sexta-feira, 30 de junho de 2023

A espinha pensadora

            Estavam-me a saber mesmo bem estas primeiras sardinhitas assadas do ano. Recomendáramos ao cozinheiro que lhes deixasse a camisa a estalar, de modo a podermos tirá-la de uma só vez e a polpa ficava assim bem apetitosa por baixo. Via-se que, desta feita, o senhor Alberto se esmerara na escolha e aí as tínhamos ‘vivinhas da costa’, como outrora as varinas pregoavam.

Meu pai, que fora arrieiro e, madrugada afora, ia do Barrocal, escarranchado no macho até à praça de Olhão, conhecia bem quando a sardinha era fresca; garreava, por vezes, com a Carolina ou a ‘menina’ Sara, se as guelras não estavam lá a preceito – e, assim, comíamos sempre daquelas que untavam o pão.
Era sagrado e é ainda hoje: a sardinha quere-se sobre boa fatia de pão, que no final bem gulosamente apetece saborear. Uns goles de sangria, preparada a preceito pelo Zé Carlos, uma salada mista com pimentinho assado a rigor, uns fios de bom azeite sobre as batatas cozidas e, num dar graças a Deus, se estava a passar o repasto, sem até me importar com as finas espinhas que protegiam as vísceras e que mui cuidadosamente eu procurava retirar, até porque aquelas ovas ali escondidas me iam saber um regalo...
            Houve, porém, uma das espinhas que não quis passar despercebida: cravou-se, insolente, na gengiva e lá a consegui, com todo o cuidado, retirar. Caiu-me no guardanapo azul e eu fiquei a olhá-la, branquinha, branquinha, miniatural, teria um micrómetro? À espessura de um milímetro não chegaria, decerto. E eu fiquei a olhá-la. Nunca me apercebera da perfeição da sua linha. Nunca admirara a sua real beleza, porque sempre a vira incómoda, chata, que nos estorva a comer…
E dei comigo a pensar: quantas dezenas, se calhar centenas e milhares de espinhas haveria numa sardinha. E todas assim perfeitinhas, no lugar certo, na função correcta. A rede matara-lhe a função; ela, porém, ali postada, queda, na superfície azul, branca, fiozinho quase imperceptível, foi para mim, nesse dia, uma lição. Antes de os pratos chegarem, entre uma azeitona temperada e uma dentada no pão trigueiro, dera para deitarmos contas à vida e falar dos doentes da família, das aldrabices correntes, do muito que teimava em infernizar-nos o dia a dia… E a Maria, de repente, já a refeição ia a mais de meio, viu-me assim pensativo: «Está tudo bem?». Acordei: «Está, está. Foi uma espinha que caiu aqui no azul do guardanapo!».

                                                                                   José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 847, 01-07-2023, p. 10.

 

quinta-feira, 29 de junho de 2023

Um letreiro em língua por decifrar

    
        A laje de grauvaque com letras recolhida no vale da Ribeira da Venda, a norte da vila de Arronches (distrito de Portalegre, Alto Alentejo, Portugal), em 2008, na propriedade designada “Monte do Coelho” constitui um daqueles documentos a que pode atribuir-se valioso interesse histórico. De facto, redigido o texto numa língua que, por facilidade, se tem designado de «lusitana», elevou para cinco o número desses testemunhos singulares.

            A questão é a seguinte, bem compreensível: quando os Romanos conquistaram a Lusitânia, os povos autóctones tinham nomes próprios, individuais, e veneravam divindades próprias que invocavam – como nós, hoje, aos Santos e ao próprio Deus – nas mais variadas circunstâncias do quotidiano. Falavam entre si e escreviam. Prova disso são, por exemplo, as estelas, que consideramos funerárias, achadas no Sudoeste hispânico. Estelas que ostentam signos, para nós, por enquanto, indecifrados, pois não sabemos se são fonéticos (cada signo, um som), ideográficos (cada signo, uma ideia, uma abstracção ou um símbolo) ou pictográficos (por exemplo, o Sol ser representado por um círculo com raios).

            Parece-nos fácil de compreender o fascínio que terá sido para os indígenas verem os primeiros romanos, com os quais haviam entrado em contacto, mandarem gravar epitáfios em homenagem aos seus mortos ou altares com letras em honra dos seus deuses. E tê-los-ão querido imitar, inclusive latinizando – mais ou menos acertadamente – os antropónimos e os teónimos, ou seja, os nomes das pessoas e os das divindades. A sintaxe (ligação entre as palavras) e a morfologia (a mudança de terminação da palavra consoante a sua função na frase) terão sido, sem dúvida, bem difíceis de entender a princípio.

            Ora, a inscrição de Arronches mostra isso mesmo: a tentativa dos indígenas de redigirem um texto à maneira romana, não estando ainda aptos para o fazer.

Como se conhecem mais testemunhos em que essa tentativa está bem patente, a comparação entre esses textos permitiu que ficássemos com uma ideia – ainda que aproximada – da mensagem que então nos quiseram transmitir, perpetuada numa gravação em pedra. Acresce que, na realidade, algumas das palavras aqui exaradas (oilam, por exemplo, ‘ovelha’) , nomeadamente as das divindades, já se haviam encontrado noutras epígrafes, pelo que a tarefa, embora não resolvida por completo, nos surgiu facilitada.

Assim, em estreita colaboração com três professores de História da Universidade de Évora – André Carneiro, Jorge Oliveira e Cláudia Teixeira –fez-se um primeiro estudo, o mais exaustivo possível, do monumento, estudo que está acessível em http://hdl.handle.net/10316/10754.

