sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

As mulheres de Pax Iulia queriam uma Deusa Boa!

            Era Fauno, segundo a mitologia romana, o deus dos campos e dos bosques. Nestes últimos, poder-se-iam ouvir estranhas vozes que dele, ao que parece, partiriam a anunciar acontecimentos nefastos. Amiúde se fala dele no plural: eram as ninfas dos bosques perseguidas por chifrudos faunos de pés de cabra, qual Lobo Mau à espreita da Capuchinho Vermelho... Urgia, pois, estar alerta contra as suas arremetidas e, porventura, foi por isso que se gerou hábito de o representar em pedras de anel, para o exorcizar, como se vê numa achada na villa romana de Caparide, em Cascais.
Fauno a tocar flauta

            Tinha Fauno uma esposa, cujo nome acabou por se omitir, porque, casta e fiel ao seu marido, jamais saía de casa, se deixou cativar, um dia, por um jarro de mui excelente vinho doce, que lhe apresentaram. Bebeu deliciada e ficou, naturalmente, com um grãozinho na asa…. Vendo-a nesse estado, Fauno enfureceu-se, não lhe perdoou e fustigou-a até à morte com um ramo de mirto. Caído em si, ao vê-la exangue, o arrependimento sobreveio e promoveu o seu culto como Deusa Boa. De acordo com outra versão, essa que foi depois a Deusa Boa não era esposa mas filha de Fauno, o qual a tentou seduzir; não tendo conseguido os seus intentos, usou dum estratagema para os conseguir: a ambos transformou em serpentes! O que os omnipotentes deuses faziam!...
Seja como for, a Bona Dea – assim se diz em latim – depressa ganhou o entusiasmo das mulheres romanas. Assim, no princípio do mês de Dezembro, feita prévia abstinência e sob orientação das Vestais, reuniam-se em casa do cônsul ou do pretor, levando as mais variadas flores (com excepção do mirto). Celebrado o sacrifício em honra da deusa, a festa assumia uma tonalidade cada vez mais sensual, sob influência do vinho, da música e das danças, degenerando facilmente em orgia. Nenhum homem era aí admitido.
E porque vem ao caso falar aqui de Fauno e da Bona Dea?
É que aconteceu que - no âmbito do projeto de requalificação urbana da Rua do Sembrano, em Beja, com vista à construção do museu de sítio que ora existe no local, em pleno centro histórico, portanto, da antiga colonia romana de Pax Iulia – aí se realizaram escavações arqueológicas prévias, nas décadas de 80 e 90 do século passado, da responsabilidade de Susana Correia e José Carlos Oliveira e, numa última fase, de Carolina Grilo.
Daí resultou que, no decorrer da abertura de uma vala para o saneamento, se identificou um pedaço de pedra com letras, reutilizado como tampa de um antigo coletor entre a Rua do Sembrano e o Largo de São João. Tratava-se de um bloco rectangular de mármore cinzento, cuja face dianteira fora mui cuidadosamente alisada para receber a inscrição, e que, pelo seu aspecto, teria servido originalmente como lintel de um pequeno templo.


Feito o desdobramento da inscrição e tendo em conta as características da paginação, optou-se por aí ler o seguinte:

BONA[E DEAE] / [IV]LIA L(ucii) L(iberta) SAT[VRNINA?] [D(e) S(ua) P(ecunia) D(ono) D(edit)] [?]

Inscrição em latim, que poderá traduzir-se desta forma:

À Boa Deusa. Júlia Saturnina, liberta de Lúcio, ofereceu a expensas suas.

Por conseguinte, uma antiga escrava da família Júlia – uma das mais conceituadas famílias da colónia, fundada precisamente por Júlio César – decidira mandar construir um pequeno templo em honra da divindade da sua devoção.

            Da sua e, sem dúvida, também das mulheres de Pax Iulia. Ficava seguramente o templete num dos principais bairros urbanos e essa atitude de Júlia Saturnina terá concitado em seu redor o elemento feminino da urbe, que, desta forma, podia organizar os seus convívios, a pretexto celebrarem a Bona Dea.
Sabemos que assim acontecia na Península Itálica e na Gália. Este é, porém, o único testemunho desse culto na Hispânia romana, o que confere enorme valor documental a este, aparentemente bem singelo, fragmento epigrafado, mormente porque datável dos primórdios da existência da colónia, no século I da nossa era.
Tal facto é, ainda, mais saliente do ponto de vista histórico, porque desses cultos mistéricos, reservados, já se conheciam vestígios em Pax Iulia: uma inscrição dá conta de que elementos vindos de Braga formaram um grupo, o sodalicium Bracarorum, para honrar o deus Sol; uma outra informa que, em cerimónia ritual presidida por um sacerdote, dois membros da mesma família se devotaram à Mãe dos Deuses, Cíbele, depois de terem sido aspergidos com o sangue da vítima imolada.
Tudo nos leva a crer, pois, que, sob a capa da religião, eram os interesses socioeconómicos que também contavam para os membros dessas associações. Mais uma prova, portanto, da relevância social e financeira usufruída pelas gentes da colónia.
Há, porém, um dado que importa frisar: insignificante fragmento epigrafado, à primeira vista sem préstimo de maior, acabou por constituir notável contributo para a história da cidade na época romana. Sabemos que a cidade de Beja cresceu, ao longo dos séculos, por cima do aglomerado urbano erguido pelos Romanos. Muitas das pedras desse tempo foram sendo aproveitadas nas muralhas, nas casas e muitas jazem ainda no subsolo… Todo o cuidado é pouco para se salvaguardarem esses vestígios, tijolos que são do edifício da nossa memória secular!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Diário do Alentejo (Beja), 26-02-2021

