sábado, 25 de fevereiro de 2017

Hoje, o café teve de esperar!

            Hoje, 25, o sábado acordou nublado, pardacento. Sem sol, a contrariar o dito popular. Eu trouxera para baixo, do pequeno-almoço, a malga onde, ao longo da semana, fôramos acumulando migalhas e espalhara-as por sobre a lioz do murete poente do jardim, sob a buganvília, ora ainda parca de flores, e junto ao jasmim, que promete ser alvacento festival florido na semana que aí vem.
           
Inesperada companhia
            Não esperávamos, porém, ter um almoço assim.
            Saboroso, o «bife à cavaleiro», muito mal passado, como recomendáramos à Paula; mas o inesperado foi a companhia. É que eles descobriram, nessa altura, as migalhas espalhadas pelo murete e foi um encanto de ver! O casal de rolas à compita, quem debica mais. Por entre elas, quase a medo, o pardal. E digo «o», porque se me afigura ser sempre o mesmo que nos visita. A janela da cozinha onde almoçamos dá para esse lado do jardim e pudemos, por isso, apreciar o vaivém. O pisco, de papo alaranjado, já nosso conhecido de há muito, veio juntar-se-lhes e aproveitava uma distracção dos outros para ir também debicar. E veio o melro, mais altivo, mais desconfiado, este com algumas penas brancas no pescoço que quase nos fez desconfiar se seria melro mesmo; mas era, com o bico amarelo e o ar apresentado no debicar, ao contrário dos outros, mais familiarizados com o ambiente, que debicavam de mansinho, na certeza de que, àquela hora, ninguém viria pôr carros na praceta e incomodar-lhes o repasto. Do que eu gostei mais desta vez foi da toutinegra: comeu, saltitou de ramo em ramo, como fizera o pisco e foi-se até ao bebedouro do canteiro. Bebericou e – zás! – atirou-se lá para dentro, saracoteando-se toda. Subiu para um tronco, sacudiu-se e, de novo, foi prá água!...
            Gostámos, confesso, da companhia, neste privilegiado princípio de tarde calma, sem barulho de carros na avenida nem sirenes de ambulâncias. A serenidade.

Sim, o café teve de esperar…
            … porque o Alta Definição era com um gigante que muito estimamos: Ruy de Carvalho.
            Conversa tranquila, como Daniel de Oliveira sabe manter. A evocação de uma vida onde as dificuldades não faltaram, mas a esperança sobrou; onde a ternura, a boa disposição, o respeito total pelos outros foram semeando – continuam a semear!... – simpatia a jorros.
            E hoje, a poucos dias de completar 90 anos, Ruy de Carvalho foi mais uma lição e, tranquilamente, ia-nos dando conta do que foi, do que é, do que ainda espera continuar a ser…
            «Amar é envelhecermos juntos».
            «É sempre o amor que nos salva».
            «Gostava de poder semear a doença do bem e do final da dor».
            «Todos os anos passo o dia da minha morte».
            «Como gostava que me lembrassem? ‒ ‘Que o Ruy foi realmente útil quando cá passou!’»…
            Só largos momentos após a resposta à pergunta sacramental «O que é que dizem os seus olhos?», é que nos apercebemos de que ainda não bebêramos o café!...

