segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Carta Gastronómica de Viseu

            Houve um tempo em que cada município fazia questão em ter a sua Carta Arqueológica. No âmbito dos planos directores municipais, havia necessidade de se identificarem no terreno os vestígios arqueológicos dignos de serem devidamente salvaguardados perante a sugadora vontade de urbanização. Surpreende, pois, a iniciativa de se elaborar um carta gastronómica, com a mesma intenção, aliás: salvaguardar – perante a sugadora vontade de ser diferente, de ser (como é que se diz?) gourmet (ora toma!) – as iguarias tradicionais; afinal, aquelas que melhor se adequam às características físicas, geológicas e climáticas fr cada região.
            Dir-se-á que é falar exagerado esse da adequação às características regionais. Não é, pese muito embora aos chefs e às suas estrelas Michelin. Se até aquela conhecida empresa de hambúrgueres está a adaptar os condimentos ao paladar regional!... 
            Muito oportuna, pois, a publicação, pelo respectivo município, da Carta Gastronómica de Viseu, neste ano de 2022. Obra de monta e de prestígio, digna de figurar em lugar de destaque numa sala de visitas e, ainda mais, à mão[JE1]  de semear da dona de casa cozinheira que se preze. 
            Só um etnógrafo dos quatro costados – senhor de muito saber e arte! – como é o Dr. Alberto Correia é que ousaria propor, e obter aprovação camarária para a elaboração de uma obra deste precioso quilate. Investigou (e muito!), redigiu (com a prosa tersa que lhe conhecemos) e coordenou a edição, bem secundado pelas invulgarmente bonitas fotografias de José Alfredo. Aliás, uma colaboração, esta, que muito tem enriquecido Viseu no quadro das suas publicações de índole cultural.
            Sim, que gastronomia é cultura – e da boa!
          Mais de 330 páginas, servidas por rija encadernação de luxo e ilustradas por fotos de antologia.
            Escreve, primeiro, o etnógrafo, a contar do território viseense, seus recursos e gentes, as matérias-primas… Ele são as actas da Câmara, os livros de contas do Seminário, o testemunho das Memórias Paroquiais, o que se comia até ao século XX, como e quando, os artefactos usados… A História vista através dos comeres!
        Depois, o receituário: das refeições autónomas, dos complementos de refeição, a doçaria tradicional… O pão quotidiano (aquele de que se fala no Pai Nosso) e o pão cerimonial e festivo, a fogaça pão de oferenda ritual.
            Só visto, folheado e lido, Amigos – que, contado, ninguém acredita!

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 832, 01-11-2022, p. 12.

No meio da multidão


            Sistemas de vigilância permitem identificar com inimaginável grau de nitidez um indivíduo a quilómetros de distância no meio duma multidão.
Nunca o suspeitou George Orwell. O seu ‘Grande Irmão’ tal capacidade não tinha; por isso, pôs Winston e Júlia, os protagonistas do romance 1984, a encontrarem-se no meio de um comício. Assim passariam inteiramente despercebidos.
Dessa mesma ilusão se fez eco uma das perguntas da série anedótica «Elefante», popular há umas décadas: «Como é que um elefante passa despercebido no Rossio?». «Em manada» – era a resposta.
Numa das saborosas crónicas do jornal Reconquista, de Castelo Branco, com que regularmente nos brinda, conta João Lourenço Roque como é deleitoso passatempo do «Portador de BI definitivo» ter «lugar cativo em bancos de jardim, mirando guloso e embasbacado as “gajas boas” que passam» (Digressões Interiores, Coimbra, 2011, p. 120).
Do ancião e não só!
E se substituirmos ‘banco de jardim’ por ‘banco de corredor de uma grande superfície’, mais nos aproximaremos desse passar despercebido no meio da multidão, habitualmente apressada e entretida com o telemóvel.
Para ele, porém, o tal ‘portador de BI definitivo’, ver gente rejuvenesce-o e, se ainda gozar de boa vista e tiver aguçado espírito de observação, deliciar-se-á com a extravagância dos penteados, o exotismo das tatuagens (as visíveis e as invisíveis imaginadas…), aquelas calças esfarrapadas, o difícil equilíbrio da senhora em milimétricos saltos altos... E mesmo que a cena se repita à exaustão, imaginará o mundo bem diversificado das mensagens de telemóvel que os transeuntes recebem ou velozmente digitam mesmo em andamento.
Não o deixarão indiferente os contrastes: o senhor de ar preocupado, taciturno, a correr; a senhora a dar ordens à secretária ou à empregada  doméstica, enquanto ajeita o cabelo; o ancião, como ele, apoiado em improvisada bengala de cana-da-índia; o casal a empurrar, vaidoso, o carrinho de gémeos…
Ousará, por vezes, querer penetrar no âmago dos pensamentos Põe-se a adivinhá-los pelos rostos. E sentirá pena por, de dia para dia, o sorriso andar cada vez mais arredio, por mais tardes que ali passe a olhar. E seria tão benéfico esse suave movimentar dos músculos em todas as faces!...
 
                                    José d’Encarnação

        Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 831, 15-10-2022, p. 12.

