terça-feira, 30 de dezembro de 2014

E, afinal, a geringonça não caiu!...

             Sobejamente conhecido o autor! António Torrado (Lisboa, 1939) tem dedicado a sua vida, desde os 18 anos, à escrita, mormente à literatura infantil, em que magistralmente se revela a sua brilhante aura pedagógica! Mais de 120 livros escritos, uma actividade imparável, em que se assinala o facto de ser, agora, o professor responsável pela disciplina de Escrita Dramatúrgica na Escola Superior de Teatro e Cinema e dramaturgo residente na Comuna.
            Quando lhe pediram uma auto-biografia, respondeu ser essa uma tarefa difícil:    «Tenho passado a vida a dar voz, em mil histórias, a gentes e coisas tão autênticas e fantasiosas como eu sou e serei. Os meus livros que falem por mim».
            Enorme curiosidade, pois, a minha, na estreia, a 20 de Dezembro, no Mirita Casimiro, da peça Atirem-se ao Ar (escrita em 2003 e publicada em 2012 pelo Caminho), que Pedro Caeiro encenou, com versão cénica de Miguel Graça, cenografia de Fernando Alvarez, música e som de Gonçalo Alegria (que também está em cena como locutor de rádio) e direcção de montagem de Manuel Amorim. No elenco, jovens ligados ao Teatro Experimental de Cascais.
            Diga-se desde já que – como é habitual – houve adaptações ‘locais’ do texto e – ao que me consta – cenas da Escola Profissional de Teatro de Cascais, onde Miguel Graça também é docente, acabaram por ser transpostas para o palco. Não! Nada de conclusões precipitadas! Aquela algazarra de endiabrados alunos, aquela aparente bandalheira – ainda o público se está a sentar e já tudo parece andar numa fona!… - nada têm a ver com a seriedade suma das aulas reais! Quiçá alguns tiques professorais, aquele veemente «calou!» (do professor, tão ironicamente incarnado por David Esteves!) e a rígida disciplina que de imediato provoca… Tudo é, porém, altamente sadio e a brincadeira que se instala, estudantes de teatro a fazerem de conta que representam, com uma deliciosamente azougada Beatriz Costa (bem interpretada por Raquel Oliveira), é mero pretexto para dar corpo a uma contestação: a dos senhores dos dirigíveis contra a (para eles) impossível viagem aérea de Gago Coutinho e de Sacadura Cabral de Lisboa ao Rio de Janeiro, em 1922. E há, naturalmente, saborosas picadelas pelo meio: quando, na conferência de imprensa (tinha de haver uma conferência de imprensa, pois então, para tão grande feito!...), alguém os acusa de estarem a desbaratar dinheiros públicos, logo alguém segreda: «É jornalista, dá-lhe um desconto!»; ou a observação em rima: «Se tivéssemos dinheiro como tínhamos dantes, o palco estava a abarrotar de figurantes!»…
            «Uma brincadeira de crianças efectuada por adultos, talvez seja isso o teatro» – escreve Miguel Graça. Na verdade, a intenção didáctica de contar como foi essa extraordinária aventura de dois portugueses («É difícil para nós, hoje, tão habituados ao progresso científico, capazes de ter a informação do mundo na palma da mão - e com GPS, para não nos perdermos – imaginarmos o que seria atravessar o Atlântico Sul num pequeno hidroavião […] sem ver terra nem a luz do dia quando caía a noite», é ainda Miguel Graça), essa intenção didáctica parece revestir-se aqui de uma brincadeira de crianças, que só o génio de dois pedagogos, o de António Torrado e o de Miguel Graça, poderia arquitectar.
            Gostámos. Deliciámo-nos. Rimos. Por exemplo, quando todos param e olham para uma porta imaginária, donde poderá vir o professor para os pôr na ordem («Não é ninguém! A porta está fechada!». O professor só aparecerá mesmo no fim, é Miguel Graça e os espectadores não resistem a uma boa gargalhada também! Bruno Ambrósio, José Condessa, Marta Correia são alunos; mas, dentre eles, há quem se metamorfoseie em Patacho (Bruno Bernardo), companheiro do Dr. Hélio (João Cachola, ex-major, doutor engenheiro…!). Sérgio Silva é Gago Coutinho; Filipe Abreu, Sacadura Cabral.
            Parece fácil quando se vê; tudo, no entanto, é estudado ao pormenor, o gesto, os figurinos, o som…
                E aquilo dá mesmo a ideia de ser tudo uma geringonça danada. A questão é: «Como é que o avião, tão mais pesado do que o ar, pode vencer o balão, tão menos pesado que o ar, e conquistar o espaço aéreo, dantes apenas frequentado pelos passarinhos?».
                Pois é. O certo é que eles conseguiram. Eles, os dois cientistas, convencer-nos; eles, os actores, divertir-nos.
                E ficam as lições. A do hidroavião e uma outra, que Miguel Graça não hesita em sublinhar na folha que nos é distribuída: «As personagens deste Atirem-se ao Ar não têm para onde ir e, por isso, inventam uma nova realidade». Para concluir:
                «Quando a crise financeira e económica e os conflitos religiosos e políticos preenchem o nosso quotidiano, é bom recordarmos que existiram homens destes, não só exemplos de coragem, mas sobretudo um paradigma daquilo que o Homem, quando foi Homem, sempre quis ser, alguém capaz de controlar o próprio destino, inimigo do desconhecido, capaz de ir sempre mais longe».
                A peça continuará em cena de 3 a 18 de Janeiro, aos fins-de-semana, com sessões especiais para escolas.