                                                             José d’Encarnação

P. S.: Transcrito na íntegra em Renascimento [Mangualde], nº 703, 01-03-2017, p. 11 - gesto que muito agradeço.


quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

«Pegou de Estaca» fomentou comunidade

             O Grupo de Teatro Amador do Grupo Desportivo do Zambujeiro levou a efeito, com textos e direcção de António Chapirrau, três sessões da revista «Pegou de Estaca».
            Tive ocasião de assistir na noite de sábado, 18 do corrente mês de Fevereiro, e não dei por mal empregado o meu tempo. Primeiro, porque me diverti com os quadros, sempre breves e engraçados; depois – e confesso que, para mim, isso acabou até por ser o mais importante - as representações contribuíram para consolidar a comunidade dos vizinhos.
            Na verdade, todo o elenco era conhecido da maior parte dos assistentes: era a Beatriz Santos, a Laura Sobral, a Margarida Silva, a Maria João Baleia, a Noélia Ramos, a Rosa Rodrigues, a Sofia Gomes, a Susana Cupido e o Filipe Santos. E da ficha técnica constavam também nomes de todos bem conhecidos: o Paulo Evaristo (luz e som), o Avelino Cupido e o Carlos Reboca que deram apoio em palco, e o Carlos Rodrigues (contra-regra).
            E, findo o espectáculo, parecia mesmo não haver vontade de arredar pé: o público, que enchera por completo o salão da colectividade, por ali foi ficando à conversa com os «artistas», que vieram confraternizar com a plateia, ouvir os comentários, mostrar o seu contentamento. A colectividade cumpria, assim, um dos seus objectivos: reunir em torno dela a população, contrariando eficazmente a tendência generalizada de cada um ficar em casa, de pantufas, agarrado à televisão. Aliás, no andar de cima, jogava-se animadamente ao snooker e até havia oportunidade de nos deliciarmos com filhoses quentinhas feitas na hora!...
Momento de fado
            Os textos? Dez em cada parte, onde os enleios, as coscuvilhices, os trocadilhos se entremeavam com canções e mesmo o fado. Tudo um beijo curava, dizia alguém, a cada moléstia que lhe perguntavam; «e também cura as hemorróidas, senhor?» – e a gargalhada estalou! E a habitual cena das surdas, que ouvem tudo ao contrário. E a madame que vai à feira comprar lingerie e tudo se complica – «Ó criatura!» – com a pequenez do sutiã e a preferência pelo fio dental. E a loira que teima que sardinha é macho porque na lata diz «sardinha com tomate». E o poema, já clássico, «O cume», cuja oralidade é por demais… traiçoeira!
Uma estranha gravidez!... Que más línguas, livra!
Na feira e a história da lingerie..
            O nome da revista vem no quadro «Alentejana à procura de nome», onde se dá conta dos aparentemente estranhos nomes que abundam no Alentejo; e, claro, falando-se de famílias e casamentos e apelidos que passam de uns para outros, «pegar de estaca» não tem propriamente o significado… botânico!
            Enfim, um espectáculo singelo, despretensioso, que teve dois condões: fez rir e ajuntou a comunidade em torno dos seus amadores, que roubaram tempo à família, sim, para virem apresentar o resultado de muitos serões já de si bem divertidos, mas que o calor dos aplausos sobejamente compensou.  E, findo o espectáculo, parecia mesmo não haver vontade de arredar pé: o público, que enchera por completo o salão da colectividade, por ali foi ficando à conversa com os «artistas», que vieram confraternizar com a plateia, ouvir os comentários, mostrar o seu contentamento. A colectividade cumpria, assim, um dos seus objectivos: reunir em torno dela a população, contrariando eficazmente a tendência generalizada de cada um ficar em casa, de pantufas, agarrado à televisão. Aliás, no andar de cima, jogava-se animadamente ao snooker e até havia oportunidade de nos deliciarmos com filhoses quentinhas feitas na hora!...
            Está de parabéns o Grupo de Teatro Amador e daqui vai o nosso abraço a António Chapirrau, no voto de que continue. Aliás, o espectáculo, que bem no merece, vai agora, como se diz, «entrar em tournée» pelas colectividades vizinhas. E vale a pena!
Toda a equipa, com o autor do lado direito da foto, enquanto o director da colectividade,
Hugo Sobral, manifestava o seu regozijo pelo êxito obtido
            De resto, também o programa do Carnaval se revela aliciante: o Grupo participará, a 26 e 28, no corso carnavalesco da Malveira da Serra. No dia 25, a partir das 22.30 h., haverá baile na sede, com a banda Outra Face; e, no dia 27, a partir das 22, os sons do «Sentido Obrigatório» farão as honras da casa.
                                                                                  José d’Encarnação
Fotos gentilmente cedidas pela colectividade.
Publicado em Cyberjornal, 23-02-2017:

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Para que servem os tapetes?

