segunda-feira, 30 de maio de 2022

Um epitáfio romano de carinhoso mistério…

 Encontra-se no Museu Regional de Beja – com o nº de inventário MRB.03005 – uma bem curiosa estela funerária romana, a merecer atenção pela carinhosa mensagem que dela se desprende.

A estela
            «Estela» é a designação ‘técnica’ dada a um monumento pétreo destinado a ser colocado ao alto. Enquanto a placa pressupõe a fixação numa parede, a estela enterra-se no chão, pelo que, habitualmente, se se tiver pensado em gravar nela uma inscrição, a parte inferior fica em branco ou porque se enterra ou porque haverá um soco munido de ranhura para a suster. No caso de que nos vamos ocupar há mesmo uma ranhura horizontal a delimitar espaço que se devia manter escondido.
As dimensões totais são as seguintes: altura, 77 cm; largura, 40; e espessura, 18. É, aliás, a escassa espessura uma das características das estelas.
De imediato salta à vista a graciosidade do conjunto. Esculpida em ‘mármore’ de Trigaches, tem um frontão triangular decorado; a inscrição foi inserida num quadrado de 24 x 26 cm, cuidadosamente moldurado, e, sob ele, uma de cada lado, gravaram-se duas rosetas hexapétalas, já um tudo-nada feridas pela erosão. Aliás, esse motivo decorativo repete-se também sob o frontão (aí, rosetas quadripétalas), como que a enquadrar tudo. Um toque de beleza.
Será, porventura, o motivo central do frontão que – além da inscrição, obviamente – mais despertará a atenção, pela sua singularidade, não apenas no quadro dos monumentos epigráficos conhecidos de Pax Iulia, mas também no âmbito da Lusitânia romana. Escrevemos, em 1984, que estávamos perante uma tipologia «estranha à região» e já se explicará porquê.
É que de um eixo central partem, como braços, em relevo, elementos a terminar em voluta, que lembrarão certamente – para os mais dados a observações botânicas – as folhas dos fetos a romper, uma evolução que não deixa de nos encantar, por quase sentirmos como é que, paulatinamente, a folha se vai desenrolando e se estende. Esse motivo foi também, durante muito tempo, típico do báculo dos bispos, qual cajado de pastor. Eram os antigos mais dados que nós a essa observação da Natureza e a dela fazerem transpor, para a vida humana, como que em símbolo, os sentimentos que inspiravam. Aqui, no feto-planta, o lento mas seguro espreguiçar-se para o alto, em busca da luz… Árvore da vida se lhe poderá chamar. Uma árvore de perene folhagem e sempre em renovação – como todos desejaríamos que fossem as nossas existências…
Não abunda a decoração de índole vegetalista nos monumentos epigrafados da cidade de Pax Iulia. Motivo idêntico a este só se encontrou num dos topos da cupa (monumento em forma de pipa estilizada) procedente da Herdade de Santa Luzia (freguesia de S. Brissos): o epitáfio de Júlio Primião, falecido aos 65 anos. Há um capitel no Museu de Faro com báculos gravados desta mesma forma; na lucerna 557 de Cartago, apresentada por Jean Deneauve no seu catálogo (prancha LVIII), o palmito assume iguais características formais.
 
A inscrição
Altura é, pois, de sabermos o que significa, em português, a inscrição latina grafada na estela:´~
 
                    Aqui jaz Híspalo, servo de Boco, de três anos.
                    Que a terra te seja leve.
                    Euhodo fez.
 
Sim, estremecemos ao ler e – caso não soubéssemos das crueldades ainda existentes nesta 2ª década do século XXI em muitas partes do mundo dito civilizado… – ousaríamos perguntar: «Como foi possível escravizar um menino de três anos?».
Sim, estremeceríamos com a nossa mentalidade actual; necessitamos, porém, de recuar dois milénios e fazer perguntas. Primeiro, ¿quem foi Euhodo? Depois, ¿porque é que foi ele quem fez (não mandou fazer!...) o monumento funerário para o menino? Finalmente, ¿por que razão se escreve – com todas as letras, dir-se-ia – que o menino foi escravo?
Ocorre voltar à descrição que fizemos e interrogarmo-nos, perante a riqueza da decoração apresentada: ¿como é possível um escravo ter monumento assim, tão bonito? E Euhodo, ao escrever «fez», manifesta não apenas orgulho na beleza que conseguiu mas, sobretudo, alegria por ter logrado mostrar desta sorte toda a sua enorme ternura pelo bebé que partiu.
            Interrogamo-nos.
            A dúvida, no entanto, esclarecer-se-á se, nessa interrogação, incluirmos o terceiro personagem mencionado na epígrafe: Boco, o dono de Híspalo! Boco era o senhor, decerto alguém importante do ponto de vista social e económico. Por conseguinte, ter sido seu escravo ou estar destinado a ser seu escravo não constituiria desdoiro mas uma honra. Euhodo – que pensamos poder ter sido o pai de Híspalo – não hesitou: também ele pertenceria à família de Boco, o senhor mui provavelmente até contribuiu para a erecção de tão sugestivo sepulcro – e, mau grado a dor sentida, a preciosa homenagem estava feita! Para sempre! De tal modo que, hoje, mais de dois mil anos passados, ainda nos enternece!
            Nada mais sabemos. Nem sequer temos registo de quando nem onde a pedra foi encontrada. Deparámo-nos com ela no Museu, nos primórdios da década de 80, ainda nem número de inventário tinha! Na cidade ou nos arredores se terá achado. Alicia-nos pensar que falará de gente vinda do Norte de África, origem que uma investigadora já sugeriu para o nome Boco. Alicia-nos pensar que Euhodo possa ter sido o oleiro da oficina de Gneu Ateio, de que se encontrou uma marca na vizinha villa romana das Represas … Mas… nada mais sabemos!