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Deixar-se ir...

            – Desculpa, Zé! Deixei-me dormir!
            O despertador tocou, calei-o e continuei a sonhar. Acordei 40 minutos depois, num sobressalto. Deixara-me dormir e tudo se atrasara por isso.

E, enquanto fazia as abluções matinais, dei comigo a pensar na força deste verbo na sua forma reflexa: deixar-se… E mesmo na sua voz activa: deixa estar!
Lembrei-me do fado de Amália, «Lágrima»: “Estendo o meu xaile e deixo-me adormecer».
Lembrei-me das inúmeras vezes em que meu pai falava de minha avó materna: «Deixa que eu faço, deixa que eu ponho» – ela é que gostava de fazer e não queria que os outros se incomodassem…
Lembrei-me da canção dos Beatles, ‘Let it be’, deixa que isso aconteça. E de como o verbo to let, em inglês, também é muito usado.
Lembrei-me do dia em que ouvi dois numa zanga feroz: «Deixa-me da mão, não me chateies!».
Lembrei-me do jogo do rapa da minha meninice: «Rapa, tira, deixa, põe!». Que, em italiano, é o «lascia o raddoppia», «ou desistes ou duplicas».
Não gostei deste sinónimo ‘desistir’. Em jeito de deixar cair os braços, abandonar o projecto, sucumbir perante a dificuldade surgida. Qual náufrago que pensa ser impotente já e não agarra nas últimas forças para sobreviver. Não gosto.
Sim, hoje deixei-me dormir. Quero, porém, que, conscientemente, não volte a acontecer!

                                               José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 311, 20-10-2022, p. 13. 

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

A corrida

             – Ora está tudo nos conformes. Antevê-se uma rota bem serena. Ficas aqui aos comandos, que eu vou à casa-de-banho e depois quero ir dar uma beijoca à Madalena.

            Esqueceram-se de desligar o som, todos os passageiros ouviram, sorriram e… a Madalena, chefe-de-cabine, desatou a correr para o «cockpit». A meio, a senhora idosa sentada do lado da coxia pôs-lhe o braço à frente:
            – Não precisa de correr, Amiga! Ele ainda vai primeiro à casa-de-banho, não ouviu?
            Curioso. É nos aviões, que tanto encurtam as distâncias, que se acaba por ter mais pressa. Antes de os motores pararem, já uma série de passageiros se levantou. Desnecessariamente. Aliás, houve até um publicitário que bem aproveitou a deixa:
«Já viu que os motores ainda não pararam e já há muita gente de pé? Para quê tanta pressa? Uísque X… para saborear sem pressas!».
Esquece-se a vetusta sabedoria popular: «Devagar se vai ao longe». Tudo se tem de resolver no momento!
Acho piada a quem anda sempre de auricular enfiado na orelha, para não deixar de atender logo a chamada.

¿E quando o cidadão está todo ensaboado na banheira, toca o telefone, vem a atrapalhação, onde é que eu deixei o telefone, e onde é que está a toalha?… Se não tem cuidado, arrisca-se a escorregar, lá torce um pé e… entretanto a chamada caiu! E estou com as mãos molhadas para saber quem é que me telefonou. Que chatice! Bolas, lá me escorregou o telemóvel! Sorte que não caiu na água, mas no chão. Compreende-se bem que a frase não foi bem essa «lá me escorregou…»; a palavra certa feminina, tinha de ser dita, para afugentar agoiros. Mesmo que o ambiente fosse, no momento, bem cheiroso, plenamente ao oposto do que a palavra insinuara. Que chatice!
Chatice nenhuma, amigo! Nada de pensamentos negativos! Primeiro, não se leva o telemóvel para a casa-de-banho; depois, o banho precisa de ser reconfortante, não é apenas dar umas lambuzadelas e já está! Portanto, os afazeres ou os amigos que esperem, há tempo de os atender. Como há dias me lembrava o Lampreia, «Há tempo para tudo, já lá diz a Bíblia!».
E é verdade!

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 830, 01-10-2022, p. 12.

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

A eloquência de um epitáfio singelo

Tantas são as placas, as cruzes, as flores artificiais ou já emurchecidas, o ambiente envolto em tal tristura que nos apetece é passar rápido, sem ligar importância a nada. Um cemitério constitui, no entanto, fonte singular de informação.

Verdadeira, esta informação.
A maioria dos epitáfios actuais obedece ao esquema convencional: nome do defunto, datas de nascimento e morte, identificação genérica de quem de tudo tratou e as palavras usuais: eterna saudade… É raro atentar na decoração, até porque segue habitualmente a estética vigente no local.
E está tudo dito.
Caso se deseje saber mais, há o registo na secretaria, o contacto do responsável pela campa, a certidão de óbito…
Perguntar-se-á, por isso, que interesse haverá em pegar numa epitáfio romano e querer contar uma história a partir daí. Questão assaz pertinente!