             Onofre ouvira falar do tapete-voador de Zahir e vira as imagens. Gostava de ter um, que o levasse, num ápice, aonde o seu coração quisesse estar. Nunca se apercebera, porém, que é uma preciosidade, o tapete. Os Romanos faziam mosaicos multicoloridos, com pedrinhas pequeninas, as tesselas, e assim atapetavam o chão dos compartimentos nobres. Em Faro, a antiga Ossónoba, os comerciantes de peixe e de bivalves reuniam-se numa sala e lá estava, no chão, enorme mosaico, com o deus Neptuno a meio.
Tapete de Arraiolos
            Onofre já vira tapetes persas, lindos, cheios de arabescos e soubera que, entre nós, essa arte, colhida no Oriente, acabara por se enraizar em Arraiolos e, hoje, tapete de Arraiolos é quase tão caro, pelo trabalho que dá, como tapete persa autêntico.
            Foi crescendo, crescendo e acabou por ouvir, às vezes: «Olha, tirou-lhe o tapete!». E percebeu: o senhor apoiava-se em alguém, que estava sempre a seu lado, até que, um dia – zás! –, tirou-lhe o tapete de debaixo dos pés e o senhor tombou. Aliás, até veio a conhecer alguém a quem, por graça, os companheiros chamavam «Monsieur Tapis», porque era assim uma espécie de «yesman», daqueles que concordam sempre com tudo o que o senhor diz. Esse Monsieur Tapis era assim. Um dia, no entanto, desertou, e o senhor de quem ele era o «tapis», ficou sem tir-te nem guar-te e muito admirado com o que lhe acontecera.
            Onofre gosta muito, por exemplo, de ver na televisão, os senhores ministros serem apanhados pelos jornalistas. Estão num evento sobre batata-doce, mas os jornalistas estão-se borrifando para a batata-doce e querem é saber da Caixa Geral de Depósitos, dos juros, dos empréstimos, se vai haver verbas para a calamidade do dia anterior… E Onofre gosta porquê? Porque, ao lado do senhor ministro, como a senhora Trump, eterna e bem decorativa junto ao marido, há sempre dois ou três senhores, muito sérios, muito bem postos, sem tugir nem mugir, gravata no sítio, mas… a câmara da televisão gravou-os bem e eles estiveram junto do senhor ministro quando ele fez aquela declaração bombástica. Onofre, nessas alturas, lembra-se sempre de Monsieur Tapis. Eles não são tapetes porque estão de pé e tapete quer-se no chão, para ser pisado, usado a nosso bel-prazer; mas também Monsieur Tapis não andava de rojo, mas era como se andasse.
            Logicamente, Onofre tem tapetes em casa. Não os comprou todos aos ciganos. Um dia, caiu na armadilha, porque lhe bateram à porta e com falinhas mansas, peça única, barco que chegara há pouco lá do Médio Oriente, e o diacho do tapete até parecia mesmo verdadeiro e… comprou! Mais tarde, quando um amigo lhe deu tapetinho turco verdadeiro, é que percebeu que era preciso ter num dos cantos o selo de garantia. Também não tem Arraiolos; só daqueles comprados na praça («leve, freguês, que vai bem servido!»). Tem tapete aderente na banheira, isso tem, porque já muitas vezes o avisaram que cair na banheira é o cabo dos trabalhos. Mas… tem outro tapete na casa-de-banho, que, até há uma semana, usava para pôr os pés ainda molhados quando saía do duche. Depois de se secar, começava a dança do vestir: tira as sapatas (que são fechadas atrás) e veste as cuecas; calça as sapatas; depois, descalça as sapatas para enfiar os colãs (Onofre carece de aconchego nas pernas); volta a caçar as sapatas; é altura, agora, de vestir as calças e lá descalça as sapatas. Ah! Mas faltam as peúgas, toca a descalçar-se de novo para entrarem as peúgas… E era este calça-descalça todos os dias, até que Onofre… descobriu para que é que servia o tapete! Podia ficar descalço em cima dele durante o tempo todo, desde as cuecas às peúgas!... Agora é outro Onofre!
            E, ao ver o tapete vermelho das grandes recepções e das galas no Coliseu ou no Casino – está lá uma hora que seja e depois desaparece, tal como as vedetas que mui prazenteiramente o pisaram; ao ver os ‘tapetes’ solenes, impecavelmente engravatados, junto das declarações do senhor ministro perante as câmaras… Onofre dá consigo a pensar na efemeridade de uns tapetes e no consolo que tem ao usar, na sua casa-de-banho, um tapete reles, que não é turco nem de Arraiolos e que lhe serve às mil maravilhas. Claro, às vezes, enquanto faz as suas abluções matinais, também esse se transforma em tapete-voador e nele monta em demanda de um mundo sem tapetes volúveis; mas cedo desce à realidade, que as águas estão frias e ele resiste a usar a água quente!...

