

  1. A Doutora Rita Marnoto teve a gentileza de acrescentar: «Um escritor que participou no Congresso dos Intelectuais para a Paz em Wroclaw (1948), com Alves Redol, Lopes Graça, Paul Éluard, Elio Vittorini, Picasso, Aimé Césaire, Jorge Amado, rasgando um movimento internacional de relevo».

    ResponderEliminar