                                                                       José d’Encarnação

            Publicado em Diário do Alentejo [Beja] nº 2092, 27-05-2022, p. 13.

sexta-feira, 27 de maio de 2022

Sabão azul e branco

           Decerto como eu muita gente terá achado piada ao facto de, logo no início da pandemia, prontamente se ter dado a sugestão de lavar as mãos com sabão azul e branco. Uma velharia, éramos capazes de pensar, a que ora de novo se queria recorrer, por se haver reconhecido o seu valor.
            Tínhamos, de facto, em casa sabão azul e branco. Aliás, julgo que foi produto que por aqui nunca faltou. De resto, a minha convivência com ele vem desde criança. Nas décadas de 40 a 60, trabalhavam nas pedreiras de Cascais homens solteiros vindos das Beiras, do Alentejo e do Algarve. Minha mãe, que sempre conheci a trabalhar em lides complementares das domésticas, era uma das mulheres a quem eles pagavam para lhes tratar da roupa. E era com sabão azul e branco que a Maria dos Santos esfregava as calças de ganga, as camisas de flanela, as camisetas de algodão, os peúgos de linha…
A parafernália dos produtos de limpeza...
             
            Tive há dias uma rotura na canalização da cozinha. Foi necessário retirar tudo quanto se guardava sob o guarda-loiça e pasmei! Cerca de cinquenta embalagem de lá saíram! De lixívias várias, amaciadores para a roupa de cor e para a roupa branca, detergentes com as mais diversas finalidades… 46 embalagens contei eu! E lembrei-me das virtudes do sabão azul e branco, que ele, sozinho, amaciava e erradicava fortes sujidades da roupa branca e da roupa de cor, manuseado a preceito pelas mãos de minha mãe.
            As ideias foram-se atropelando, vertiginosas, enquanto preparava o telemóvel para fotografar todo aquele arsenal de limpeza, de cuja existência só agora, vendo-o assim reunido à luz do dia, eu tomava plena consciência. Ai, o meu rico sabão azul e branco! E a todas se sobrepunham as do lixo que o Miguel Lacerda e o seu esquadrão da Associação Ambiental CASCAISEA amiúde mostram, depois de mais uma campanha de limpeza na costa. E aqueloutra, também frequentemente chamada à colação, em que as embalagens de plástico são já como uma ilha no meio do oceano…
Vogando, suave, no mar de Cascais...
 
... enquanto mão caridosa a não liberta do mar!...
            Vivemos melhor. «Pronto a usar», «desinfectante de tecidos» «desinfectante mãos», «desinfectante superfícies», «eficaz contra bactérias e fungos»… Uma infinidade! Diante das prateleiras do supermercado, perdemos minutos a ler, a observar… «Será melhor este ou aquele?», «Deixa-me ler», «Quanto  custa?», «Ah este é para as lãs e o algodão»… Sim, descobriram mil formas de nos facilitar a vida. Facilitarão?
Ah! meu abençoado sabão azul e branco!

                                               José d’Encarnação

Publicado em Duas Linhas, 22-05-2022: https://duaslinhas.pt/2022/05/sabao-azul-e-branco/

Viajar de comboio!