                                                                                  José d’Encarnação
 
Publicado em Costa do Sol Jornal, nº 175, 22-02-2017, p. 6.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

O museu que é um lar!

            A palavra «lar» tem, hoje, à primeira vista, uma conotação (ia a dizer) «negativa», porque nos lembra de imediato o lar de idosos. Muito diferente é, contudo, o bom significado do termo, se se pensar que os Romanos adoravam os deuses Lares, protectores das casas e, até, dos povos e das cidades; ou, ainda se, neste tempo frio, pensarmos no quentinho da lareira, onde o tronco velho de alfarrobeira espalha conforto ao arder.
            E é nesse sentido de «casa», de «aconchego» que eu quero falar do nosso Museu do Trajo. O mote foi a notícia, publicada na anterior edição, de que a comunidade ucraniana ali festejara o seu Natal, que, como se sabe, não coincide com a data do Natal católico.
O grupo ucraniano Jasmim, de S. Brás de Alportel
            Congratulando-me com esse facto, em conversa com o responsável pelo Museu, Emanuel Sancho, vim a saber muito mais! São cerca de 200 os ucranianos que vivem no concelho, muitos jovens já nasceram cá e o Museu funciona como o seu ponto de encontro. Ali ensaia, por exemplo, o Grupo Jasmim (Grupo de Música e Cultura Ucraniana de S. Brás de Alportel), sendo de salientar que, uma vez que o Veredas da Memória (grupo musical são-brasense) também tem no Museu a sua sede, a violinista Oxana, do grupo ucraniano, também toca no Veredas, assim como o flautista Paul Cárter, e, por seu turno, David Mendonça, o celebrado e exímio acordeonista dos corridinhos, dá apoio ao Jasmim. Uma colaboração a todos os títulos louvável!
            E assim o Museu é cada vez menos uma entidade à parte, porque se deixa impregnar pelas iniciativas das instituições locais e vive, de facto, na comunidade e para a comunidade.
            Numa altura em que tanto se fala de integração de imigrantes e refugiados, o Museu do Trajo de S. Brás de Alportel representa insigne exemplo a seguir!
           
                                                                                  José d’Encarnação

Publicado em Noticias de S. Braz [S. Brás de Alportel] nº 243, 20-02-2017, p. 11.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Milhões, milhões, milhões!...

