sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Escapar à chuva!

             «O Baixo Alentejo e o Algarve devem escapar à chuva» – anunciou a locutora da Antena 1, no passado dia 23 de Novembro, no programa da manhã, por ocasião das informações meteorológicas.
            Eu estivera em Loulé na antevéspera e a conversa com o motorista da Câmara que me fora buscar à estação – caíam, na altura, uns chuviscos – incidiu naturalmente sobre a chuva.
            Chovera ali na noite anterior; pouca coisa, porém, para as necessidades prementes que se faziam sentir. Aliás, não fora sem razão que o Município decidira criar um Gabinete de Eficiência Hídrica, justamente para racionalizar o mais possível o consumo e o aproveitamento da água. Recordei-me também dum dos primeiros interesses de meus tios: fazerem uma cisterna para armazenarem a água das chuvas.
            Dei comigo a pensar na frase «escapar à chuva». Que é como quem foge duma praga ou perigo iminente.
            E quem disse ao senhor do texto dito que o Baixo Alentejo e o Algarve queriam escapar à chuva? Para quem vive em meio urbano onde raramente a água falta, a chuva é, na verdade, um incómodo, chatice, tenho que levar guarda-chuva, a gente molha-se toda, depois as varetas não obedecem…
            Lembrei-me, até, daqueloutro locutor a perguntar à colega que estava nas informações de trânsito: «Então, já há algum acidente?». Como quem pensa: «Isto sem acidentes é uma pasmaceira!»…
            Reflexos, estes, inconscientes porventura, de uma visão ligeiramente distorcida da realidade desejável. Precisa-se de chuva, é bom não haver acidentes – este, o prisma pelo qual também se deveria pautar a informação.

                                                                     José d’Encarnação

Publicado em Noticias de S. Braz [S. Brás de Alportel] nº 277, 20-12-2019, p. 17.

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Entradas desabridas

             Dei comigo a pensar nas entradas desabridas.
            E foi porque vestira às avessas a camisola interior e só reparei nisso quando já havia por cima dela a camisa, devidamente metida nas calças, e uma camisola. A primeira reacção foi:
            – Pronto! Já vesti mal esta porcaria outra vez!
            Matei-a, felizmente, à nascença e, serenamente, fiz o propósito de, na próxima, ter mais atenção ainda! E, claro, evitar sempre a entrada desabrida.
            «Desabrida». Agora reparo no sentido do termo: desabrida por não ter qualquer resguardo, recato ou ponderação. «Entrada», por seu turno, lembra-me logo o futebol, onde uma entrada dita perigosa ou mal intencionada é de imediato punida pelo árbitro.
            Punida. Boa ideia. Será que tem árbitro e punição o uso corrente de palavras ‘feias’ como porcaria e parecidas? Tem, consciencializo-o eu agora, após tantos anos passados: faz-nos mal! Aumenta o nosso mal-estar; contribui para cimentar aquela carga emocional negativa que nos ensombra a existência – como o aumento dos impostos, as guerras, as catástrofes quotidianas, os conflitos sociais… Quanto a esses, pouco nos é possível fazer; mas quanto a nós, ao nosso íntimo, à nossa relação com os demais (desculpar-se-me-á o tom), uma atitude serena constitui válida contribuição para nos sentirmos bem connosco e saborearmos plenamente a vida.
            – Pronto! É sempre assim, não tens cuidado nenhum! Bolas!
            Sim, é agressão à pessoa a quem nos dirigimos; todavia… não o será ainda mais para nós próprios? Se omitirmos o ‘sempre’, o ‘nenhum’, provavelmente se encontrará outro termo para resolver a situação, sem apoucar a criança, o marido, a mulher… que, naquele momento, por qualquer motivo, não tiveram cuidado. Ou nós achamos que não tiveram. Houve um descuido? O próprio descuidado fica magoado consigo mesmo, não carece que, ainda por cima, nós o critiquemos! E a resposta, a melhor resposta, para nós e para o descuidado, será não a da entrada desabrida mas a de encarar a situação e… resolvê-la!
            Que raio de crónica esta, dirá quem me leia. Perdoe-me o desabafo! É que, hoje de manhã, eu vesti a camisola interior ao contrário e ia perdendo a calma!...

                                               José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 767, 2019-12-15, p. 11.

sábado, 14 de dezembro de 2019

Da venda pessoal ao comércio massificante – O caso de Cascais

                Situado na ponta ocidental do que poderia chamar-se a «península de Lisboa», entre a Serra de Sintra e o Oceano Atlântico, o concelho de Cascais partilha-se entre um interior onde se viveu da agropecuária até aos anos 60 e o litoral apetecido desde sempre mas sobretudo a partir da 2ª metade do século XIX, quando se começou a criar o hábito dos banhos de mar. A evidente dicotomia entre o campo e a «cidade» – susceptível, pois, de ser paradigma, um válido testemunho das transformações por que passou o comércio nos últimos 50 anos.
           