Publicado em Cyberjornal, edição de 30-12-2014:

           







           

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

A magia dos perfumes que esconde outros mistérios

           Telefonou-me uma amiga a desejar boas-festas. Perguntei-lhe pelo filho. Estava em missão das Nações Unidas num arquipélago do Oceano Índico, ao largo de Moçambique. E a fazer o quê? Contou-me a história e eu não resisto a não a partilhar, omitindo apenas – por uma questão de diplomacia – o nome do arquipélago.
            Para já, o filho relatou-lhe que anda em calções e t-shirt e os indígenas com que se encontra vestem calça e casaco e gravata, porque pretendem assim equiparar-se aos europeus que, durante séculos, os escravizaram. E de que vivem? É o que vamos ver!
            Cresce ali a ylang-ylang, árvore que chega a atingir 20 metros de altura. Chegavam a atingir se as deixassem, pois, na actualidade, elas são podadas, mantidas, 'traumatizadas' a menos de 2 metros de altura para facilitar a recolha das suas lindas flores amarelas.
            Tem nome científico Cananga odorata, porque cheira muito bem (está, aliás, na origem do nome dado, em 1989, a uma telenovela da Manchete que passou entre nós: Kananga do Japão). E dela vivem os indígenas, porque a cortam, põem-na a destilar e obtêm assim um óleo deveras apreciado desde longa data, não apenas pela fragrância que exala mas porque é a matéria-prima para um dos perfumes mais cobiçados pelos Europeus e de que, nesta época natalícia, muita publicidade se faz, por ser caro e bem cobiçado pelo seu aroma forte e inconfundível. E o óleo essencial que da ylang-ylang também se extrai detém, reza a propaganda, outras magníficas e deveras importantes propriedades: é antidepressivo, antisséptico, afrodisíaco, hipotensor e pode ser usado como sedativo. Uma maravilha!
            Cada frasco obtido por destilação no alambique rende bem e contribui eficazmente para o indígena… dar nas vistas!
            E que está lá o filho da minha amiga a fazer? Facilmente se compreenderá: a estudar os meios de evitar a sangria da floresta, meio caminho andado para uma desertificação a breve trecho, se não forem tomadas medidas urgentes.
            Quem diria, pois, que aquele perfume tão propagandeado era originário lá bem de ilhas perdidas no Índico e que, para o obter, se estava a pôr em risco uma outra riqueza maior, que é o equilíbrio ambiental?

 
Publicado em Cyberjornal, edição de 25-12-2014:
http://www.cyberjornal.net/index.php?option=com_content&view=article&id=1136:a-magia-dos-perfumes-que-esconde-outros-misterios&catid=30:colunistas&Itemid=90

Coreografias para seniores

             É sabido quanto, num quotidiano em que quase tudo pode fazer-se sentado diante de um computador e nossas vidas se tornam cada vez mais sedentárias, o movimento assume importância capital, quer para manter os músculos activos quer para facilitar a oxigenação de todo o organismo.
            Nem sempre, porém, o ginásio nos serve nem as lições de dança. Foi isso que pensou Teresa Meira, dando corpo, entre nós, ao que já se vai fazendo por esse mundo fora: criar coreografias para seniores. Não é dança propriamente dita, não é ginástica: é movimentação em conjunto, ao som da música, num sorriso.
            No auditório do Centro Cultural de Cascais houve, no começo da tarde do passado dia 18, aquando  da Festa de Natal do Centro Engº Álvaro de Sousa, a apresentação do grupo que Teresa ali, com o maior agrado, tem preparado.
            Dez jovens, com idades compreendidas entre os 57 e os 86 anos mostraram como se consegue ser ágil, jovial e capaz de invejável sincronismo. Mui agradável de ver-se «Aleluia» e «Last Christmas», por exemplo.
            Parabéns!

Publicado em Cyberjornal, edição de 25-12-2014:

sábado, 20 de dezembro de 2014

E o esqueleto ressuscitou!

            Estamos habituados, nós, os arqueólogos, a lidar com os esqueletos exumados das escavações. Esqueletos de todas as épocas, desde a Pré-história à Época Moderna, em razoável estado de conservação muitas vezes, de modo que os antropólogos acabam por, inclusive, estudar eventuais doenças com que faleceram e deformações que tiveram, congénitas ou resultantes de traumas ocorridos durante a vida. Conseguimos identificar a idade, o sexo e, pelos materiais que os acompanham (amiúde uma moeda, supostamente para pagar a viagem para o Além…) e por outros vestígios, logramos determinar a época em que foram enterrados.
            Mui raramente encontramos cadáveres. E ainda recordo a emoção que tivemos, aquando das escavações prévias à construção da cripta, em 1978-1979, na igreja de S. Bartolomeu, em Coimbra, ao verificarmos que uma das jovens ali enterradas estava praticamente incorrupta…
            Uma emoção estranha, que se tem igualmente quando abraçamos alguém que é apenas pele e osso. Foi essa, de facto, a sensação angustiante que tive quando abracei meu tio Lázaro, no Centro de Medicina e Reabilitação do Sul. Pensei, naturalmente, o pior. Mas não! Mercê da excelência de cuidados que ali lhe foram prestados, meu tio renasceu, o esqueleto ganhou carne e, embora mantenha o aspecto franzino sobre que Vítor Barros já aqui escreveu («O Lázaro sempre foi pequenino»…), este Lázaro ressuscitou!
            Escusado será, pois, dizer que me insurjo contra esta mania de se querer acabar com as instituições que mantêm elevado grau de excelência nos serviços que prestam. E estou inteiramente do lado do nosso presidente da Câmara nas preocupações manifestadas perante a Administração Regional de Saúde do Algarve, a 10 de Novembro passado, de que Noticias de S. Braz se fez eco na pág. 8 da edição desse mês, e sobre que o nosso Director teceu mui sábias considerações no editorial, sob o título «Regredir».
            Urge, por conseguinte, que todos nos unamos numa luta que é, afinal, de todos, pela manutenção, em óptimas condições de funcionamento, de uma estrutura de saúde que honra S. Brás, o Algarve e o País!
        
Publicado em Noticias de S. Braz nº 216, 20-12-2014, p. 17.