     Septuagenário me confesso, incapaz de compreender exactamente o significado da palavra «milhões», mormente quando ela é aplicada a verbas. Verbas de venda e compra de jogadores; verbas que foram desviadas por grupos organizados, com a convivência de alguns outros em que se depunha confiança; verbas necessárias para colmatar os prejuízos causados por um tornado ou uma chuvada maior que a falta de adequado planeamento urbanístico provocou; milhões que se esvaem, porque o Estado os não soube aproveitar; milhões que podem ganhar-se, se se jogar no… euromilhões ou mesmo na lotaria ou no totoloto…
      Tornou-se tão banal que nem sequer nos vem à cabeça, um dia, fazer a comparação com os contos de reis de não há muito tempo, quando o milionário era aquele que lograra amealhar ou ganhar… mil contos de réis!
      Curiosamente – cá está a ‘história’ do septuagenário… – sempre que consciencializo a expressão «milhões de euros» (a maior parte das vezes referente a dívidas, a falcatruas, a… ‘branqueamento de capitais’, que, inocente, não sei o que isso é…), o meu pensamento corre, vamos lá saber porquê, para o restaurante do meu bairro. É que o restaurante do meu bairro tem um recanto que eu ousaria chamar «de ternura». Ali se sentam, ao almoço, quatro ou cinco dos anciãos do bairro, que vivem sozinhos numa das casas próximas. Outro dia, demos pela falta de um: tinha partido!... Quando lá vou buscar comida, procuro ter sempre um bom-dia simpático, que já os conheço há décadas e sinto que aquele tempo do almoço e o do antes e o do depois é, para cada um deles, o bom momento do dia. Lá comem a sua sopita, meia dose do prato do dia, regada, quando o médico não proíbe, por um copito de vinho… E conversam do hoje, do ontem e pouco do amanhã, que o televisor ali na parede ao pé deles raramente lhes traz motivo para pensar no amanhã.
      «Recanto de ternura» o baptizei eu, para mim mesmo, que a ninguém ainda o disse. A ternura de um envelhecer que queremos sereno, a viver dia após dia com os ralos euritos da reforma, quando no televisor ao pé se fala é só de milhões, de milhões… Recordo-me, amiúde, nos meus dias, dos vultos desse recanto, até porque também minha tia, que já passou dos 90, pertence ao grupo. E penso: «Se eu não sei bem o que é isso de milhões, que ideia é que eles farão, diante do pratinho de sopa?».
            
                                          José d’Encarnação

Publicado em Renascimento [Mangualde], nº 702, 15-02-2017, p. 11.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

O teatro são as pessoas!