1 – A venda pessoal
            Chamava-se «venda» ao estabelecimento comercial onde praticamente tudo se comprava. O dono era conhecido, conhecidos eram também os fregueses.
            Nesse tempo, o trabalho era pago à semana, não havia semana-inglesa e, por isso, dinheiro «fresco» era ao sábado. Até lá, o valor das compras era assente no «rol», um livro onde cada página era duma família. Saldavam-se as contas ao sábado ou quando, por via de qualquer serviço extra, o dinheiro aparecia.
            Tudo em regime de mútua confiança, embora os proprietários da venda soubessem do risco de sofrerem um «calote», nome pejorativo dado à dívida passível de não vir a ser saldada, por penúria ou maldade do freguês.
            Na venda (estabelecimento), havia o essencial para o dia-a-dia; contudo, isso não evitava a existência de vendedores ambulantes. O padeiro era um deles, vendia ao domicílio e sabia quanto é que cada casa gastava de pão por dia. O leiteiro, visita diária também. E as varinas! Essas iam de madrugada à lota da vila arrematar as tecas; punham as canastras nas camionetas de carreira aí pelas nove, dez horas e espalhavam-se pelos lugares, cada uma pelo seu, chegando a meio da manhã, para o peixe ainda servir para o almoço. O azeiteiro vinha semanalmente ou de 15 em 15 dias; trazia azeite, vinagre, óleo, petróleo, álcool desnaturado… Até o amolador e o funileiro eram visitas periódicas!
            Uma vez por semana, as donas de casa rumavam à «praça», nome por que se designava o mercado saloio. «Saloios» eram, na Idade Média, os habitantes dos arredores de Lisboa que a abasteciam de produtos hortícolas. Na praça era mesmo o que se vendia. Fresquíssimo. Da época. Colhido no dia anterior. Tomate no tempo do tomate, uvas no tempo das uvas, melões no tempo dos melões, nabos no tempo dos nabos…
            Conheciam-se quem vendia. Regateava-se, quando se tratava de freguesa certa… Ir à praça era um ritual. Aí se reencontravam amigas, se sabiam as novidades, à boa maneira das feiras medievais…
            E esse recuar no tempo fez-me recuar mais também: para o período negro, do racionamento, que se viveu no após-guerra. Cada família tinha direito a uma porção de azeite, de açúcar, de petróleo, de sal… Havia senhas e ia-se aqui e além, na esperança de poder ser aviado, porque nem sempre havia de tudo…

2. O pânico dos anos 60
            Este panorama tranquilo viria a ser perturbado com o aparecimento dos supermercados e, depois, com as «grandes superfícies». Cascais foi dos primeiros a ter uma loja desse tipo, o Pão de Açúcar, inaugurado em Setembro de 1973 (do actual grupo Auchan) e dos primeiros a ter um shopping center (Maio 1991).

            Antecipando-se à anunciada dificuldade do comércio a retalho – os padeiros já haviam criado, em Outubro de 1953, a União Panificadora de Cascais (hoje, Panisol) – os pequenos comerciantes uniram-se n’A Luta (Cooperativa Abastecedora de Produtos Alimentares do Concelho de Cascais), que, mediante a compra por atacado, permitiria manter os preços baixos e fazer face a esses «monstros» do comércio.

            Uma resistência que, arduamente, se manteve por mais de uma década. Sucumbiria depois, mormente com a internacionalização do comércio (hoje, comem-se melões nem se sabe bem donde…) e as facilidades concedidas aos chineses…

            Morte anunciada? Creio que não.

 

3. O valor do património

            Também nos produtos comerciáveis, o conceito de património entrou, sobretudo quando – a todos os níveis da população – se começou a compreender que, além da qualidade, o produto local ganhava «substância», isto é, começava a impor-se de novo. Já se preferem a laranjas do Algarve, os melões de Almeirim, as azeitonas de Elvas, os ananases dos Açores, o pão alentejano...

            Por outro lado, as vicissitudes financeiras das famílias – os filhos a não terem emprego, os idosos a serem cada vez mais, a permanente instabilidade do trabalho, a falta de confiança nos governos regidos mais por interesses partidários do que pelo bem-estar do Povo… – essas vicissitudes obrigaram, de certo modo, a um retorno ao valor da comunidade, do espírito de vizinhança e, consequentemente, a loja de bairro  voltou a ganhar preponderância.

            Nesse caminho estamos.

            Nesse caminho, auguro eu que continuemos, inclusive para salvaguarda dos nossos patrimónios. E sublinho nossos, porque, neste caso, já não é de Cascais que falo, mas, inclusive, da mais recôndita aldeia do interior alemão. A todos cabe essa missão!