Tempo, serenidade, esquecimento…

           «Boas festas», «Festas felizes», «Próspero Ano Novo» – votos que, na quadra natalícia, se multiplicam ao infinito. Confesso, porém, que, inevitavelmente, me ponho a pensar: que é isso de boas festas? Que significa ter «festas felizes»? E «Próspero Ano Novo» que conotação tem? De abundância na riqueza? De um bem-estar maior?...
            E desato a ver aquilo de que todos nós mais precisamos, de «bom», de «feliz», de «próspero». Olho à minha volta, recordo as frases do dia-a-dia, aquelas que mais me tocam, que mais me chocam, que mais abanam comigo pelas consequências que têm:
            «Não tenho tempo para nada!»
            «Isto é uma inquietação pegada todos os dias!»
            «Olha, esqueci-me!»
            Dei comigo, portanto, desde há uns anos a esta parte, a desejar aos meus amigos, pelo Natal, pelo Ano Novo, nos aniversários, «serenidade e tempo». E recordo amiúde a frase de Michel Quoist: «Tens muito tempo à tua disposição, mas passas o tempo a perder o teu tempo».
            A serenidade. Que nada acontece por acaso e, em cada momento, há que encarar a situação de frente, pesar prós e contras e decidir como se acha melhor. Porque não aprendes a respirar fundo, a caminhar devagar? É ainda Michel Quoist: «Os grandes homens fazem dez vezes mais trabalho do que nós, em dez vezes menos tempo. Porquê? Sabem organizar-se: protegem, defendem ou são capuzes de readquirir a sua calma, dando-se inteiramente a uma tarefa de cada vez».
            O esquecimento – porquê? Porque não disciplinamos o nosso pensamento, saltamos de uma tarefa para outra, sem terminarmos a primeira nem a segunda, como aquele senhor que pega nas chaves para as ir arrumar, depois vê uma carta e abre-a, pousa as chaves e tocam à campainha e vai atender, e lembra-se de ir tomar o café e, à noite, as chaves continuam fora de sítio e ele já nem sabe onde as deixou. «Olha, esqueci-me!» será, por vezes, desculpa; mas, se reflectirmos bem, é esquecimento mesmo, porque… andamos de cabeça no ar!
            O meu voto, pois, leitor amigo: que, nesta quadra e em 2015, a serenidade impere na sua vida; saiba organizar bem o seu tempo, de modo que o esquecimento não seja, em nenhum dia, o seu inquietante companheiro!

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 652, 15-12-2014, p. 20.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

«Respirar é preciso!»

            Com esta frase – «Respirar é preciso!» – terminou Mário Assis Ferreira a sua intervenção, no passado dia 17, por ocasião da entrega dos prémios literários instituídos pela Sociedade Estoril-Sol, pois, citando Thomas Mann, que escreveu «a cultura respira-se», sublinhou ser a promoção da Cultura um desígnio que preside à actividade da Estoril-Sol.
            Nesse desiderato se insere, disse, a criação dos prémios Fernando Namora (ora em 16ª edição) e Revelação Agustina Bessa-Luís (6ª edição). Mesmo em tempo de crise, não abdicou a Estoril-Sol de exercer, desta sorte, a sua missão de cidadania; de manter uma galeria de arte com espaço generoso; e de mostrar energia, criatividade e determinação, por exemplo, na manutenção da multipremiada revista Egoísta – mau grado o facto de, a partir de 2008, estarem a diminuir substancialmente as receitas do Jogo. Congratulou-se, pois, com o elevado número de concorrentes e, a propósito do júri qualificado que apreciou os trabalhos, salientou a enorme estatura intelectual e humana de Vasco Graça Moura, que presidiu a este júri, até que as forças lho permitiram (este concurso, relativo a 2013, ainda decorreu sob sua presidência). Por isso, justamente para lembrar a relevância da Cidadania, anunciou que a Estoril-Sol ora estatuía o Prémio Vasco Graça Moura para galardoar obras que pugnem pela Cidadania Cultural.
            Aliás, a personalidade de Graça Moura seria alvo de referências elogiosas por parte de todos os oradores desse final de tarde, no auditório do Casino Estoril. Referiram-se-lhe (o «grande Amigo que nunca perderemos!») Guilherme de Oliveira Martins, que ora preside ao júri, os dois premiados e o próprio Secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, que presidiu à sessão.
            O angolano José Eduardo Agualusa foi distinguido pelo romance Teoria Geral do Esquecimento e, na acta, o júri fundamentou essa atribuição, tendo em consideração «a escrita ágil de um autor que sabe realizar uma especial economia de efeitos, encontrando uma linguagem em que o português é falado em intercepção com outros modos». A história, plena de ironia e de humor, de uma aveirense em Luanda, na véspera da declaração da independência.
            Coube a Paula Cristina Rodrigues o prémio Revelação, com o romance Horizonte e Mar, que reflecte a vida genuína das gentes da costa atlântica (a autora, natural do Porto, vive em Matosinhos), o docinho da língua como realidade viva, numa «abordagem etnográfica pouco presente no panorama da actual ficção portuguesa, expressa numa narrativa bem conduzida, cuja frase é, no geral, vertebrada, sendo sentimentalmente envolvente e susceptível de atravessar diversos patamares de leitura», lê-se na acta.
            Ambos os contemplados, na brevíssima alocução de agradecimento que fizeram, não deixaram, como se disse, de salientar o grande amor de Vasco Graça Moura à língua portuguesa, em todas as suas variantes, sublinharia Agualusa, a variante brasileira, angolana, cabo-verdiana… pois era a língua o seu «instrumento de trabalho».
            A encerrar a sessão, Barreto Xavier evocaria a última viagem de Vasco Graça Moura a Bogotá, já debilitado mas numa vontade de promover a cultura portuguesa também além-fronteiras, e felicitou a Estoril-Sol por ter a Cultura sempre bem presente na sua actividade, numa contribuição sempre activa.
            Seguiu-se o jantar no Restaurante Estoril Mandarim, em homenagem aos premiados.

Publicado em Cyberjornal, edição de 18-12-2014:
http://www.cyberjornal.net/index.php?option=com_content&view=article&id=1124:respirar-e-preciso&catid=17&Itemid=30

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

A (incrível) estória do Balhau

             Foi apresentado, ao final da tarde de domingo, 14 de Dezembro, pelo conhecido humorista Nilton, no Museu do Mar Rei D. Carlos, em Cascais, o livro A incrível estória do Balhau, da autoria de Filipe Desmet.
            Tinha o peixe o hábito – que partilha, aliás, com muitos de nós… – de comer as sílabas, designadamente aquelas mais saborosas, as do meio. Por isso, é chamado de Balhau e não de Bacalhau. E deu Nilton exemplos de inúmeras ocasiões do quotidiano em que, de facto, comemos as sílabas – e toda a gente percebe o que queremos dizer!...
            Ana Colaço, da RFM, leu depois algumas passagens do livro, para nos aliciar e os dois filhotes gémeos do autor, a Inês e o Guilherme, serviram… pastéis de balhau e sumos de… pêgo, laja, anás e mogo!
            Enfim, momentos deveras divertidos, como divertida é a estória (que não podia ser história!) do peixe que, um dia, vê uma mica, a come e… não é que ela (a minhoca…) estava presa num anzol? Mas, como só apanhara um peixe, o pescador dispunha-se a devolvê-lo ao mar, quando se apercebeu que este lhe piscara o olho! Não resistiu, ficou com ele, levou-o para casa e tornaram-se bons amigos. Imagine-se que até, um dia, foram a um jogo de futebol! E o Balhau também aplaudiu os golos, de barbatanas levantadas. Mas não sabia que só podia aplaudir os golos da equipa da bancada; enganou-se e «um adepto que estava perto dele, olhou-o com olhar de reprovação e disse:
            Ó baixinho, vê lá se queres que te convide para jantar peixe!».
            Aí ele percebeu.
            Cativou o Balhau o pescador pelo seu jeito de ver o mundo (por exemplo, a chuva a cair era uma novidade enorme!...). Por isso nos cativa a nós também, porque nos ensina a ver as coisas «insignificantes e pequenas», aqueles «grãozinhos de areia» que fazem o nosso dia-a-dia.
            No final da estória, sentimo-nos melhores, enlevados em estranha serenidade, deliciados com o saboroso olhar crítico que o Balhau – aquele que comia as sílabas do meio – acaba por nos transmitir.