             Estreou no Teatro Gil Vicente, em Cascais, no sábado, 4, a revista «Gil Vicente em Revista», produção do Grupo Cénico da A. H. dos B. V. de Cascais, com encenação de Luís Lourenço. O objectivo: evocar o que, ao longo de cem anos, ali se tem feito de teatro amador. E quantos tiveram a dita de assistir viram, de imediato, quanto labor ali se desenvolveu, devido à carolice de uns quantos, que não querem – de forma alguma! – deixar morrer a tradição.
            Pronto: a notícia estava feita; os dados principais lançados e… partia-se para outra! Jornalisticamente, decerto nada haveria a apontar, até porque o Grupo já estivera no «Portugal em Directo» na RTP 1 e em programas de rádio e estava tudo dito.
            Não estava. E daí o título. Não apenas porque essa é uma frase que se acentuou – «O Teatro são as pessoas e essas são eternas!» –, mas sobretudo porque foi logo isso que se sentiu ao entrarmos no nosso Gil. Encontrámos pessoas, convivemos com pessoas, sorrisos, abraços e beijos, fortes apertos de mão… uma família! A Cascais autêntica! Em contraste com a «despersonalização» quotidiana em que estamos embrenhados, neste emaranhado de leis de que temos sérias dúvidas se são pensadas por pessoas ou por autómatos programados por um Big Brother qualquer. E esta proclamação do valor das Pessoas carece de ser bem erguida. De modo especial pelo teatro de revista, porque ele permite, através de variados quadros, focar criticamente o quotidiano que nós vivemos e não aquele imaginado em herméticos gabinetes políticos.
            E viu-se. E sentiu-se. Logo os primeiros acordes, após as pancadinhas de Molière, suscitaram palmas ao ritmo compassado. E assim do princípio ao fim.
Varinhas e pescadores - a Cascais d'outrora!...
            O ancião estava sentado. Por detrás dele, no ecrã, esse longo percurso teatral, aplaudido. Mormente a Senhora dos Navegantes, como que o ex-líbris do Grupo. Vieram pescadores. Varinas (já não as há, estão é nas grandes superfícies). O primeiro amor. A menina que nasceu de doze meses, sempre atrasada na vida, a que resta a consolação de que há-de chegar atrasada ao seu funeral. Os preços das bancas no Mercado da Vila. A nova colecção de nabos que anda por aí. A peixotaria. A menina que só ataca nos Oitavos. O adereço que ficou tem-te-não-caias, comprado nos chineses da Luta. A horta do convento de freiras: tomates práqui, tomates práli e pepinos mirrados… Afinal, em vez dessa horta, pode ir ver-se outra com muitos nabos, noutro Convento, o de S. Bento. O sem-abrigo: «Deus te abençoe, meu filho!», diz-lhe o transeunte bem posto, «tens bom corpo para trabalhar!». «Bom corpo tenho, não tenho é trabalho!». Sem-abrigo, palhaço que anda a rebuscar no lixo algo com que matar a fome: «Conheço muitos palhaços de fato e gravata e esses não andam ao lixo».
Ternuras de recém-casados que sonham
            A visita do casal a uma herdade. Olha, aqui são as coelheiras; os coelhos, sabes, aquilo é uma alegria, «foi um instantinho, não foi?». Uma alegria. Já ali, na capoeira, é capaz de ser uma vez por semana. E a mulher a preferir a história dos coelhos. E o marido a não saber que dizer, embora a história da capoeira já lhe agradasse mais. E aqui é a vacaria; o boi vai lá uma vez por ano. «Vês, mulher?». «Vejo, pois. E tu já viste o que ele tem na cabeça?»…
            No hospital, pulseira vermelha. Passou um: «Espera que já te atendo». Passa outro: «Espera que já te atendo». Duas horas depois, morreu de angústia, o coitado!
A geringonça?
            Toques na política, local ou geral, nadinha! Crítica social, sim. A mulher mouca que ouve tudo ao contrário. O casal de gagos que pára a palavra na sílaba onde não deveria parar. As coscuvilhices: «Tu conheces, filha!»…
            Um texto, portanto, para rir a bandeiras despregadas, servido por adequada partitura musical, cenários a condizer, actores que sabem desenrascar-se a preceito, figurinos de deixar de beiça caída o que de melhor se faz no Teatro que não é popular.
            E, claro, era aqui que cabiam os nomes desses actores e dos responsáveis por cada uma dessas peças de que a ‘geringonça’ tão belamente se compôs. Peço perdão: não tive tempo de copiar a folha que estava cá fora no átrio e onde vinha tudo explicadinho tintim por tintim. Prometo que copio para a próxima.
            Ah! Falta uma palavra: PARABÉNS, em letras bem gordas! Bem hajam por nos ajudarem a continuar Cascalenses de verdade!
                                                                                  José d'Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal, nº 173, 08-02-2017, p. 6.
Fotos retiradas, com a devida vénia, da página do Grupo Cénico no FB.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Abraço gigantesco no Boa Nova