 

                                                      José d’Encarnação

Publicado em Portugal-Post [Correio Luso-hanseático], Hamburgo, 66, Dezembro 2019, p. 38-40. 
O texto tem versão alemã – Vom “Tante Emma-Laden” zum Massenbetrieb – Am Beispiel von Cascais – da autoria de Karin von Schweder-Schreiner. A publicação original impressa pode ser vista e descarregada em: http://hdl.handle.net/10316/88469  
 
Varinas (Foto do Museu do Mar de Cascais)
O mercado de Cascais num antigo desdobrável turístico
O mercado da Vila de Cascais na publicidade institucional
 

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

20 anos da Orquestra

Ninguém apostaria, há 20 anos, que o projecto tivesse pernas para andar. Tantos semelhantes haviam nascido para se dissolverem depois, mesmo antes de largos meses andados. Este, não. O projecto OCCO – Orquestra de Câmara Cascais Oeiras, 20 anos passados, recomenda-se.
      Vários factores contribuíram para o êxito. Primeiro, a coragem e perseverança sem desfalecimentos do Maestro Nikolay Lalov; depois, a capacidade que teve de envolver duas câmaras municipais, convencendo os respectivos presidentes de que era aposta ganha; em terceiro lugar, porque o Maestro se soube rodear de colaboradores activos como ele, mais com o olhar na aurora do que na moribunda dolência do pôr-do-sol.
      Marcelo Rebelo de Sousa foi dos primeiros a acreditar. Aceitou ser presidente da Assembleia-geral da associação criada para suporte das actividades e, como teve ocasião de o dizer no concerto comemorativo do passado dia 30 de Novembro, não está nada arrependido e muito se congratula com o percurso feito. Contente também toda a equipa de Lalov, onde se inclui a esposa e a filha, Lilia Donkova, 1º violino, que desta vez nos brindou com um exímio solo.
      Começou a sessão com a projecção de um filme, sugestivamente intitulado «20 anos a crescer», em que se traçou uma panorâmica do que tem sido a actividade da OCCO. Nikolay Lalov falou dos projectos sempre a despontar, culminando – se assim podemos falar – com a abertura do Conservatório de Música de Cascais. É que a proposta não foi apenas a de manter uma orquestra residente que dá concertos de vez em quando, conforme o programado: há também a vertente pedagógica! Aliás, praticamente cada executante da OCCO é, simultaneamente, professor. Ou seja, estamos perante um alfobre!
      Nunca será de mais realçar, por exemplo, a importância que teve a criação da Orquestra Sinfónica, porque, além dos quatro concertos anuais (as quatro estações, teremos no dia 14 o de Inverno), outros há; e cada concerto constitui mais uma experiência única que engrandece os executantes, na medida em que o rigor sempre foi paradigma do trabalho do Maestro.
      E, por se falar em escola, recordar-se-á que, no concerto do dia 30, actuaram igualmente – na segunda parte, com o maior brilhantismo – o Coro de Câmara do Conservatório de Música e um coro misto em que se incorporaram alunos do Conservatório e do ensino articulado da Escola Secundária Frei Gonçalo de Azevedo. Tive ocasião de trocar impressões com o director desta escola, sediada no Bairro Massapés (Tires), Prof. David Sousa, que manifestou o seu entusiasmo pelos singulares resultados que a introdução da Música, quer a nível coral quer de aprendizagem de instrumentos, logrou atingir, mormente no domínio educativo e de realização pessoal do aluno. Congratulamo-nos.
      Um encanto ouvir o programa, desta vez integrando textos mais conhecidos do que É habitual. E se a interpretação de Tiago Vicente, à guitarra, do adágio do concerto «Aranjuez» encheu de mui serena ternura o auditório, toda 1ª parte nos envolveu: de Beethoven, a abertura do bailado «As Criaturas de Prometeu»; de J. Massenet, a meditação da ópera «Thaïs»; de Bizet, dois andamentos da Suite Arlésienne nº 1. Com os coros, a 2ª parte foi vibrante, a começar na marcha militar de Schubert e a terminar no Hino da Alegria, de Beethoven.
      Concerto de antologia!

                                    José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 309, 2019-12-11, p. 6.

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

A Casa do Arqueólogo


           De tudo o que vem – e muito é, como se verá – no volume 27 de «Adufe» referente a 2019, este título me chamou particularmente a atenção e fui logo ler, deixando para trás outros temas a que já se voltará.
            Recordava-me de, no acompanhamento que sempre fiz questão de ter em relação aos vestígios romanos de Idanha-a-Velha (a ‘civitas Igaeditanorum’ dos Romanos), se haver saudado a possibilidade de casas que o Município comprara junto à muralha poderem vir a ser aproveitadas para apoio substancial à investigação. Algo de inovador e mui precioso, atendendo a que Idanha-a-Velha está longe, nos confins do Interior, e de muita coragem se deve vestir quem se decida a lá passar algum tempo a estudar.
            Para além de espaço de reserva para alguns materiais arqueológicos que sempre se encontram, haveria um laboratório para o seu adequado tratamento e, sobretudo, alojamento. Diz no «Adufe» que é uma «casa rústica, recuperada com a subtileza e os traços do seu lugar – dispõe de um quarto de casal, outro individual, com duas camas e uma divisória».
            Fiquei encantado ao verificar que o sonho se concretizara. Agora, é habitar o local. É mostrar como, ainda em pleno dealbar de um século incorrigivelmente urbano, a vida rural, em plena comunhão com a Natureza e no estudo pelo que os Antigos nos legaram, se pode antojar como realidade a viver.
            Aliás, a leitura de mais um número desta revista cultural de Idanha-a-Nova proporciona-nos, na verdade, mil e uma razões para saber que o campo é bom lugar de acolhimento. Na entrevista a Francisco Sarmento, representante em Portugal da ONU para a Agricultura e Alimentação, empenhado no combate às «faces negras da globalização: a fome e a má alimentação» se apontam, por exemplo, caminhos para «quebrar o ciclo da insegurança alimentar e nutricional»: a vontade política e a concertação entre os actores relevantes.
            Lugar ainda para ilustrada reportagem sobre o Bodo de Monfortinho; sobre a empresa Sementes Vivas (nome traduzido, certamente pelo ‘senhor Google’, como ‘Living Seeds’!…), sediada em Idanha-a-Nova desde a sua criação em 2015, destinada a promover a produção de sementes ‘100% biológicas e biodinâmicas’; sobre o ímpar acervo de arte sacra do núcleo museológico da Misericórdia de Proença-a-Velha… E convivemos com a pacatez dos valados de pedra solta, e as patas, os pêlos e os olhos de várias e preciosas espécies de aranhas.
            «Adufe» é assim: um olhar para o nosso Interior profundo. Como deve ser!

