quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Esta vontade de estar vivo!

            Paro, de vez em quando, e pergunto-me a mim próprio se não era melhor estar mudo e quedo, saboreando mui despreocupado os dias que me é dado viver…
Uma colega, há dias, garantia-me: «Leccionei durante anos e anos! Aposentei-me, parou». Eu, não: está-me no sangue a vontade de partilhar experiências e recordo quanto me agradava, após uma viagem no quadro do programa ERASMUS, contar logo aos meus estudantes o que aprendera. Sentia que, desta forma, eles, aos 20 a pouco anos, acabavam por ficar a saber o que eu aprendera aos 50. E era bom.
 João Lourenço Roque, catedrático de História no mesmo dia que eu (a 05-06-1991). também se aposentou. Ao contrário de mim – que continuei, depois da aposentação, a não abandonar a minha dama, a Epigrafia –, ele largou por completo as lides da História em que se especializara e rumou a Calvos, a sua remota aldeia natal, na freguesia de Sarzedas, concelho de Castelo Branco. Aí se dedica à agricultura, seguindo a norma dos clássicos – “o regresso à terra é o melhor” – e escreve crónicas para o jornal albicastrense Reconquista. Faz-me lembrar o nosso Ibne Mucana, de Alcabideche (Cascais), que, no século XI, depois de anos e anos nas cortes dos reinos de taifas, cansado dos sofisticados ambientes cortesãos, voltou para a terra natal e se dedicou a amanhar magras terras.
São as crónicas de João Roque revisitação constante de pessoas e lugares, para que se saiba: estão vivas, os lugares existem e carecem de atenção. Cada crónica, uma viagem sem rumo certo, aos ziguezagues (como ele próprio reconhece), ao sabor das memórias e das circunstâncias, corrente desenfreada – e nisso reside o seu encanto. É capaz de estar a falar de azeitonas e lembrar-se de Coimbra e do seu amor – e a gente vai por i com ele!...

Por isso deu à série – que recentemente reuniu em volume (Digressões Interiores 3,  Palimage, Coimbra, 2021) – esse nome de «digressões». Nesse, que reúne o que escreveu de 2017 a 2021, há páginas a não esquecer, porque retratam quanto todos nós passámos e sentimos: o tempo da pandemia! As reacções, os sentimentos, as dúvidas… «Digressão» é isso mesmo: passar dum assunto para o outro, sem tir-te nem guar-te, como quadro de rica policromia. E «interiores», para realçar a beleza ímpar dum interior que merece ser celebrado, cantado, mantido no seu melhor, mantido nas suas gentes!

José d’Encarnação.

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 851, 15-09-2023, p. 10

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

«A era da burrice»

            
Ilustração de José Luís Madeira ©

            A frase não é minha e cheguei a ela depois de ter recebido o excerto de um artigo de Christophe Clavé, autor que eu também desconhecia, que começa assim: 
O QI médio da população mundial, que sempre aumentou desde o pós-guerra até ao final dos anos 90, diminuiu nos últimos vinte anos. É a inversão do efeito Flynn”.
Fui ver quem era Christophe Clavé. Nascido em 1968, um dos seus livros mais conhecidos é «Les voies de la stratégie», que não trata dos meios para uma estratégia militar ou económica, mas de uma outra, muito mais complexa e sorrateira: a do empobrecimento da linguagem.
Também fui saber de James Flynn, psicólogo americano que, ao escrever, em 1982, o livro «A era da burrice», demonstrou haver um «aumento sistemático e progressivo dos resultados nos testes de inteligência». A isso se chamou o efeito de Flynn. Explica-se: o normal seria que, devido às novas potencialidades tecnológicas, o quociente médio de inteligência da população aumentasse, pelo que os testes à inteligência careciam de ser periodicamente reavaliados, para os seus resultados serem credíveis. Ora, o que ora se verifica é que se está a ir, como diz o Povo, «de cavalo para burro». Esta, a referida ‘inversão do efeito Flynn’.
Daí o progressivo empobrecimento da linguagem, desejado pelos potentados que pretendem governar o mundo, aniquilando a diversidade. O erro que Mark Bauerlein, escalpelizou no livro The Dumbest Generation, «A Geração Mais Burra» (2008), de subtítulo bem sintomático: «Como a era digital estupidifica os jovens americanos e põe em risco o nosso futuro». Hoje, as crianças de 7 ou 8 anos crescem de telemóvel na mão, quando deviam começar a ler livros!...
Agora compreendo porque é que, quando eu escrevo «dera atenção», a escrita inteligente me corrige para «será atenção». O pretérito mais-que-perfeito é areia de mais para o algoritmo! E porque é que Alice Marques me disse: «Tu usas formas verbais que já ninguém usa!».
Aí está: quanto menos tu dominares a linguagem, mais facilmente nós te dominaremos a ti! Daí a urgente necessidade de dar apoio aos falares locais e ao estudo cada vez mais afincado da língua materna.
Contra os canhões da uniformização, lutar, lutar! E nessa luta ninguém – ninguém! –  está dispensado de aprender a saber disparar os canhões!

                                                  José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 850, 1-09-2023, p. 10.

quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Um retrato do viver d’outrora

 

Não muito longe de Santa Clara-a-Nova (Almodôvar), há o sítio arqueológico Mesas do Castelinho, uma surpresa descoberta há uns anos; mas, em Santa Clara-a-Nova, guarda-se e mostra-se com orgulho o retrato do que aí foi, nas últimas décadas, a vida quotidiana do seu Povo.