            Decorreu com o maior brilhantismo o espectáculo, que, subordinado ao título RƎFADO, se concretizou no passado dia 28 no Auditório da boa Nova (Galiza – Estoril), cuja receita reverteu para o Apoio Local da Refood Cascais.
            Esgotaram os lugares e – pasme-se! – o fado teve, ali, um sabor autêntico, nem sequer nos apercebemos de que estávamos num auditório enorme, até porque os artistas, todos familiares à zona, souberam criar um ambiente tão acolhedor como o de uma verdadeira casa de fado!
            Apresentou Manuela de Sousa Rama, que foi dizendo o repertório que cada um ia cantar, mas os próprios artistas o referiam também, salientando todos quanto lhes era grato estarem a colaborar com esta iniciativa. Cantaram: Ana Lains, Gonçalo CastelBranco, Maria João Quadros, Miguel Capucho, Pedro Junot, Rodrigo Costa Félix e Tânia Oleiro, acompanhados por três músicos de enorme virtuosismo: Luís Roquette, à viola, Diogo Quadros e Bernardo Romão, ambos na guitarra portuguesa, que nos brindaram não apenas na excelência do acompanhamento como em duas guitarradas eximiamente executadas. De permeio, o Grupo de Dança Arte Move, também de Cascais, presenteou-nos, sob direcção de Paula Careto, com bailados de apurada coreografia, bem bonitos de se ver.
            Esteve presente Hunter Halder, o "estrangeiro maluco", natural da Virgínia (Estados Unidos), que, tendo participado numa peregrinação a Fátima, há mais de 30 anos, se apaixonou pela guia turística, portuguesa, com quem acabaria por casar, anos mais tarde. Apercebeu-se, um dia, que muita comida em boas condições se deitava fora nos hotéis e nos restaurantes, porque era proibido aproveitá-la ou não havia sequer condições para isso. Portanto, em 2011, montado numa bicicleta, cheia de cestas à frente e atrás, Hunter Halder começou a distribuir por famílias carenciadas de uma freguesia lisboeta as sobras de alimentos que recolhia em restaurantes. Assim nasceu o projecto Refood, que se espalhou pelo País e conta hoje com mais de 4000 voluntários e dá apoio a 3000 pessoas.
            Esteve presente e foi ao palco. Sexagenário, falou entusiasmado do que se conseguira obter e perguntou à assistência o que era mais importante. Conclusão: as pessoas! Por isso, pediu que todos se levantassem e abraçassem os vizinhos do lado, numa prova de carinho pela Pessoa, que é, na verdade, o mais importante – e é para dar maior bem-estar às pessoas que o projecto Refood existe. E um abraço enorme encheu o Boa Nova!
            Saímos, pois, do auditório muito mais humanos, muito mais pessoas, confortados também por uma bem agradável noite de fado, onde nem demos por o tempo passar!
             A Refood Cascais funciona no Bairro Marechal Carmona, Rua João António Gaspar 45. Pode ser contactado através do telefone: 938 408 919. A coordenadora do apoio local – e sua grande dinamizadora – é Maria Teresa Pedrosa, que merece todo o aplauso pelo êxito alcançado.
                                                  
                                                                  José d’Encarnação
Hunter Halder aplaudiu, feliz!

Hunter Halder dirige-se à assistência que encheu por completo o auditório

No final, os voluntários de Cascais subiram ao palco

 
Publicado em Cyberjornal, edição de 7-2-2017:
http://www.cyberjornal.net/saude-e-solidariedade/saude-e-solidariedade/solidariedade/abraco-gigantesco-no-boa-nova . Fotos gentilmente cedidas pela Refood Cascais.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Acarear água