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 766, 2019-12-01, p. 12.

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Um hino à literatura

            Vim no alfa, a regressar de Loulé, com Lídia Jorge. A escritora ia de abalada para Aveiro, onde teria uma intervenção a favor da importância da Literatura contra a pressa que hoje se tem e nada se lê como deve ser e nos impingem gato por lebre. Não foram bem estas as palavras, estou a citar de cor, que foi a ideia é que me ficou.
             Rejubilei.
            Não apenas porque perfilho a sua opinião, mas também porque esse fora o mote principal da cerimónia a que, no dia anterior, eu assistira no Casino Estoril. A cerimónia em que se entregaram os prémios literários de 2018: a Carlos Vale Ferraz, autor de «A Última Viúva de África» (Prémio Fernando Namora); a Judite Canha Fernandes, que escreveu «Um passo para Sul» (Prémio Revelação Agustina Bessa-Luís); a Maria do Céu Guerra, Prémio Vasco Graça Moura – Cidadania Cultural.
            Longo e denso foi, por exemplo, o discurso de Carlos Ferraz. Dizia-me ele no fim, quando o cumprimentei, que se lembrara das palavras daquele galardoado: «Eu sei que tenho apenas 30 segundos para falar. Mas já que estou aqui pela primeira vez e é bem possível que seja a última, acontece que tenho algumas ideias para expor e não vou gastar apenas os 30 segundos!». Ele também não gastou só esses e foi longamente aplaudido, pela estrénua defesa que fez dos agentes culturais, tão vilipendiados pelas super-estruturas nacionais. Respigo algumas das suas palavras:
            – Repudio os «anátemas populistas contra os intelectuais»;
            – «Para mim, o romance é uma história; quero deixar a minha visão do mundo no tempo em que me foi dado viver»;
            – Eu «escrevo como sinto, enfrentando o mundo», porque cabe aos artistas confrontar os seus concidadãos contra as realidades cruéis, cumpre-lhes «lutar contra a anestesia do provincianismo», «desmascarar os falsos profetas».
            – «Que o belo não nos iluda e não nos prive da realidade!».
            Para Judite Fernandes, importa não perder a relação com a História e é através da literatura que repetidamente se visita a vida. Age-se, sublinhou, como se «a palavra de ordem fosse competir»…
            No mesmo sentido se pronunciou Maria do Céu Guerra: importa chamar a atenção para a realidade que se vive e para a necessidade de o Teatro – como se disse da Literatura – ser dela um eco permanente.
            «A Barraca», a companhia que criou e a que com sacrifício continua a dar vida, muitas vezes «ao arrepio das entidades do Estado», é, em seu entender, um Teatro-Cidadão. Um teatro que se bate pela liberdade – sempre! Que se bate por abrir perspectivas, mormente para os jovens. Que faz escola. Que assume a responsabilidade de defender a nossa língua, capaz de espalhar mensagens de luz. Teatro «para ser visto por muitas pessoas». Um teatro que tem casa e que luta para a manter, contra o constante sobressalto do desemprego. Um teatro-cidadão que trabalha horas sem fim. Que chama a atenção para o facto de ser o Homem «o único animal que dá cabo do local onde foi posto». Que adopta a «rejeição activa da indiferença!».
            Em dois dias e em lugares diferentes, de norte a sul, o mesmo veredicto: clamar! E, ao verificar assim de supetão tamanha unanimidade, não pude eu próprio deixar de me fazer eco, ainda que em palavras pobres, o que outrem soube tão bem proclamar. Felizes de nós por termos quem assim nos abana, como quem diz: «Acorda, acorda!»…
                                                           José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 307, 2019-11-27, p. 6.