Publicado em Cyberjornal, edição de 2014-12-15:

 

           

sábado, 13 de dezembro de 2014

Bichanos & companhia

            E as velhotas, no Centro de Saúde, lá continuaram na conversa em jeito de quem quer matar o tempo. Ouvi-lhes:
            Isto foi o cabo dos trabalhos!
            Imaginei logo que falariam de doenças, que é tema de velhos, pois claro.
            Faz-me a cabeça em água, o malandro!
            Supus netinho irrequieto, levado do diabo. Mas, quando me pareceu que soara a palavra bilharetas, mais ou menos assim pronunciada e que eu há tempos não ouvia, apurei o ouvido. Bilharetas: traquinices, partidas, fosquinhas, malandrices e atitudes do género... Podiam ser dum moço pequeno, podiam; afinal, porém, o Sebastião de que uma das senhoras falava era gato de luzidio e farto pêlo preto, a sua companhia, compreendi depois.
            E dei comigo a pensar na lei que ora se fez para punir quem maltratasse animais, designadamente animais de companhia. Aprovo. Gostaria, no entanto, de ter ouvido, na circunstância, falar mais do importante papel que gatos e cães detêm no equilíbrio de uma família, mormente crianças e velhos. E quantas vezes não vemos fotos de «sem-abrigo» em que a única e inseparável companhia é… um cão?! Gostaria que se dissesse quanto essa companhia contribui, mais do que os remédios, para segurar o equilíbrio mental. E que dessa consciencialização resultassem leis em conformidade, porque o sem-abrigo e o velhote podem passar fome, mas o seu cão… não!


Publicado em VilAdentro [S. Brás de Alportel] nº 191, Dezembro de 2014, p. 10.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Na prateleira - 37

Temos campeões em badmington!
            Serenamente e sem grandes alardes, as colectividades lá vão prestando como podem (e lhes deixam…) os mais relevantes serviços à comunidade em que se inserem, nomeadamente contribuindo para cimentar imprescindíveis laços de vizinhança. Iniciativas da mais variada ordem preenchem o seu calendário anual e somos, de vez em quando, surpreendidos pela informação de que jovens atletas vieram medalhados de importantes competições internacionais.
            Soube, por exemplo, que tal acontecera no caraté, na Alemanha, numa prova europeia, em que jovens de Janes e Malveira arrebataram medalhas. E, a 23 de Novembro, por ocasião do 29º aniversário de Clube Desportivo da Costa do Estoril, sediado em Alapraia, ficámos a saber que, no badmington, modalidade desportiva em que o Clube agora aposta, se estava a ganhar grande relevo, inclusive com campeões a nível internacional.
            Regozijamo-nos!

Um estranho nome: Zyryab!
            Houve sessão comemorativa do 29º aniversário desse clube, a 23 de Novembro. Cabral de Sousa, o presidente, deu conta do que se procura fazer; Manuel Andrade, presidente da Mesa da Assembleia-Geral, saudou a presença de associados e amigos, realçando o facto de o senhor presidente da Câmara se ter feito representar por um dos directores municipais, Miguel Arrobas, que tem a seu cargo o pelouro das colectividades, educação e acção social e que, usando da palavra, se congratulou com as iniciativas levadas a cabo ao longo do ano.
            Na sala, ouviam-se sotaques vários, a indiciar quanto a colectividade constituía elemento congregador de uma população cosmopolita.
            Evocou-se Tito Iglésias, sócio recentemente falecido, poeta, homem de cultura, que legou ao Clube toda a sua biblioteca.
            Falou-se de música (aliás, uma das grandes actividades do clube, bem patente nos quadros que ornam as paredes do seu salão nobre); disse-se poesia; e ouviu-se o quarteto de guitarras Zyryab, que interpretou cinco temas da ‘Carmen’, de Bizet, e um trecho de Carlos Paredes.
            O quarteto foi fundado em 1999 por Luís Miguel Aveiro, que juntou a si Daniel Sousa, Ricardo Nogueira e Luís Roldão. Não é a primeira vez que actua no Clube e Zyryab – literalmente, «pássaro negro» em árabe – é o nome por que ficou conhecido Abu Al-Hasan Ali ibn Nafi (789-857), músico que, como referiu Paco de Lucía, «influenciou decisivamente a evolução da tradição musical árabe na Península Ibérica. Atribui-se-lhe a invenção do plectro (pua) utilizando a pluma dianteira da águia; também acrescentou uma quinta corda ao alaúde e criou uma escola musical sem precedentes. A tradição considerou-o o pai da música do Al Andalus». O quarteto quer, pois, seguir-lhe as pisadas – e vai muito bem!

Cocheiras Santos Jorge e… estufa!
            Não há meio de se salvaguardarem e reabilitarem as cocheiras de Santos Jorge, pérola arquitectónica do Estoril, que, pelo seu estado de abandono, a todos envergonham (se calhar, menos àqueles que deveriam envergonhar-se). No resto do edifício (demolido) foi autorizada a construção de um condomínio entre 1991 a 1993. Contudo, por informações que ora tivemos, «ainda se mantém na antiga propriedade uma lindíssima estufa que lamentavelmente está totalmente abandonada e em muito mau estado de conservação».
            Há, por conseguinte, que meter mãos à obra e… salvar também a estufa!