            De madrugada, no Verão, em tempo de férias, ia eu com minha tia Chica ao poço do Corotelo acarear água. Já se sabia onde era a parte mais funda e lá descia o balde de mansinho, a apanhar a água que a nascente ajuntara durante a noite. Deitava-se no fundo para a água entrar e, de novo, devagar, puxava-se a corda, a deslizar no ‘rego’ luzidio que, com o uso, o cordame cavara na pedra do beiral. Despejava-se com o funil na enfusa de zinco, porque nem uma gota se poderia perder, que as bicas dos Vilarinhos ainda ficavam longe e era preciso ir lá de burra, os cântaros um de cada lado do alforge. O poço do Corotelo, mau grado obrigar a madrugar, sempre estava mais perto e, ao nascer do sol, tinha mais. Era o tempo em que poucos podiam carrear uns tostões para se abalançarem a mandar abrir cisterna; e os Verões vinham mediterrânicos à séria, com chuvas raras e muito calor.
            Consultei o Dicionário da Academia e lá está, como terceira opção, o significado de «juntar haveres ou dinheiro», citando-se Manuel Ribeiro (A Planície Heróica): «Vivia escapatoriamente, acareava o seu vintém». Aponta-se como etimologia a palavra «cara», com base no facto de ‘acarear’ ser, comummente, termo dos tribunais: pôr alguém cara a cara, para testar reacções e averiguar a verdade das declarações.
            Creio, porém, que estamos perante um caso de homonímia: palavras iguais, significados bem diferentes. Acarear é, aqui, corruptela de carrear, que o povo adoptou por ser de mais fácil pronúncia, ajuntando-lhe inclusive o prefixo a-, que ainda abranda mais a sonoridade. Deve, pois, relacionar-se etimologicamente com carro, donde vêm igualmente ‘acarretar’ e ‘carrejar’.

                                                           José d’Encarnação

Publicado em VilAdentro [S. Brás de Alportel] nº 217, Fevereiro de 2017, p. 10.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Sangria desatada...

             Desde pequeno que me habituei a ter tios e primos por Franças e Araganças. Sei que há familiares meus em Meknés (Marrocos); nunca os conheci, que para lá foram, de S Brás de Alportel, trabalhar nas pedreiras, quando o são-brasense João Rosa Beatriz, vice-cônsul de Portugal em Mazagão, lhes facilitou os vistos, na 2ª década do século XX. Lembro-me vagamente de minha avó falar também de parentes nossos na Argentina. Já mais tarde, nas décadas de 50 e 60, radicaram-se em Toronto, no Canadá, membros da família Encarnação e por lá fazem a sua vida. Primos direitos labutam na França e na Suíça.
            Creio não haver família alguma minha conhecida, da minha geração, que não tenha filhos no estrangeiro. Este, no Qatar; aquele, na Austrália; aqueloutros em Macau, em Angola, na Inglaterra, na Bélgica, na Escócia, na Suécia, no Brasil… Como escreveu Júlia Néry, «que o português é semente que em qualquer terra dá fruto…»!
            As telecomunicações destroem a distância, é certo; os voos mais baratos facilitam enormemente as deslocações – mas, diga-se o que se disser, é bem diferente o beijo doce enviado pelo skype do abracinho terno e quente em presença!...
            Globalizámo-nos, justifica-se. Passo, porém, nos arredores de uma qualquer cidade do nosso interior. Para ali se planeou, com «dinheiros europeus», vistoso parque industrial, cujas maravilhas se proclamaram na Comunicação Social, presença de senhores ministros aquando do lançamento da 1ª pedra, discursos laudatórios mui fecundos em números a haver, promessa de centenas de empregos novos, juras de fixação das gentes, a evitar a fuga para as grandes cidades do litoral e, agora, para a estranja. Mas… os parques ficaram-se pelas infra-estruturas, ora a apodrecer sob o peso das intempéries, e os empregos não vieram!...
            Sentimos na pele a ferida aberta da neta que também já partiu, do filho que é «português no mundo» e que Alice Vilaça até é capaz de vir a entrevistar pró seu programa na Antena 1…
            Dói.
            Sangria inestancável, desatada...
            Formámos gente cujos elevados méritos são agora outros que os aproveitam.
            Dinheiro deitado à rua!

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Renascimento [Mangualde], nº 700, 01-02-2017, p. 11.