Judite Fernandes e Guilherme d'Oliveira Martins
Maria do Céu Guerra e Mário Assis Ferreira
A foto da praxe com os premiados
À conversa com Carlos Ferraz
Fotos gentilmente cedidas pela Gabinete de Imprensa da Estoril.Sol.

domingo, 24 de novembro de 2019

Os cantoneiros

             Guardo, entre as memórias de infância, as conversas havidas com o Zé Duque e o seu colega. Eram cantoneiros da estrada que passava junto da minha casa aqui em Cascais e eu gostava de ver como trabalhavam para manter as valetas limpas, para remendarem os buracos no macadame. Parece-me estar ainda a ouvir o som cavo do pesado maço de madeira com que acamavam as pedras no saibro, devidamente regadas com um também pesado (para mim…) regador de zinco. Lembro-me ainda de algo que, para a minha meninice, era curioso: uma enorme «chave» para abrirem a puxada de água mais próxima, onde ajustavam uma torneira. Para mim, uma maravilha!
            Havia também estacas de ferro com uma placa a identificar o cantão. Devia ser um número, decerto. O cantão era a porção de estrada adscrita a cada cantoneiro.
            Evocações estas me surgiram ao receber de Vítor Barros – bem haja! – a foto anexa. A pedra está «na nossa Câmara Municipal, e junto a algum mobiliário e documentação vindos de uma casa de cantoneiros na Nacional 2». E acrescentou Vítor Barros:
            «Seria bonito ver uma antiga casa de cantoneiros reconstruída e sabermos um pouco como era essa vida e a autoridade que na altura detinham...».
            Sei haver essa intenção. Aplaudo-a com ambas as mãos, porque – se não erro – um memorial dessa esquecida actividade, porventura chegada até quase ao 25 de Abril, não existe em nenhum dos concelhos portugueses. S. Brás seria, mais uma vez, pioneiro!
            A placa diz:
OBRAS PUBLICAS
                                                                 DESTRICTAES
                                                                           1885
            Identificaria, sem dúvida, uma renovação da via – neste caso, a EN 2 – então realizada. À falta de outra documentação, esta é, por isso, bem significativa. E mostra que, à época (seria Fontes Pereira de Melo, interinamente, o Ministro do Equipamento Social), mostra, primeiro, que aos distritos eram atribuídas competências em termos viários; e, segundo, que eles faziam gala em mostrar obra feita!

                                               José d’Encarnação

Publicado em Noticias de S. Braz [S. Brás de Alportel] nº 276, 20-11-2019, p. 13.

sábado, 16 de novembro de 2019

Juízos temerários

             Teve-se conhecimento, a 6 deste mês de Novembro, através de reportagem televisiva, que um bebé recém-nascido – teria umas seis/sete horas de vida fora do ventre materno – fora encontrado num contentor ainda com o cordão umbilical.
            Louvou-se o sem-abrigo, que deu com a criança. Eu acentuaria também um outro aspecto: é que, sem tecto, com um filho de 16 anos, o sem-abrigo estava mais atento do que os apressados cidadãos, que andamos sempre a correr. Para ele, quiçá, o tempo passara a ter outra dimensão e talvez também olhasse para o contentor com um olhar bem diferente do nosso. Recordo a máxima que ouvi há dias e que anotei, pelo seu significado profundo: «Com quanto mais pressa andam menos vagar têm!». Para o sem-abrigo haveria todo o vagar do mundo para si, que não para descobrir bicho ou pessoa que ali estaria a gemer. Sabia o que era sofrer, o que um gemido trazia dentro – e não descansou enquanto não viu. E salvou uma vida. Quiçá tenha salvado igualmente a sua, porque jamais esquecerá o que se passou e ganhará, sem dúvida, outro ânimo para encarar revezes.
A pintura «Jesus e a pecadora»
            A outra série de comentários – os mais frequentes – prende-se com a atitude da mãe ou de quem para ali atirou o menino nu. Claro, de imediato a comparação: nem os animais assim se comportam!... Um dia, estou certo, se saberá o que, na realidade, aconteceu, que terrível drama determinou um acto tão tresloucado.
            A quem se hão-de atirar pedras? Numa passagem do Evangelho (João, 8, 7), vem a frase de Jesus Cristo: «Quem de vós estiver sem pecado que lhe atire a primeira pedra». Conhece-se bem o episódio. E a frase permanece duma actualidade pungente. Não, pedras não podem atirar-se a este ou àquele, porque – disso estou certo – a atitude, solitária ou não, resultou de todo um conjunto de circunstâncias repletas da maior gravidade. Apetece repetir a estafada do pastor anglicano John Donne, estafada, sim, mas nunca suficientemente consciencializada em casos como este: «Nenhum homem é uma ilha».
            Não é.
          Partiu essa mãe, solitária, imaginamos nós, convencida de que estava só e o seu frágil bote naufragara sem salvação possível nem eficaz SOS. Ninguém lhe ouviria os lamentos, ninguém serenamente escreveria no chão, diante dela, e lhe diria depois, olhos nos olhos: «Passou, vamos recomeçar! Dá cá o braço!». Mas… isso vai mesmo acontecer! E os juízos temerários hão-de esfumar-se de vez…

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 765, 2019-11-15, p. 11.

Post-scriptum: Esta crónica foi escrita no final da tarde do passado dia 7, ainda nada se sabia do que, na realidade, acontecera. Apenas que o recém-nascido fora encontrado. Enviei-a para o jornal, por correio electrónico, às 18.39 horas.