Pode, pois, afirmar-se, em síntese que o texto documenta o sacrifício de animais, designadamente de dez ovelhas, a divindades indígenas – Banda, Reva, Munis, Broeneia… – cujos nomes se fazem acompanhar de epítetos, um dos quais repetido com grafias diferentes (Haracui, Aharacui, Harase), passível de relacionar-se com o topónimo actual, Arronches, na medida em que às divindades se atribuíam, amiúde, características locais, como hoje acontece, nomeadamente com os nomes de Nossa Senhora.

Numa segunda parte, os três dedicantes, que poderão identificar-se como criadores de ovelhas, suplicam às divindades que lhes aceitem os sacrifícios.

            Considera-se, por conseguinte, muito viável a hipótese de relacionar esta e as outras epígrafes em língua lusitana – de Lamas de Moledo e Cabeço das Fráguas – com as rotas da transumância logo nos primórdios da dominação romana. Em locais estratégicos para a pausa na caminhada, aproveitava-se o ensejo para, de novo e de modo bem concreto e duradoiro, gravar na pedra o memorial dos sacrifícios feitos para obter as graças divinas.

Inscrição de Cabeço das Fráguas,

Penedo de Lamas de MoledO

            Por curiosidade, transcreve-se a primeira leitura que foi feita, para melhor se perceber do carácter ainda quase exotérico de que essa mensagem se revestia:

 

[- - - - - - - -] XX • OILAM • ERBAM

HARASE • OILA • X • BROENEIAE • H

OILA • X • REVE AHARACVI • T • AV [...]

IEATE • X • BANDI HARACVI AV [....]

5 MVNITIE CARIA CANTIBIDONE •

APINVS • VENDICVS • ERIACAINV[S]

OVOVIANI [?]

ICCINVI • PANDITI • ATTEDIA • M • TR

PVMPI • CANTI • AILATIO

A pedra – pela sua importância – foi cedida ao Museu Nacional de Arqueologia.

NOTA: A foto da inscrição de Cabeço das Fráguas é de Hugo Pires, segundo o Modelo Residual Morfológico que inventou.

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Duas Linhas, 25-06-2023: https://duaslinhas.pt/2023/06/um-letreiro-em-lingua-por-decifrar/

 


E o bobo pagou as favas!

            Engalanou-se o Salão Preto e Prata do Casino Estoril com os seus melhores pergaminhos de excelente palco para receber um espectáculo maior, como o é uma ópera de Verdi. Rigoletto ali se apresentou, com êxito, na noite do passado dia 9.

Rigolare significa, em italiano, rir, troçar, diligenciar para que todos estejam bem dispostos. Esse, o tradicional papel do bobo, cuja figura caricatural é sempre a de um anão, aparentemente desprovido de algum senso, de forma que nunca lhe sejam demasiadamente tomadas a sério tanto frases como atitudes. Enfronhado nos labirínticos escrínios palacianos, goza o bobo de uma liberdade aos demais não permitida, pelo que, a rir, amiúde, desvenda segredos e desmascara conluios. Rigoletto, o protagonista da ópera homónima de Giuseppe Verdi, significa, pois, «o risinho», designação sarcástica e, simultaneamente, carinhosa.
            O enredo da ópera gira, por consequência, em torno das costumadas intrigas amorosas que passam por conquistas, raptos e culminam, aqui, em desastrado homicídio errado: cumpriu-se a maldição que pairava sobre o bobo, que viu morrer em seus braços a filha amada.

            Da ópera faz parte a conhecida ária «La donna è mobile», que celebra a volubilidade sentimental da mulher:

«A mulher é volúvel. Como pluma ao vento, muda de palavra e de pensamento. Sempre um amável, gracioso rosto, em pranto ou em riso, é mentiroso. É sempre um infeliz quem a ela se entrega, quem lhe confia incautamente o coração! No entanto, nunca se sente, plenamente feliz quem naquele seio não saboreia amor!».

            O espectáculo levado à cena no Casino Estoril cumpriu plenamente os objectivos e não deram por mal empregado o seu tempo quantos ali acorreram e quase esgotaram o salão. Amiúde, as actuações foram sublinhadas por aplausos – que, aliás, também se não regatearam, de pé, no final. No caso, são sobretudo as interpretações musicais que se apreciam e todas mereceram, de facto, esse aplauso.
            Lamente-se que a empresa responsável pela vinda ao Estoril deste grupo de artistas, que nem sequer vem identificado no cartaz, também não haja proporcionado o rol dos actores e respectivos papéis. Foi um mau serviço prestado ao Teatro e aos seus intervenientes. No cartaz apenas se alude à Orquestra Filarmónica de La Mancha, sob direcção musical de Francisco Antonio Moya; diz-se que Frederico Figueroa se encarregou da direcção de cena e que a Maria José Molina coube a direção artística. E quem foi o maestro? Quem fez de Rigoletto com essa potente voz de barítono? Não se distribuiu o habitual libreto e os espectadores gostariam de saber quem foi o protagonista, quem a donzela apunhalada por engano, quem o duque sedutor… Paciência! Houve, porém, o cuidado de passar em legenda luminosa superior a tradução para um português um tudo-nada desajeitado e com gralhas frequentes do que se ia cantando em italiano; os cenários mostraram-se singelamente adequados; a orquestra acompanhou e sublinhou a contento o espectáculo inteiro, ainda que, como é natural, mais tivesse vibrado, em compasso de valsa, na execução da ária mais conhecida.
            Apesar de tudo, boa iniciativa a de ópera no Salão Preto e Prata. Venham mais! Nós merecemos!

            Fotografias gentilmente cedidas por Conceição Alves (Casino Estoril).

                                                           José d’Encarnação 

Publicado em Duas Linhas, : https://duaslinhas.pt/2023/06/e-o-bobo-pagou-as-favas/