 

            Sobre o sítio arqueológico, que, nos Verões mais recentes, desde 1989, mui pacientemente tem sido escavado, sob a direcção dos dois arqueólogos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, os doutores Amílcar Guerra e Carlos Fabião, muito se tem escrito e explicado.

O arranjo museológico de que recentemente foi alvo e que houve oportunidade de dar a conhecer com pompa e circunstância, no dia 5 do passado mês de Novembro de 2022, veio dar maior lustre a um notável vestígio dos finais da Idade do Ferro e primórdios da época romana, que os automobilistas, na sua pressa de irem para o Algarve, vêem anunciado na A2, mas é desvio que vão adiando, adiando...

 

Teve o sítio «ocupação ininterrupta entre os finais do século V a.C. e os inícios do século II d. C. e, novamente e depois de um longo hiato, entre os séculos IX-XI d.C.», ou seja, já na época de fortificações árabes.


Informação sobre Mesas do Castelinho e alguns dos objectos aí exumados podem ser vistos no Museu Arqueológico e Etnográfico Manuel Vicente Guerreiro, inaugurado a 8 de Agosto de 2025, no coração de Santa Clara-a-Nova, povoação do concelho de Almodôvar.

                                 

Não é esta a única instituição museológica do concelho. Porventura, uma das mais faladas (agora em fase de remodelação) será o Museu da Escrita do Sudoeste, onde se mostram as mais significativas e enigmáticas (porque ainda não decifradas) inscrições datadas da Idade do Ferro! E há ainda o Museu Severo Portela (inaugurado em 2012) e o do Medronho (2015). Este, no entanto, o de Santa Clara-a-Nova, «transporta-nos», como se diz na publicidade, «para vivências e descobertas, envolvendo emoções e é uma agradável surpresa para quem o visita».

Resulta do empenho que Manuel Vicente Guerreiro (1929-2014) teve, como particular e como autarca, em recolher, ao longo de três décadas, tudo o que se lhe afigurava de interesse para lembrar o que fora – e ainda era – a vida das gentes da sua terra. E que ora mostra através das mais de 300 peças expostas em cerca de mil metros quadrados da casa que foi a sua. O espaço, já disponibilizado para o efeito desde a década de 80 foi alvo de mui cuidada recuperação, num investimento aproximado de 375 mil euros, financiado ao abrigo do Plano de Desenvolvimento Rural (PRODER), sendo «a maior fatia suportada pela autarquia de Almodôvar». O objectivo: «preservar a história local, num misto de contemporaneidade, design e tecnologia».
Deve-se à empresa Glorybox, de Viseu, o excelente projecto museológico, que teve, aqui, a eficiente colaboração da M&A Digital no âmbito da aplicação interativa sobre algumas das principais atrações do Museu: o alambique, os moinhos de ventos e de água, a nora, o palheiro e o vinho de talha. Ainda que Almodôvar tenha o Museu do Medronho (merece ele igualmente uma visita – lá iremos!) a importância do aproveitamento deste fruto salienta-se também aqui, no museu de Santa Clara-a-Nova.
Um museu vive dos objectos que integram o seu acervo, bem no sabemos; contudo, não é menos importante – eu ia a dizer ‘fundamental’! – o pessoal que o serve. Nesta caso, do Museu Manuel Vicente Guerreiro, poder-se-á dizer que a alma-mater é quem aí nos recebe com admirável boa disposição e deixando transparecer por completo todo o encantamento que tem em mostrar essas antigualhas que tanto lhe dizem acerca da vida dos seus avós. Dina Silva, a funcionária do Museu: técnica dos Serviços de Museologia da CMA), bem merece o nosso maior aplauso – no voto de que jamais deixe esmorecer o seu cativante entusiasmo.
E percorremos, de admiração em admiração, as várias salas que reconstituem vivências do Povo pelos meados do século passado.
Em cada uma se sente a voz d’antanho, porque temos a sensação clara que todos esses objectos, um dia, muitos dias, tiveram vida e até compartilharam alegrias, mágoas, tristezas, festas de aniversário e convívio: a barbearia, a mercearia, a taberna, a casa do povo… Enfim, «as formas de viver na planície e na serra alentejana, as tradições, profissões e atividades rurais»…

Calhaus servem de pesos para a balança decimal
O alambique para o medronho
O quarto de dormir, com o bacamarte e o crucifixo   
A mesa de tábuas

A chaminé com os enchidos pendurados

O forno de cozer pão 
 
Veja-se o recanto onde se mostra como simples calhaus rolados podiam servir de pesos a usar na balança decimal; admire-se a bem sugestiva reconstituição do alambique para o medronho; atente-se no quarto com a cama de ferro, a lanterna na mesinha de cabeceira, o crucifixo e o bacamarte na parede à mão de semear! Quarto que era também o lugar das abluções matinais e onde parcamente se comia na mesa de tábuas. Ao lado, a chaminé, de grande chupão, onde, penduradas, coravam linguiças, chouriças e paios. Depois, o forno de cozer pão, com as alfaias correspondentes…
Apetece ficar por aqui – perpassa-nos o aconchego, pobre sem dúvida, mas autêntico, de vidas vividas, de pão amiúde amassado com lágrimas e suor!

Lições!

                                               José d’Encarnação

Publicado em Duas Linhas, 28-08-2023: https://duaslinhas.pt/2023/08/retratos-da-vida-de-antigamente/