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

O totem

             Nunca ouvira chamar totem à placa que ora se põe à entrada de monumentos para os identificar e, até, para, em poucas palavras, deles se contar a história.
            Sempre ouvira designar totem a representação de divindade ou ente sobrenatural colocada no acesso ao território dos índios. Isto no tempo dos filmes de cowboys da minha juventude. O totem era sagrado, defendia-se até à última, qual bandeira em campo de batalha. Assim plantado, não apenas impediria a intromissão do inimigo como abençoaria os amigos, gerando em torno de si benéficas radiações protectoras.
            Muito se discutiu, por exemplo, acerca do significado das esculturas achadas nos castros do Norte de Portugal, denominadas «guerreiros lusitanos». Correspondiam, de facto, à descrição lida nos textos antigos: protegiam-nos pequeno escudo redondo, empunhavam curto punhal, ostentavam num dos braços braceletes («vírias», palavra de que poderia ter derivado o nome Viriato). De pé, estáticos, qual guarda no Palácio Real de Buckingham… Deuses seriam? Ou apenas a representação ideal do chefe do castro, a impor respeito aos de fora?
O guerreiro lusitano, qual totem do povoado
            Assim longamente se discutiu até que, na Citânia de Sanfins (Paços de Ferreira), se encontraram pés esculpidos numa penedia de ingresso, dando a entender que a estátua dali fora arrancada. Esclarecido ficou o enigma: os guerreiros lusitanos eram os guardiães de castros e citânias. Aliás, não é sem motivo que se dá de caras com um deles à entrada do Museu Nacional de Arqueologia, em Belém, como que para dizer: «Eu protejo o monumento e seu recheio!».
            Gostei, pois, do uso do vocábulo totem. Pelo seu significado e, de modo especial, por se haver optado por um termo português, ainda que derivado – através do inglês, mas há muito tempo!... – de vocábulo «indígena da América do Norte, provavelmente da família do algonquino», lê-se no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa. São os Algonquinos uma primitiva tribo do Canadá. Não gosto é da conotação que outro dicionário lhe dá: «Deus primitivo, informe e grosseiro, dos selvagens».
            Vieram estas considerações a propósito de se haver designado totem a placa ora colocada junto à porta de entrada nos Paços do Concelho de Cascais. Dir-se-ia que assim se sacralizava e se protegia o espaço. O espaço administrativo e o cultural, do Museu da Vila. Acho bem. Assim os espíritos bons nos protejam!
            E motivos há para essa protecção, tanto num domínio como no outro. E se do administrativo não ouso falar, o cultural não posso, mais uma vez, deixá-lo em silêncio, porque assim se concretizou uma aspiração de longa data. Era uma vergonha Cascais, vila pioneira em tantos domínios, não ter um espaço a contar os aspectos mais significativos da sua história. Relembre-se que, ao deitar-se abaixo o Pavilhão do Dramático, se disse que aí se faria o museu – e não se fez; que, ao remodelarem-se as Casas da Gandarinha, aí se faria o museu – e não se fez; que, ao pensar-se no aproveitamento da Fortaleza de Nossa Senhora da Luz, aí se faria o museu – e não se fez.
            Esta odisseia teve, portanto, a meu ver, um final feliz. E é visita que se impõe!
            A propósito: já tirou lá a sua fotografia como se em 1900 estivesse? Experimente!

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 305, 2019-11-13, p. 6.

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Um sábado… musical!

               Sábado, 9 de Novembro, teve, em Cascais, inúmeras iniciativas em que a música desempenhou papel preponderante. A música entretenimento e a música envolvida numa perspectiva tendencialmente cultural. A duas me vou referir, pelo seu carácter fora do comum.