Cascais na Sociedade de Geografia de Lisboa
            Costa do Sol já teve ocasião de noticiar a sessão realizada, no passado dia 26 de Novembro, na Sociedade de Geografia de Lisboa, presidida pelo Engº Elias Gonçalves.
            Para além do presidente da edilidade, estiveram presentes técnicos camarários, que explicaram o que se pretende levar a cabo para minorar as agressões ambientais, e outros especialistas, entre os quais o Engº Miguel Azevedo Coutinho, filho do edil em cujo mandato se comemoraram com brilhantismo os 600 anos da elevação de Cascais a vila e um dos nossos peritos em questões hidráulicas, mormente no que concerne à prevenção de cheias e inundações.
            João Henriques, responsável pelo arquivo municipal, teve também ensejo de traçar uma panorâmica dos 650 anos da história cascalense. A este propósito, permita-se-me que mais uma vez me regozije pelos painéis sobre essa temática que ora se mostram nos baixos dos Paços do Concelho, idênticos aos que, mui acertadamente, estiveram patentes no paredão.

Publicado em Costa do Sol – Jornal Regional dos Concelhos de Oeiras e Cascais, nº 73, 10-12-2014, p. 6.

 

 

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Desenterrou-se o lagar e a memória floriu!

            Não foi sem um estremecimento de curiosidade que Pedro Mota Soares descerrou, no passado dia 1 de Dezembro, inesperada placa evocativa. Dizia, estranhamente, CASA DOS LAGARES e proclamava, em baixo, ser «um espaço de memória onde queremos que viva o futuro».
            Preparada no mais completo segredo, a casa ora recuperada no Centro de Apoio Social do Pisão (antiga «Mitra»), sita na freguesia de Alcabideche (Cascais), impõe-se-nos, desde logo, pelo majestoso portal – e só o facto de não estar ainda inteiramente ‘operacional’ é que impediu que o Ministro da Segurança Social tivesse usado a grande chave antiga para lhe abrir a porta. Lê-se no desdobrável «Uma casa… muitas histórias»:
            «O núcleo histórico “Casa dos Lagares”, com uma construção e traços de arquitectura típicos dos séculos XVII/XVIII, é composto por três salas complementares. A musealização do sítio e a exposição de objectos e de fotografias reportam-nos, sobretudo, aos anos 40 do século XX e permitem-nos viajar no tempo até à actualidade, contando a história de pessoas que contribuíram para a identidade do Centro de Apoio Social do Pisão».
            E, entrados, foi o deslumbramento. Sabiamente expostos, objectos do que fora aquela tenebrosa instituição até 1985, onde, para o Pavilhão da Psiquiatria, afastado dos demais, a comida era preparada em bidões levados para os utentes-presos em cima de uma desengonçada carroça que também se logrou recuperar. Lá estavam as fotografias a mostrar como era, rostos macerados, martirizados, dolorosamente tristes ou alheados do momento… Aquele ali, que parou para a fotografia, na altura em que dava de comer ao companheiro acamado. E as sentinas… E os frascos dos medicamentos, material médico e cirúrgico… Objectos litúrgicos da Capela da Sagrada Família. A cadeira do barbeiro (ou do dentista?). As formas do sapateiro. A velhinha central telefónica. E aquela foto como que «de família», em filas ou em formatura, os guardas à frente, tudo fardado e de bivaque na cabeça…
            Uma que outra parede de pedra e argamassa à mostra. O forno que se pôs a descoberto e, sobretudo, o lugar onde assentava a enorme seira do lagar de azeite. Pelas dimensões, um grande lagar, alimentado, sem dúvida, pelas oliveiras da extensa propriedade, que os internados sob escolta trabalhavam… E pensar que esta – agora, “Casa do Azeite” – «na época da Colónia Agrícola do Pisão, serviu de casa de castigos»!...
            A «Casa do Lagar» é “espaço de museu, onde ainda existe o lagar de pisar uvas e o vestígio da prensa; aqui estão expostas peças de madeira, ferro e folha usadas pelos ‘colonos’ e algumas confeccionadas pelos próprios”.
            Inigualável, o poder evocativo desses espaços, a levar-nos para um outro painel, polvilhado de rostos, de pessoas, de sorrisos e de lágrimas, e, por cima, o mote de tudo, haurido em Victor Hugo:
            «O futuro tem muitos nomes. Para os fracos, é o inalcançável. Para os temerosos, o desconhecido. Para os valentes é a oportunidade». Nem há necessidade de comentários!

As mensagens que ficaram
            Percorreram-se as instalações. Tomou-se um cafezinho noutra «casa» (a palavra ‘casa’ surge aqui e além – Casa do Lagar, Casa de ligação, Casa do Azeite –, nesta vontade de se ter acolhedor lar confortável…). Logrou-se fazer de um recanto a sala de informática. Num outro, a oficina de modelagem. Naquele ali, a marcenaria. Naqueloutro, senhoras preparam bolinhos… A cozinha quase industrial. O enorme e mui airoso refeitório. A farmácia com todos aqueles doseadores cheios de comprimidos para o pequeno-almoço, o almoço, o jantar, a ceia… Há quem tome quase vinte comprimidos por dia, senão mais! E tudo tem de estar devidamente arrumado…
            Pelo meio, agora serenas, murmurejam as águas da Ribeira do Pisão que acasalarão mais adiante com as da Ribeira da Penha Longa, formarão o Rio Marmeleiro e se metamorfosearão, a jusante, na conhecida Ribeira das Vinhas.
            Na Sala da Formação, sentámo-nos para os discursos, em jeito de partilha de emoções.
            Contou a Provedora, Isabel Miguéis: há 340 internados. Um chegou a ser capa da revista Exame! Um outro come tudo o que apanha: beatas, folhas… Mas o Pisão – dependente, como está, da Segurança Social, não pode ser um «caixote do lixo» para onde se atira tudo o que os outros ministérios (por exemplo, o da Justiça) não querem! Não há condições para se receberem pessoas violentas nem com determinado tipo de doença.
            E foram quatro os pedidos da Provedora:
            1 – Que as obras começadas acabem.
            2 – Que o compromisso entre a Santa Casa e a Segurança Social seja realmente prioritário (estava presente a Dra. Mariana Ribeiro Ferreira, presidente do Instituto da Segurança Social).
            3 – Que possamos ser dotados de mais recursos humanos qualificados (não são precisos muitos).
            4 – O pedido maior: que haja respeito pelas pessoas que trabalham na – Segurança Social.
            Em resposta, Pedro Mota Soares, depois de acentuar a necessidade de o Estado contratualizar a resposta social, deixando, porém, de querer ser «patrão» a impor um conjunto de regras nas instituições que ele não quis gerir, preconizou maior diálogo entre o Estado e as instituições, numa relação que se quer de confiança, não por palavras mas com actos, pois, neste domínio, qualquer pequena intervenção é sempre uma grande intervenção.

