Tantas são as placas, as cruzes, as flores artificiais ou já emurchecidas, o ambiente envolto em tal tristura que nos apetece é passar rápido, sem ligar importância a nada. Um cemitério constitui, no entanto, fonte singular de informação.
Verdadeira, esta
informação.
A maioria dos epitáfios
actuais obedece ao esquema convencional: nome do defunto, datas de nascimento e
morte, identificação genérica de quem de tudo tratou e as palavras usuais: eterna
saudade… É raro atentar na decoração, até porque segue habitualmente a estética
vigente no local.
E está tudo
dito.
Caso se deseje
saber mais, há o registo na secretaria, o contacto do responsável pela campa, a
certidão de óbito…
Perguntar-se-á,
por isso, que interesse haverá em pegar numa epitáfio romano e querer contar uma
história a partir daí. Questão assaz pertinente!
O epitáfio de Quintila
Mostra-se no Museu Rainha D. Leonor, de Beja, com o
nº de inventário B-35, uma placa de mármore do tipo Estremoz/Vila Viçosa, de 39,5
x 47 x 7 cm, encontrada a 13 de Janeiro de 1867, na Herdade de Mesão Frio (freguesia
de S. Matias, concelho de Beja).
Há, no jornal
«O Bejense» do dia 16 seguinte (nº 321), notícia pormenorizada do cemitério
romano então identificado; e, na edição de 4 de Março de 1893 (nº 1678), dá-se
conta da carta com que o Conde da Esperança, proprietário da herdade, fez acompanhar
a oferta desse achado à Câmara Municipal. Deu-se a descoberta «quando se lavrava
uma das folhas da herdade. Cobria um túmulo de tijolo e, em seguida a este, apareceram
mais 19, mas sem inscrição. Todas as ossadas, ao receberem ar, se desfizeram e
os lacrimatórios, de vidro preto, e alguns do tamanho de garrafas de quartilho foram,
infelizmente, quebrados pelos moços de lavoura».
É a inscrição
o epitáfio de uma senhora romana, Quintila de seu nome. E é sobre o que nela se
diz que nos vamos debruçar. Não, aquiete-se amigo leitor, nada há de fúnebre
aqui. Se o houvera, acha que valeria a pena, dois milénios volvidos, interessarmo-nos
por ele? De tristezas temos já dose bastante com o pão de cada dia!...
Que
diz, então, o epitáfio, assim tão de especial? Traduzimos do latim:
Aqui jaz Júlia Quintila, filha de Quinto, natural de Évora, de 42 anos. Que a terra te seja leve. Quinto Petrónio (?) Materno (?) à mãe.
Júlia Quintila tem dois nomes: o da família a que pertence
– Iulia (abundam os Júlios na população de Beja, ou não fora a
cidade chamada Pax Iulia); Quintilla era o nome que, no seio da família,
a individualizava. Apetece-nos pensar que poderia ter sido a 5ª no rancho de
filhotes de seus pais e que o nome de Quintilla (e não Quinta)
lhe terá sido dado, qual diminutivo de ternura. Não nos esqueçamos, todavia, que
o pai se chamava Quintus e que, por isso, também daí poderia o seu nome
ter derivado!
Mas… a seguir
vem outra informação, que não é frequente: a da naturalidade! Não causa admiração
este cuidado por parte do dedicante. Abundam os Júlios em Beja e também os
havia em Évora, cidade que igualmente tinha Iulia no seu nome romano: Liberalitas
Iulia Ebora! Importava, pois, distinguir.
Raciocinando
à nossa moda – e talvez não estejamos fora de razão! – será que, j+á então, haveria
certa rivalidade entre as duas cidades? Sabemos que, pelos finais do século II,
primórdios do III, ´Évora lograra incorporar gente distinta, inclusive dos Júlios,
senadores! E Pax Iulia continuara a ter primordialmente gente dos
negócios, com o seu cortejo de escravos e libertos. Essa, sem dúvida, a razão
por que Quintila seria conhecida como «a eborense»!
A idade
Não há na pedra a menor informação cronológica. A
morte levou Quintila quando ela tinha 42 anos; não se sabe, porém, quando é que
isso aconteceu. O tempo circunstancial não interessa; o da pessoa é que conta;
e o epitáfio é para sempre! Não estamos a falar agora de Quintila, como se ela estivesse
presente? Aliás, que se escreveu no final? «Aqui jaz»! No presente do
indicativo. E assim se compreende melhor que, ao ler o escrito (e sabia-se o que
significavam essas siglas…), o passante, conscientemente ou não, esteja a dialogar
com a defunta, a quem trata por tu, como se de há muito a conhecera e como,
atente-se bem, Quintila ali estivesse perenemente presente, com a idade em que a
morte a viera buscar.
O dedicante
O dedicante está identificado por duas siglas e o seu
nome próprio saiu incompleto. Por motivo da falta de espaço, dir-se-á. Está
certo. Importa, todavia, esclarecer que há vontades a cumprir e que, se assim
se identificou, foi porque quis; se lhe aprouvera ter maior destaque, escolhia
uma pedra maior! Preferiu assim – e nós que nos amanhemos na adivinhação!
Ele é Q(uintus),
não há dúvida, trata-se de um primeiro nome muito comum e que foi também o nome
do avô. Já P, a indicar o nome de família, pode ser, como se supôs, Petrónio. Sabemos
que houve um Quinto Petrónio Materno que foi duúnviro da cidade e é aliciante
pensar que poderá ser ele mesmo o referido aqui e que, também por isso, por ser
conhecido, haja optado por uma identificação sóbria…
Quanto à possibilidade de Mater
representar a abreviatura de Maternus, crê-se não suscitar dúvidas.
E porque Quintila era a sua mãe (expressamente o indica no fim do epitáfio) e é
ele o dedicante, porventura filho único ou o primogénito que chamou a si esse
piedoso encargo, sensibiliza-nos pensar ter sido esse nome escolhido por à mãe
o ter unido, em vida, uma afeição especial.
Uma afeição a perdurar para além da
morte e de que, hoje, somos testemunhas!
José d’Encarnação
Publicado em Diário do Alentejo [Beja] nº 2110, 30-09-2022, p. 18.
Quando há dias alguém me falava de dois filhos, um deles (uma) hostilizando brandamente a mãe, muito me comovia o facto de o outro filho, primogénito, nunca se esquecer dela mesmo quando aparentemente distante. Aqui temos como Quintus eterniza o nome e a identidade (quase anónimos) de uma mãe que muito prezava. De tal modo que lhe atribuía a origem de maior nobreza (Évora) e que tantos séculos depois ainda é falada pelos que lêem o epitáfio.
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