Luísa Tódi
            A primeira não foi em Cascais, mas na vetusta solenidade da Sala Ogival do Castelo de S. Jorge, em Lisboa. O Doutor José Maria Pedrosa Cardoso, maestro e musicólogo, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde leccionou, entre outras, a cadeira de História da Música, apresentou aí o livro A Minha Irmã Luísa Tódi, da autoria da romancista Helena Ventura. Pedrosa Cardoso reside nos limites do concelho de Oeiras com o de Cascais e Helena Ventura vive em Cascais há trinta e cinco anos. Assim justifico eu a tónica «cascalense» do evento, tornado fácil graças à gentileza da Dra. Maria Antónia Athayde Amaral, actual ‘castelã’ em S. Jorge.
            Não houve música nem ópera, portanto, mas sim a história duma grande mulher, que guindou o nome de Portugal pelas mais conceituadas salas de espectáculos das capitais europeias.
            Pedrosa Cardoso salientou esse prestígio e historiou, a traços largos, a vida da cantora, tendo lamentado no final – como a própria Autora também – o substancial esquecimento a que esta «voz» foi votada. Disse-se, por exemplo, que nem digna sepultura teve e há que devidamente reabilitá-la.
            A Minha Irmã Luísa Tódi – narrativa, como se compreende, posta na boca da irmã da biografada – é mais um dos romances históricos a que, com assinalável maestria, Helena Ventura lançou mão. Através da sua escrita, faz-nos reviver ambientes e personagens. Não é, aliás, inocente o titulo foi escolhido: pretende-se cativante aproximação, quer-se que o leitor se deixe seduzir, entre na acção, Veja-se logo o terceiro parágrafo:
            «Ninguém deixava de notar a singularidade dos dotes vocais de Luísa, mas só o rabequista ficava ofuscado pelo brilho intenso daquela luz, a soletrar o sentimento embrulhado em cada nota. Basta, Saverio, dizia Scolari irritado, com menos um membro no conjunto dos rabequistas. O que se passava com aquele homem adulto, a estudar a prestação das mais nova das promessas do Teatro do Bairro Alto? Ficava fascinado com a metamorfose da donzela de corpo inacabado, como se aquela voz lhe revelasse a sua natureza íntima e ele assistisse, comovido, ao palpitar de umas asas sedentas de amplos voos».
            Ficamos cativados nós também por esse «corpo inacabado»; compreendemos o êxtase do rabequista e, embalados pela serena fluidez da prosa, queremos saber mais e não despegamos da página!
            Cativante música das palavras a enaltecer a diva da ópera, que, desta sorte, mais próxima de nós acabamos por sentir!
            Entre a assistência esteve o médico Mário Moreau, de 93 anos, um dos biógrafos mais completos de Luísa Tódi (deve-se-lhe a obra, em três volumes, Cantores de Ópera Portugueses), que, apesar da sua avançada idade, não quis deixar de estar presente, para saudar a autora.
A assistência antes do começo da sessão
Pedrosa Cardoso, a autora e o editor
O Dr. Mário Moreau a embrenhar-se na leitura
Fado íntimo ainda mais!
            O outro espectáculo teve cenário bem diferente, mas também ele pejado de história e tradição: a igreja matriz de Cascais, alumiada a rigor, de modo que refulgisse mais do que nunca a talha dourada dos seus altares.
O templo não se transformou em casa de fado nem retiro. Foi refúgio. Aquele lugar para onde se vai numa vontade de isolamento, de saborear melhor cada instante.
Andou bem o grupo de fados "AcordaR", uma das secções do grupo cascalense "Cantares da Terra", ao ter solicitado ao prior Padre Nuno autorização para ali cantar fado durante uma hora – das 21.30 em ponto às 22.30! Um cantar profano a profanar o sagrado? Não. Ninguém o sentiu assim, porque tudo se passou em clima quase de devoção.
Poderá discutir-se o conceito de «Fado Polifónico», quando, na realidade, o que aconteceu foi Marta Garrido ter usado o seu saber para dar vozes e não uma voz apenas a fados tradicionais.
Foi concerto agradável de seguir e sentia-se bem a alegria dos intérpretes por usufruírem da esplêndida acústica do templo.
            As vozes foram de Beatriz Santos, Margarida Margato, Madalena Santos (que também ia fazendo as apresentações) e de Mafalda Duarte. Nos instrumentos, João Chuva esteve no cajon (a sublinhar mui discretamente o ritmo), Pedro Pechirra e Marta Garrido nos acordeões, sendo Marta Garrido voz também e a autora dos inovadores arranjos musicais; Hugo Ferreira, no violino.
            Um serão bem agradável, devotamente aconchegado. 

                                                               José d’Encarnação
 
As cantadeiras
Os músicos
A assistência na igreja matriz de Cascais


terça-feira, 5 de novembro de 2019

O cozinheiro popular

             Adrega-nos encontrar, por vezes, algo que nos faz pensar. Vocábulos como «popular», «recreativo», «familiar» são tão do nosso quotidiano que, amiúde, nos passa despercebido o seu significado último.
            E o que ora me fez parar foi aperceber-me de que uma publicação de 1913, cuja imagem da capa me remeteram, estava inserida numa série intitulada Biblioteca Popular Recreativa e Familiar.
            Lembrei-me de imediato ter frequentado, em jovem, os bailes duma Sociedade Recreativa e de Instrução Familiar. E vi também que, em Lisboa, com data de 1836, se publicou o nº 1 (volume V) duma Bibliotheca Familiar e Recreativa.
            Era a terminologia habitual, eram os paradigmas que se procuravam inculcar.
          Despertou-me, pois, a atenção «O Cosinheiro Popular dos Pobres e Ricos ou o Moderno Thesouro do Cosinheiro». A Primeira Parte, a dos Pobres, contém «250 fórmulas de cosinhados simples, saudaveis e economicos», numa coordenação de D. Michaella Brites de Sá Carneiro, «chefe de cosinha portugueza na cidade do Porto». E esta é já a «terceira edição augmentada»!
            Atentar-se-á, ainda, no facto de a publicação ter sido feita na Livraria Portugueza, a editora de Joaquim Maria da Costa, situada nos números 55 e 56 da Largo dos Loyos, da cidade invicta.
            Há palavras que nos soam actuais e que nos perguntamos até: «Já então se pensava assim?! E como foi possível que, mais de um século passado, elas tenham entrado de novo no vocabulário corrente como se de novidade se tratasse?».
            Não, não estou a referir-me à oposição pobres/ricos, que hoje se mantém e, caso dela não nos lembrássemos, lá estava a Caixa Geral de Depósitos a recordar-no-la, quando propõe uma tabela benéfica para ricos e outra, dura, para os pobres. Refiro-me aos adjectivos «simples, saudáveis, económicos», uma trilogia bem actual e bem do nosso agrado. E a um outro: «portuguesa». Quando, por todo o País, a preocupação maior, nesse âmbito da culinária, incide na vontade de manter a tradição, de mostrar o que é típico, esse adjectivo «portuguesa» vem a calhar, mesmo que os nossos cozinheiros (nessa altura, era «a chefe»!...) se afeleiem a empratar os acepipes, um naco aqui, outro acolá, bota um raminho de alecrim e outro de hortelã, à mediterrânica (tem que ser!), à… gourmet! (pois então!...).