Publicado em Cyberjornal, edição de 9-12-2014:

domingo, 7 de dezembro de 2014

Comissão de Protecção de Maiores... precisa-se!

            Este grito de alerta foi lançado na passada terça-feira, 25 de Novembro, pela provedora da Santa Casa da Misericórdia de Cascais, no decurso da Assembleia-geral da instituição, presidida pelo Juiz Conselheiro Armando Leandro.
            A razão do apelo prende-se com a violência dos mais diversos tipos de que ora são alvos os idosos, dadas as inúmeras dificuldades que as famílias estão a sentir para os proteger. Dificuldades financeiras mas, sobretudo, disponibilidade para os acompanhar devidamente, quer em casa quer mesmo em centros de dia ou nos lares onde os possam pôr.
            Há toda uma nova dinâmica que se torna necessário adoptar perante a situação dramática que ora se vive, sublinhou a Dra. Isabel Miguéis Bouças, informando, por exemplo, que acabara de dar entrada num dos lares da Misericórdia um ancião com 99 anos, facto que, até há meia dúzia de anos, seria considerado inconcebível! As famílias, cada vez com menos recursos, aguardam, ansiosas, o momento dramático dessa caminhada: aquele em que o ancião, independentemente da idade que tiver, passa a estar dependente de terceiros!
            Um dos centros de dia da Misericórdia é, hoje, mais um «lar de dia», com inúmeros problemas de saúde mental, cujo tratamento ultrapassa as capacidades dos que lá estão a trabalhar. Tudo se processou muito rapidamente, sem que as estruturas e as pessoas estivessem preparadas para enfrentar esse novo paradigma que se instalou e para o qual há que adoptar soluções dignas. «O Estado», sublinhou a provedora, «não pode ficar em gabinetes: tem de enfrentar a realidade!».
            É sabido que, do ponto de vista político, as pessoas de idade não têm suficiente importância; contudo, essa ideia é bem provável que não corresponda inteiramente à verdade, porque os anciãos têm uma família e as suas dificuldades acabam por se tornar as dificuldades de todos. De facto, alguém escreveu: «A ‘coisa’ mais importante para os pais são os filhos; mas a ‘coisa’ mais importante para os filhos não são os pais!» – e há que ter consciência disso!
            No decorrer da troca de impressões, Graça Poças, membro da Associação para a Cooperação e Desenvolvimento – P & D Factor, referiu que, nesse âmbito, está a ser preparada para apresentação ao mais alto nível internacional, nas Nações Unidas, uma Carta da População Idosa, porque o paradigma mudou substancialmente: hoje temos «adolescentes de 40 e 50 anos», «jovens adultos» no que concerne à sua falta de autonomia! Os direitos humanos precisam de ser vistos em função do ciclo vital, não apenas atendendo aos velhos e às crianças, tal como eram encarados até há cinco-seis anos atrás. Urge pugnar pelo estabelecimento de uma Convenção Internacional dos Direitos Humanos da Pessoa Idosa! Urge gizar novas estratégias com base no quotidiano concreto. Carece-se de uma cultura de prevenção: que os pais comecem a estar sensibilizados para as transformações de que os filhos vão sentir as consequências.
            Como entidade que é confrontada, no dia-a-dia, com esta súbita mudança e suas trágicas consequências a todos os níveis, a Misericórdia de Cascais está, pois, ciente da necessidade de se falar deste tema – para que as soluções também celeremente se encontrem, uma vez que a celeridade é a característica primeira desta inexorável mudança social.

Publicado em Cyberjornal, edição de 07-12-2014:

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

O catedrático e o canalizador

             Gerou-se alguma polémica quando se entendeu que a senhora Merkel teria dito que há licenciados a mais em Portugal. Logo se lançou mão das estatísticas, das comparações… para se concluir que não, senhora, não temos licenciados a mais, em relação ao que se passa nos outros países da União.
            Sucede, porém, veio alguém dizer depois, que não fora exactamente isso que a senhora afirmara; preconizara, sim, maior atenção para o ensino técnico-profissional. É uma ‘luta’ que travamos quase desde pouco depois do 25 de Abril, quando se optou por fechar as escolas comerciais e industriais e uniformizar tudo. Medida que gerou oposição por parte de quem já nisto andava há algum tempo, mas que corria então sério risco de ser apelidado de ‘reaccionário’ e… metemos a viola no saco!
            Parece que ora se torce a orelha, não deita sangue e arremedaram-se uns cursos à pressão, em jeito de forma de suavizar as estatísticas do desemprego. Não é, porém, a mesma coisa e continuamos a ter falta de mecânicos, electricistas, sapateiros, alfaiates, torneiros…
            E contava-me o meu amigo David, que é professor catedrático, a propósito desse dilema, relacionando-o com o ‘ganhar a vida’ e ser recompensado. Foi, a convite da comissão organizadora, fazer uma conferência, integrada numa jornada em honra de vulto importante da história nacional. Preparou cuidadosamente o seu PowerPoint e o texto, durante alguns dias; comprou o bilhete de comboio (a cidade fica a uns 150 km da residência); foram buscá-lo e levá-lo à estação. Ficou lá o dia, para ouvir os outros intervenientes na jornada. Antes do almoço, a senhora que presidia informou: «Pedimos desculpa, mas por imposições de orçamento nem sequer lhes podemos pagar a refeição». Passaram já uns quinze dias e ainda não foi reembolsado do magro custo da viagem. Repito: é catedrático, continua a queimar as pestanas para se manter actualizado, gastou horas e horas a preparar a conferência, por acaso até nem precisa já dela para o currículo e, claro, ninguém o obrigou a aceitar o convite…
            Vem de seguida o resto da história. Dias antes, o esquentador deixou de funcionar e ele não percebia porquê. Chamou o canalizador, que se deslocou de uns 5 km. Chegou e sentenciou (contou-me ele): «Isto é a pilha. Pode ir comprar uma como esta e fica bom. São 30 euros pela deslocação!».
            Não será infinitamente melhor tirar um curso profissional?