 

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Uma rua sem graça nenhuma

            «A Rosa mora numa rua escura, num segundo andar escuro e costuma vestir-se normalmente de preto. A sua rua é uma rua a subir, estreita e cheia de prédios iguais a ela: escuros e velhos, cheios de reumático e humidade na alma. Não moram carros na sua rua e os vizinhos passam silenciosos carregados de anos e solidão. É uma rua fria, feia, e sem graça nenhuma».
            Trecho colhido a esmo do livro Viva a Vida, de Vítor Contreiras Barros. A tristeza que ensombra a velhice…

          Para documentar dois dos muitos aspectos com que este livro nos mimoseia. Primeiro, a apropriada acuidade da escrita. Estamos mesmo a ver a rua, a sentir-lhe a humidade nos ossos… Depois, a atenção do autor às pessoas. Vejo-o, ao longo do livro, de perene esferográfica na mão, qual pintor agarrado à tela – para contar o que vê, o que ouve, o que lhe desperta atenção. E tudo isso passar a escrito. Em partilha com a dor, a alegria, a vida – que ele nos incita a viver! Que viver é isso mesmo: estar atento aos outros, comungar, sentir. Na urgência, como diz, de «dar vida às palavras»!
            Logo a capa é um hino. A essa vida, porque aí se mostra a mãe, Gabriela, no trajar quotidiano das nossas mães e avós. Parece encostada, mas não está, a um valado de pedra seca, como são os nossos valados, com a alfarrobeira em frente; e, de mãos dadas (tinha que ser!), Petra e Núria, símbolos da vida por vir; está-lhe marcada na estranheza dos nomes a vontade de galgar horizontes doutros linguajares…
            A mãe, de quem deliciadamente escreveu histórias e memórias. Que delícia lê-las (p. 244-281)!
            Um livro que é retrato do S. Brás rural (ou do Algarve rural?), aberto, todavia, ao que os novos ventos lhe foram trazendo, nos sítios já com cafés, cabeleireiras, televisão e... Ora leia-se esta pincelada soberba:
            «Vestiu-se de preto, como sempre fazia desde que o seu Adérito partira, pegou na mala e no saco de asas amarelas que na última vez que tinha ido à vila comprara no chinês. Entrara lá por engano cuidando que iria ao café da Teresa e do Alberto e por vergonha acabara por comprar aquele saco. Até que não tinha sido caro e era bem bonito…».
            Que tal?
            Já confessei que o li de afogadilho. Tenho-o, contudo, à mão para, de vez em quando, o voltar a abrir, para me deliciar com estas «histórias, memórias, divagações e loucuras». E entre as divagações ou as loucuras perpassa aquele realismo mágico tão próprio das gentes do Barrocal. Nesta noite de Lua Cheia, naquela encruzilhada além, não viram vossemecês o lobisomem?...

                                                                                   José d’Encarnação

            Publicado em Notícias de S. Braz, nº 291, 20-02-2021, p. 13.

 

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Agrada-me a sua resistência…

        Não é porque dietistas proclamem os seus elevados benefícios para a regulação intestinal, prevenção de ataques cardíacos e diminuição da vontade de comer. É porque também me agrada a luta que tenho de travar para a partir. Precisa-se de escolher bem o jeito, aperta agora, tenta outra posição… E vem depois aquele estalar dolente, rachado, como num estertor raivoso: «Eu não queria que me abrisses!»…  

      
Habituei-me a comer duas ou três nozes enquanto a gente se arruma à mesa. E, para além dessa resistência que me agrada, confesso que não resisto a admirar a forma inteligente como o fruto por completo se torceu para aproveitar todos os recantos disponíveis. Inconcebível engenharia divina!
            Outro dia, escrevia-me Júlia Nery: «Estou a ler os textos, saboreando conteúdo e escrita, "como quem trinca  bagos de romã sumarenta"». Também a romã me encanta. Aliás, sempre encantou o Homem, os Romanos quase lhe prestavam culto como manjar dos deuses… Encanta-me o trincar, mas encanta-me sobretudo ver como a Ana precisa de ter um cuidado enorme, ao descascá-la, para que nenhum bago se esmague, tão imbricados eles estão, tão bem aconchegadinhos!...
            Tive a dita de ler em moço o livro «Belezas Ignoradas», do Dr. Thiámer Topth, professor da Universidade de Budapeste. Comprei a 2ª edição (Coimbra Editora, 1958), que ainda conservo, qual relíquia, a precisar de encadernação cuidada. Foi com ele que aprendi a adestrar o meu espírito de observação e a admirar tantas belezas que me passavam despercebidas. Comecei, inclusive, um dossiê de folhas soltas sobre animais, em que fui escrevendo tudo o que de curioso ia lendo.  Sobre a aranha, por exemplo, um bicho que sempre me cativou, tenho manuscritas nove páginas!
            Copiei do livro «Our animal neighbours», de Alan Devoe (McGraw-Hill, Nova Iorque, 1953, p. 228) a resposta a esta pergunta: como se explica que a aranha não fique pegada à teia como os insectos que ela quer apanhar? É que deixa sempre uma «zona livre», um terreno seguro onde ela se pode emboscar, sem qualquer risco de ficar agarrada! E eu ficara a saber, na página anterior, que a aranha fabrica um fio muito fino de que se serve para tecer os sacos onde guarda os ovos; outro, mais espesso, para apanhar as presas e, à medida que vai e vem na teia, continuamente produz um fio, que é o seu fio condutor! Pensava Ariadne que descobrira uma novidade quando dera ao seu apaixonado Teseu um fio para, desenrolando-o, ele se orientar na saída do labirinto de Creta!...

José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 793, 15-02-2021, p. 11.