                                                                            José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 764, 2019-11-01, p. 11-12.

António Salvado em nova reedição

              Feliz o poeta que, vendo os seus livros esgotados, tem a possibilidade de os reeditar. Essa proeza – permita-se-me o termo, adequado nos tempos que correm – logrou alcançar António Salvado.
            Sirgo IV, que ora reúne nada menos do que 19 títulos esgotados – o 1º, «A Flor e a Noite», data de 1955 e o último desta série «Igaedus (pelos sulcos da Egitânea)» viu a luz em 2015 –, tem esse condão de nos servir, em volume de mais de 620 páginas, pratos suculentos, saborosamente confeccionados em mais de meio século.
            Sirgo IV beneficiou, mui justamente, do apoio da Câmara Municipal de Castelo Branco e do Instituto Politécnico de Castelo Branco. Uma publicação com a chancela albicastrense de RVJ-Editores, ISBN 978-989-54396-8-3, 500 exemplares.
            Sirgo é outro nome do bicho-da-seda e, por isso, antigamente, sirgo era o nome da seda também. Além disso, explica o dicionário que com esse vocábulo se designa a seriguilha, ‘pano grosso de lã, sem pêlo’.
            E o leitor, de repente, antes mesmo de abrir o livro e quedando-se na imagem da capa, congeminada a partir de uma pintura de Costa Camelo, pergunta-se pela razão do título. Será que o autor a dá algures? Ou preferirá que nós o imaginemos na gestação tranquila das metamorfoses, ao longo dos seus dias e anos? Ou, modestamente, preferirá dizer que é lã grosseira o que escreve, ainda que lhe possa, a ele próprio, trazer aconchego o escrever, tecido mal amanhado?
            Sim, pode interessar-nos a opinião do autor acerca do que exarou no papel. Uma opinião de agrado, certamente, doutra forma não se exporia de novo e preferiria a atitude de Bocage: «Rasgo os meus versos!». Não rasga. Mostra-os de novo. Há quem não goste de se ouvir e deteste ler o que outrora escreveu. É claro que, 50 anos passados, não se voltaria a escrever assim, outro é o pensamento, outra a visão da realidade envolvente. Nesse caso, porque não rasgar? Compreende-se porquê: o Homem – e, por maior razão, o Poeta! – passou por essas diversas fases e delas foi deixando testemunho através da escrita.
            E António Salvado nunca pôde viver sem escrever! Sem poetar. Sem olhar para a realidade com olhos críticos, interventivos, semeando de Beleza os seus dias, por mais amargos que se lhe antojassem. E disso urge dar testemunho. Um volume como este marca o caminho que se fez andando, como quis um outro António, o António Machado, «Caminante, non hay camino, se hace camino al andar!». Mais do que uma antologia, Sirgo IV é, de facto, uma demonstração de vidas. Não uma vida só, a do seu autor, mas do conjunto de vidas que, ao longo dos anos, junto de si estiveram. Que o Poeta sente-se, é bem de ver; sente, porém, os outros também.
            Não resisto e abro. Sem preocupação de páginas nem de datas. Na tentação de me surgir logo um motivo de sedução.
            E surgiu.
           Na página 205, o poema chama-se «Após o combate» e tem dois tercetos. Não sei que combate foi, se duma guerra nossa, no Ultramar, se a da Coreia ou Vietname. Vejo o retrato e (que o Poeta me perdoe!) e reproduzo-o em forma de prosa:
            «De olhos fechados, eles vigiavam-se, desfeitos quase em pó; e, lado a lado, sucumbidos ao fogo da metralha, difícil distinguir ali, estendidos naquela solidão, feroz, terrível, quais os amigos, quais os inimigos».
            Nesta prosa fica-se um pouco sem jeito; mas, para mim, que sou prosaico, assim com vírgulas, o texto sacode-me ainda mais e revela-se claro anátema contra as guerras, contra todas as guerras: o redemoinho do combate cego, a morte mesmo antes de o ser, o silêncio mortal que tudo reduz a cadáver, inútil o combate, afeições desfeitas, sentimentos perdidos… Para quê?
            Poeta é assim. Em palavras poucas, espaçadas por vezes para nos quebrar o ritmo e nos obrigar a parar, em palavras poucas, um mundo de emoções, mancheia de alertas a gritar!...
            A reedição impunha-se – que a Poesia é para se beber. A longos haustos!
           
                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Reconquista [Castelo Branco], nº 3841, 24-10-2019, p. 34.