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 651, 01-12-2014, p. 12.

 

Saímos de alma lavada!

            Foi essa, a de sair de alma lavada, a sensação que tive, quando terminou o concerto que, na tarde de domingo, 30, se realizou no auditório do Centro Cultural de Cascais, em homenagem ao maestro Fernando Lopes-Graça, evocando os 20 anos passados sobre o seu falecimento. Não apenas por termos revivido a emoção de o cante alentejano ser, agora, património cultural imaterial da Humanidade e ali termos ouvido cantares do Alentejo, mas porque as canções de Lopes-Graça nos incitam a acreditar num amanhã mais promissor, em que a serenidade do povo que trabalha deverá ser a dominante!
            Maria Celestina Leão Gomes, da Associação Lopes-Graça, abriu a sessão, começando desde logo por salientar que passaram 20 anos da morte do Maestro exactamente no dia em que o cante alentejano foi galardoado. Subscreveu o «carácter nacional» das suas canções, que Mário Vieira de Carvalho lhe atribuíra; citou José Gomes Ferreira: «Lopes-Graça continuará vivo. A morte é para os mortos!».
            Referiu-se à pianista Madalena Sá Pessoa, que acompanhou ao piano a «voz etnográfica» (expressão de Mário Vieira de Carvalho) de Celeste Amorim, no CD/Livro Canções do 25 de Abril e 13 Canções Heróicas, que iria ser apresentado. Madalena Sá Pessoa, de 94 anos, fez questão em estar presente na cerimónia – e foi aplaudida.
            O Presidente da Câmara, Dr. Carlos Carreiras, disse do privilégio que era para Cascais ter Lopes-Graça há 50 anos (30 em vida e agora 20 anos depois) e ser o Município fiel depositário do seu espólio no Museu da M´suica Tradicional Portuguesa. Saudou o Dr. Arquimedes da Silva Santos, ali presente. (Arquimedes da Silva Santos, recorde-se, natural de Póvoa de Santa Iria (1921) acompanhou Fernando Lopes-Graça e foi o fundador da Escola Superior de Educação pela Arte). Aludiu à notável recolha de cantares do povo que Lopes-Graça e Michel Giacometti, que foi também este munícipe de Cascais (que igualmente preserva o seu espólio musical), fez por todo o País, «num tempo em que o tempo ainda passava devagar».
            A I parte da sessão seria completada com a intervenção do arquitecto Filipe Diniz. Lopes-Graça, disse, escreveu as canções expressamente para a voz «irrepetível» de Celeste Amorim e soube adaptar os textos às mãos da pianista. «Canções da resistência e da revolução», «politicamente empenhadas», profundamente imbuídas da «realidade comum alicerçada na raiz popular». Contrapôs essa atitude à dos tempos que ora se vivem, de rasura e asfixia cultural, da promoção de «uma cultura de massas desprovida de autenticidade». E exemplificou com o facto de as televisões, a propósito do cante alentejano, terem passado a Canção do Mineiro, sem se aperceberem de que esta canção é tanto dos mineiros de Aljustrel como dos mineiros das Astúrias ou do Chile!... A designação de «heróicas», acrescentou, não poderia ser mais ajustada, porque elas têm subjacente o sentimento de luta por um mundo melhor através da cultura. Aliás, Filipe Diniz começara por evocar a figura de José Casanova, afirmando que, em vez dele, quem deveria estar ali a apresentar o CD era precisamente José Casanova (membro do Comité Central do PCP que faleceu no passado dia 15).

Uma viagem pelo país
            Iniciou-se de seguida a prometida viagem «com a canção regional portuguesa de Norte a Sul», através da música de Lopes-Graça.
            Primeiro, o Coro de Câmara de Cascais, sob a direcção de Maria Repas Gonçalves. Um naipe de vozes de todas as idades, senhores e senhoras, de traje preto e longo cachecol vermelho.
            Depois, o Coro Lopes-Graça, da Academia de Amadores de Música de Lisboa, dirigido por José Robert. Também senhores a senhoras: elas de blusa branca a cair sobre saia preta, ostentando colares e gargantilhas; eles, de casaco escuro, calças cinzentas e laço grená.
            Ambos a interpretarem pequenos e mui melodiosos trechos, de sabor genuinamente popular. Recordo, a título de exemplo, «O ladrão do negro melro», qual hino à serenidade que se almeja!
            Na III parte ouviram-se quatro canções heróicas, acompanhadas ao piano por António Neves da Silva. Primeiro, a bem conhecida «Jornada», com letra de José Gomes Ferreira, pelo Coro Lopes-Graça; depois, «Rústica», também de J. G. Ferreira, pelo Coro de Câmara de Cascais. «Ronda» (de João José Cochofel), «Canto de Paz» (de Carlos de Oliveira) e «Acordai» (de J. G. Ferreira) foram interpretadas pelos dois coros em conjunto, sob direcção de José Robert. Em brinde extra à assistência, que encheu por completo o auditório, Maria Repas Gonçalves dirigiu os dois coros na versão do seu Coro para o «Canto da Paz».
            Foram, de facto, noventa minutos que nos reconfortaram o coração e nos lavaram a alma. E Cascais bem pode orgulhar-se do legado que teve e assim mostra que dele é merecedor!
                                                  
Publicado em Cyberjornal, edição de 1-12-2014:

domingo, 30 de novembro de 2014

Actualidade dos autos de Mestre Gil

           Autos? O Teatro Experimental de Cascais e Carlos Avilez têm em cena, no Mirita Casimiro, autos de Gil Vicente? Xaropada, só pode ser! Gil Vicente não é do século XVI? Passaram 500 anos, senhores! Muito se mudou! E a gente até teve de estudar isso na escola e rimos com a samicas de caganeira do parvo Joane. Parvo, sim, ele é. Por isso pode falar à vontade, que não lhe põem freio na boca. E não é que as verdades de há 500 anos são as mesmas d’agora? Com uma diferença, quiçá: há maior requinte na malandragem!...
            Portanto, actual, hemos de confessar. Tanto a vida folgada dos que não vão para a Índia como a prosápia dos que ambicionam a barca celestial e têm de seguir na outra.
            O gozo maior é, todavia, o de tudo vestir a pele de um musical. Tem-se a percepção nítida de que Carlos Avilez, Fernando Alvarez, Miguel Graça e os músicos Hugo Neves Reis e Pedro F. Sousa se divertiram à grande.
            Um divertimento contagiante! A não perder!