O epitáfio de Quintila
            Mostra-se no Museu Rainha D. Leonor, de Beja, com o nº de inventário B-35, uma placa de mármore do tipo Estremoz/Vila Viçosa, de 39,5 x 47 x 7 cm, encontrada a 13 de Janeiro de 1867, na Herdade de Mesão Frio (freguesia de S. Matias, concelho de Beja).
Há, no jornal «O Bejense» do dia 16 seguinte (nº 321), notícia pormenorizada do cemitério romano então identificado; e, na edição de 4 de Março de 1893 (nº 1678), dá-se conta da carta com que o Conde da Esperança, proprietário da herdade, fez acompanhar a oferta desse achado à Câmara Municipal. Deu-se a descoberta «quando se lavrava uma das folhas da herdade. Cobria um túmulo de tijolo e, em seguida a este, apareceram mais 19, mas sem inscrição. Todas as ossadas, ao receberem ar, se desfizeram e os lacrimatórios, de vidro preto, e alguns do tamanho de garrafas de quartilho foram, infelizmente, quebrados pelos moços de lavoura».
É a inscrição o epitáfio de uma senhora romana, Quintila de seu nome. E é sobre o que nela se diz que nos vamos debruçar. Não, aquiete-se amigo leitor, nada há de fúnebre aqui. Se o houvera, acha que valeria a pena, dois milénios volvidos, interessarmo-nos por ele? De tristezas temos já dose bastante com o pão de cada dia!...
    Que diz, então, o epitáfio, assim tão de especial? Traduzimos do latim:
 
                                           

            Aqui jaz Júlia Quintila, filha de Quinto, natural de Évora, de 42 anos. Que a terra te seja leve. Quinto Petrónio (?) Materno (?) à mãe.

            Júlia Quintila tem dois nomes: o da família a que pertence – Iulia (abundam os Júlios na população de Beja, ou não fora a cidade chamada Pax Iulia); Quintilla era o nome que, no seio da família, a individualizava. Apetece-nos pensar que poderia ter sido a 5ª no rancho de filhotes de seus pais e que o nome de Quintilla (e não Quinta) lhe terá sido dado, qual diminutivo de ternura. Não nos esqueçamos, todavia, que o pai se chamava Quintus e que, por isso, também daí poderia o seu nome ter derivado!
Mas… a seguir vem outra informação, que não é frequente: a da naturalidade! Não causa admiração este cuidado por parte do dedicante. Abundam os Júlios em Beja e também os havia em Évora, cidade que igualmente tinha Iulia no seu nome romano: Liberalitas Iulia Ebora! Importava, pois, distinguir.
            Raciocinando à nossa moda – e talvez não estejamos fora de razão! – será que, j+á então, haveria certa rivalidade entre as duas cidades? Sabemos que, pelos finais do século II, primórdios do III, ´Évora lograra incorporar gente distinta, inclusive dos Júlios, senadores! E Pax Iulia continuara a ter primordialmente gente dos negócios, com o seu cortejo de escravos e libertos. Essa, sem dúvida, a razão por que Quintila seria conhecida como «a eborense»!

A idade
            Não há na pedra a menor informação cronológica. A morte levou Quintila quando ela tinha 42 anos; não se sabe, porém, quando é que isso aconteceu. O tempo circunstancial não interessa; o da pessoa é que conta; e o epitáfio é para sempre! Não estamos a falar agora de Quintila, como se ela estivesse presente? Aliás, que se escreveu no final? «Aqui jaz»! No presente do indicativo. E assim se compreende melhor que, ao ler o escrito (e sabia-se o que significavam essas siglas…), o passante, conscientemente ou não, esteja a dialogar com a defunta, a quem trata por tu, como se de há muito a conhecera e como, atente-se bem, Quintila ali estivesse perenemente presente, com a idade em que a morte a viera buscar.
 
O dedicante
            O dedicante está identificado por duas siglas e o seu nome próprio saiu incompleto. Por motivo da falta de espaço, dir-se-á. Está certo. Importa, todavia, esclarecer que há vontades a cumprir e que, se assim se identificou, foi porque quis; se lhe aprouvera ter maior destaque, escolhia uma pedra maior! Preferiu assim – e nós que nos amanhemos na adivinhação!
Ele é Q(uintus), não há dúvida, trata-se de um primeiro nome muito comum e que foi também o nome do avô. Já P, a indicar o nome de família, pode ser, como se supôs, Petrónio. Sabemos que houve um Quinto Petrónio Materno que foi duúnviro da cidade e é aliciante pensar que poderá ser ele mesmo o referido aqui e que, também por isso, por ser conhecido, haja optado por uma identificação sóbria…
Quanto à possibilidade de Mater representar a abreviatura de Maternus, crê-se não suscitar dúvidas. E porque Quintila era a sua mãe (expressamente o indica no fim do epitáfio) e é ele o dedicante, porventura filho único ou o primogénito que chamou a si esse piedoso encargo, sensibiliza-nos pensar ter sido esse nome escolhido por à mãe o ter unido, em vida, uma afeição especial.
Uma afeição a perdurar para além da morte e de que, hoje, somos testemunhas!       

                                                                      José d’Encarnação

Publicado em Diário do Alentejo [Beja] nº 2110, 30-09-2022, p. 18.