segunda-feira, 3 de outubro de 2022

A eloquência de um epitáfio singelo

Tantas são as placas, as cruzes, as flores artificiais ou já emurchecidas, o ambiente envolto em tal tristura que nos apetece é passar rápido, sem ligar importância a nada. Um cemitério constitui, no entanto, fonte singular de informação.

Verdadeira, esta informação.
A maioria dos epitáfios actuais obedece ao esquema convencional: nome do defunto, datas de nascimento e morte, identificação genérica de quem de tudo tratou e as palavras usuais: eterna saudade… É raro atentar na decoração, até porque segue habitualmente a estética vigente no local.
E está tudo dito.
Caso se deseje saber mais, há o registo na secretaria, o contacto do responsável pela campa, a certidão de óbito…
Perguntar-se-á, por isso, que interesse haverá em pegar numa epitáfio romano e querer contar uma história a partir daí. Questão assaz pertinente!

O epitáfio de Quintila
            Mostra-se no Museu Rainha D. Leonor, de Beja, com o nº de inventário B-35, uma placa de mármore do tipo Estremoz/Vila Viçosa, de 39,5 x 47 x 7 cm, encontrada a 13 de Janeiro de 1867, na Herdade de Mesão Frio (freguesia de S. Matias, concelho de Beja).
Há, no jornal «O Bejense» do dia 16 seguinte (nº 321), notícia pormenorizada do cemitério romano então identificado; e, na edição de 4 de Março de 1893 (nº 1678), dá-se conta da carta com que o Conde da Esperança, proprietário da herdade, fez acompanhar a oferta desse achado à Câmara Municipal. Deu-se a descoberta «quando se lavrava uma das folhas da herdade. Cobria um túmulo de tijolo e, em seguida a este, apareceram mais 19, mas sem inscrição. Todas as ossadas, ao receberem ar, se desfizeram e os lacrimatórios, de vidro preto, e alguns do tamanho de garrafas de quartilho foram, infelizmente, quebrados pelos moços de lavoura».
É a inscrição o epitáfio de uma senhora romana, Quintila de seu nome. E é sobre o que nela se diz que nos vamos debruçar. Não, aquiete-se amigo leitor, nada há de fúnebre aqui. Se o houvera, acha que valeria a pena, dois milénios volvidos, interessarmo-nos por ele? De tristezas temos já dose bastante com o pão de cada dia!...
    Que diz, então, o epitáfio, assim tão de especial? Traduzimos do latim:
 
                                           

            Aqui jaz Júlia Quintila, filha de Quinto, natural de Évora, de 42 anos. Que a terra te seja leve. Quinto Petrónio (?) Materno (?) à mãe.

            Júlia Quintila tem dois nomes: o da família a que pertence – Iulia (abundam os Júlios na população de Beja, ou não fora a cidade chamada Pax Iulia); Quintilla era o nome que, no seio da família, a individualizava. Apetece-nos pensar que poderia ter sido a 5ª no rancho de filhotes de seus pais e que o nome de Quintilla (e não Quinta) lhe terá sido dado, qual diminutivo de ternura. Não nos esqueçamos, todavia, que o pai se chamava Quintus e que, por isso, também daí poderia o seu nome ter derivado!
Mas… a seguir vem outra informação, que não é frequente: a da naturalidade! Não causa admiração este cuidado por parte do dedicante. Abundam os Júlios em Beja e também os havia em Évora, cidade que igualmente tinha Iulia no seu nome romano: Liberalitas Iulia Ebora! Importava, pois, distinguir.
            Raciocinando à nossa moda – e talvez não estejamos fora de razão! – será que, j+á então, haveria certa rivalidade entre as duas cidades? Sabemos que, pelos finais do século II, primórdios do III, ´Évora lograra incorporar gente distinta, inclusive dos Júlios, senadores! E Pax Iulia continuara a ter primordialmente gente dos negócios, com o seu cortejo de escravos e libertos. Essa, sem dúvida, a razão por que Quintila seria conhecida como «a eborense»!

A idade
            Não há na pedra a menor informação cronológica. A morte levou Quintila quando ela tinha 42 anos; não se sabe, porém, quando é que isso aconteceu. O tempo circunstancial não interessa; o da pessoa é que conta; e o epitáfio é para sempre! Não estamos a falar agora de Quintila, como se ela estivesse presente? Aliás, que se escreveu no final? «Aqui jaz»! No presente do indicativo. E assim se compreende melhor que, ao ler o escrito (e sabia-se o que significavam essas siglas…), o passante, conscientemente ou não, esteja a dialogar com a defunta, a quem trata por tu, como se de há muito a conhecera e como, atente-se bem, Quintila ali estivesse perenemente presente, com a idade em que a morte a viera buscar.
 
O dedicante
            O dedicante está identificado por duas siglas e o seu nome próprio saiu incompleto. Por motivo da falta de espaço, dir-se-á. Está certo. Importa, todavia, esclarecer que há vontades a cumprir e que, se assim se identificou, foi porque quis; se lhe aprouvera ter maior destaque, escolhia uma pedra maior! Preferiu assim – e nós que nos amanhemos na adivinhação!
Ele é Q(uintus), não há dúvida, trata-se de um primeiro nome muito comum e que foi também o nome do avô. Já P, a indicar o nome de família, pode ser, como se supôs, Petrónio. Sabemos que houve um Quinto Petrónio Materno que foi duúnviro da cidade e é aliciante pensar que poderá ser ele mesmo o referido aqui e que, também por isso, por ser conhecido, haja optado por uma identificação sóbria…
Quanto à possibilidade de Mater representar a abreviatura de Maternus, crê-se não suscitar dúvidas. E porque Quintila era a sua mãe (expressamente o indica no fim do epitáfio) e é ele o dedicante, porventura filho único ou o primogénito que chamou a si esse piedoso encargo, sensibiliza-nos pensar ter sido esse nome escolhido por à mãe o ter unido, em vida, uma afeição especial.
Uma afeição a perdurar para além da morte e de que, hoje, somos testemunhas!       

                                                                      José d’Encarnação

Publicado em Diário do Alentejo [Beja] nº 2110, 30-09-2022, p. 18.

 

1 comentário:

  1. Quando há dias alguém me falava de dois filhos, um deles (uma) hostilizando brandamente a mãe, muito me comovia o facto de o outro filho, primogénito, nunca se esquecer dela mesmo quando aparentemente distante. Aqui temos como Quintus eterniza o nome e a identidade (quase anónimos) de uma mãe que muito prezava. De tal modo que lhe atribuía a origem de maior nobreza (Évora) e que tantos séculos depois ainda é falada pelos que lêem o epitáfio.

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