Publicado em Cyberjornal, edição de 27-11-2014:

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Teatro, lição de vida!

            Ao agradecer a homenagem que o TEC prestou a sua mãe, a filha de Mirita Casimiro realçou a importância que o Teatro detém na comunidade e incitou todos – novos e velhos – a frequentarem os teatros, não apenas para apreciarem uma Arte inigualável mas também para, dessa forma, ajudarem os actores e as companhias a prosseguir o seu trabalho.
            No Espaço TEC, em Cascais, inaugurou-se, no sábado, 22, a exposição evocativa da vida – curta mas bem preenchida – de Mirita Casimiro, cujo centenário do nascimento passou a 10 de Outubro. Maria Zulmira Casimiro de Almeida, de seu nome completo, viria a partir com apenas 55 anos, atormentada pelas sequelas de grave acidente de viação, que a incapacitara de prosseguir na sua brilhante carreira. Estreara-se em 1934, segundo uns, ou a 5 de Janeiro de 1935, segundo outros, na revista «Viva à Folia!», no Maria Vitória; Leitão de Barros escreveu expressamente para ela o guião do filme Maria Papoila (1937), uma criação imorredoira. De regresso do Brasil, onde se ‘refugiara’, foi acolhida pelo TEC, onde são inesquecíveis as suas interpretações em Mar, A Casa de Bernalda Alba e Maluquinha de Arroios (todas de 1966) e O Comissário de Polícia (1968), entre outras, sempre sob a direcção de Carlos Avilez.
            Muito participada, foi singela, mas emotiva – mormente para quantos tivemos a dita de viver esses esplendorosos e heróicos anos do TEC (sempre em luta com a Censura e não só…) – a abertura da exposição. Falou Carlos Avilez, a realçar o profissionalismo de Mirita; Fernando Alvarez (um dos responsáveis pela mostra) leu a mensagem que João Vasco (impossibilitado de estar presente devido à doença que o aflige) escreveu, numa evocação do que a Mirita ficáramos a dever; interveio a filha, sensibilizada e reconhecida, num apelo a que se não deixe morrer o Teatro; disse Norberto Barroca da biografia que está a escrever. Um grupo de alunos da Escola Profissional de Teatro de Cascais dançou, em alegre coreografia, a conhecida cantiga da Maria Papoila, «Adeus, ó terra!...».
            Reuniu-se ali muita documentação, mormente fotográfica, que vale a pena demoradamente apreciar. Uma carta manuscrita houve, porém, que significativamente me chamou a atenção. Não está datada. Assina-a a actriz, que escreve a Serra e Moura, na sua qualidade de “presidente da Assembleia-geral da Associação”:
            «Quero deixar bem vincado o meu reconhecimento pelas palavras que teve para comigo, que muito me sensibilizaram quer como actriz quer como mulher e mãe.
            Bem haja!».
            Nunca será de mais salientar o lúcido papel que Joaquim Miguel Serra e Moura teve como presidente da Junta de Turismo da Costa do Sol no apoio ao TEC e às manifestações culturais em geral, mesmo arriscando-se a ser mal visto pelo Poder, consciente da importância que as Artes – de todo o tipo – detêm para a comunidade. Um exemplo a não esquecer, nomeadamente nos tempos que correm, em que essa não parece ser uma prioridade política.

Eterno Gil Vicente!
            E essa reflexão leva-nos, necessariamente, aos dois autos de Gil Vicente que o Teatro Experimental de Cascais tem em cena: o Auto da Índia e o Auto da Barca do Inferno.
            Recorde-se que foram estas as peças que o então novinho TEC apresentou em Osaka, na Exposição Universal, no dia consagrado a Portugal, 24 de Agosto de 1970, com um elenco onde se integravam actores que davam os primeiros passos, digamos assim, nas suas carreiras: Maria do Céu Guerra, Rui Mendes, Mário Viegas, Zita Duarte, por exemplo.
            E a ‘eternidade’ da mensagem do consagrado autor quinhentista é agora realçada através de bem arrojada encenação: Carlos Avilez optou pelo… musical! Quem diria?!... Qualquer espectador imagina o ‘gozo’ que terá dado ao encenador e aos seus mais directos colaboradores (Fernando Alvarez na cenografia e figurinos, Miguel Graça na dramaturgia, Hugo Neves Reis e Pedro F. Sousa na música original no desenho de som, Natasha Tchitcherova na coreografia), a congeminarem na perpretação deste ‘crime’! Largas asas concederam à sua imaginação e o ‘crime’ aí está, pronto a ser venenosamente saboreado!
            Sim, escalpelizam-se os lúbricos devaneios das damas cujos maridos para a Índia se foram e por cá as deixam, jovens, sensuais e sozinhas; sim, rimo-nos com gosto dos que passaram a vida em esquemas de todo o tipo e pretendem, alfim, viajar na barca divinal e não têm mais remédio do que subir a prancha que a sedutora e azougada Vanessa, o Diabo em pessoa, lhes manda aprontar. Mas… quem há aí que não se desmanche quando o fidalgo (António Marques) se justifica, a cantar o fado; ou quando Teresa Côrte-Real se desdobra numa interpretação notável; e, sobretudo, quando o parvo, Joane, em «rap», atira as suas sarcásticas piadas: «Ó homens dos breviários, rapinastis coelhorum et pernis perdiguitorum e mijais nos campanários!». O máximo!...
            E, no final, bem divertidos, acabamos por dar inteira razão ao que se lê no texto de apresentação:
            «Obras em que se mantém vivo um retrato da Humanidade, com críticas que não poupam ninguém... se ontem foram fidalgos, padres ou magistrados mas também sapateiros e ladrões; hoje, podemos encontrar no texto paralelismos aos temas do nosso quotidiano
            Trata-se de uma reflexão sobre a contemporaneidade de temas como: a igreja, o tráfico humano, a corrupção, o desemprego, a pobreza ou a injustiça social... sustentando o que é a universalidade da obra de Gil Vicente.».
            Nem mais!

Publicado em Costa do Sol – Jornal Regional dos Concelhos de Oeiras e Cascais, nº 71, 26-11-2014, p. 6. Fotos retiradas, com a devida vénia, da página do TEC no Facebook, da autoria de Ricardo Rodrigues.