O abandono   
    Custa-me passar ali e ter de atravessar carris quase enterrados. É à entrada de Montoito, uma aldeia do concelho do Redondo, distrito de Évora. Era uma linha férrea que morreu, porque, um dia, uns senhores de Lisboa acharam que não merecia a pena manter essa ligação ferroviária para servir umas quantas aldeias dispersas pelo interior do País.
            Custa-me ir de Coimbra à Lousã, circuito até há uns anos servido por linha-férrea (o «ramal da Lousã») que, a mando dos senhores de Lisboa, rapidamente se levantou, sem que houvesse alternativa do transporte para tantas localidades dos arredores da cidade.
            Custa-me ir pela autoestrada do Sul e passar por cima da linha que ligava Beja ao Algarve e que também foi desactivada.
            Hoje, os governos «torcem a orelha e não deita sangue» – como se diz em gíria , porque, asneira feita, não sabem como a hão-de emendar. Ou melhor, já viram que têm de voltar ao tempo antigo, pois, se outrora o comboio era o meio de transporte mais barato, agora, com todas as restrições energéticas, ainda o será mais!
 
2.      Evocações
            Como moro em Cascais, sempre me habituei a ir de comboio para Lisboa. De resto, esta linha – que já chegou a ser terminal do Sud-Express! – reúne as condições ideais e muitos guias turísticos a recomendam. Sou, porém, natural do Algarve e desde pequeno que ouvia falar do «comboio-correio», a carvão. Era o comboio mais usado de Lisboa para lá. Viajava-se a noite toda, para, no dia seguinte, o correio chegar às estações.
            A palavra «estações» lembra-me a necessidade de explicar que, neste caso, não se tratava das estações de caminho-de-ferro (as gares…), mas das estações de correio. As estações requeriam, pela sua importância, que todos os comboios lá parassem, ao contrário dos apeadeiros, simples plataformas onde só paravam os comboios que assim possibilitavam a ligação entre aldeias. Hoje, com o desprezo a que se vem votando o comboio, até há estações que mais parecem apeadeiros, pois não têm bilheteira, não têm telefone, não têm pessoal, não têm café, não dispõem de serviço de táxis…
            Falei do Algarve. É lá possível que se não privilegie a ligação ferroviária (ainda em via única e não electrificada!) paralela à costa, para servir as praias algarvias? É lá possível que uma cidade da importância de Silves – ela que já chegou, em tempos idos, a ser a sede episcopal algarvia! – não ter serviço de ligação ao centro urbano, uma vez que a estação fica a distância considerável?
            E, a propósito de estações e dos comboios e suas categorias conforme a velocidade para que foram pensados – na actualidade, há o alfa, o intercidades, o regional, o urbano, o comboio de mercadorias (qual recoveiro)… –, há a história que compara a vida do Homem a um comboio. Pelos vinte anos, é um comboio urbano: pára em todas as estações; dos 30 aos 40, é regional, pára nos aglomerados mais movimentados; dos 40 aos 50, é intercidades, porque só pára nas estações principais; dos 60 aos 70/75, é alfa, está cheio de pressa e só pára uma ou duas vezes no percurso; dos 75 em diante, não circula, vai para o estaleiro!...
 
3.      De Lisboa para Coimbra
            De Lisboa para Coimbra, onde trabalhei a partir de 1976, sempre privilegiei o comboio. Não havia já a 3ª classe, de bancos de madeira, que ainda apanhei na linha de Cascais, e de bilhetes bem acessíveis; mas eu só muito tarde comecei a ter posses para viajar em 1ª e no foguete, nome por que era conhecido o antecessor do alfa. Viajava em 2ª, em compartimentos de 8 passageiros. Ouvia, por isso, habitualmente, as conversas mesmo entre pessoas que acabavam de travar conhecimento e a quem uma viagem sem conversa, sem possibilidade de contar de vidas e de doenças não tinha graça nenhuma! Tinha dificuldade, eu, em entabular conversação. Preferia preparar as aulas, ler um livro, escrever o rascunho dum artigo; nem sempre, todavia, me escapava e lá tinha de ouvir e de trocar impressões.
Sempre me agradou muito essa viagem, pelo tempo de que dispunha – primeiro, mais de três horas, agora duas horinhas bem rápidas – para me encontrar comigo mesmo, para observar os outros, para me deliciar com a paisagem. Um dos meus recentes livros de crónicas tem mesmo um título baseado na observação da lezíria ribatejana assim ao romper da manhã, quando o Sol acabara de nascer: sob as árvores, um manto branco, a geada que só mais tarde o astro-rei lograria derreter – e daí o título Geada na Sombra!
 
4.      Os ferroviários
            Uma das estações – essa de paragem obrigatória – o Entroncamento. Nasceu logo na 1ª metade do século XX, quando aí se fez o entroncamento da linha que daí seguia para a cidade da Guarda (a Linha da Beira Baixa) com a Linha do Norte, que liga Lisboa ao Porto. A maior parte da sua população original está, pois, ligada aos mais variados ofícios que o comboio alimenta, os ferroviários, desde funcionários da companhia (hoje chamada CP - Comboios de Portugal) até ao mais modesto dos operários: maquinistas, revisores, fiscais, agulheiros...
             Por falar em operários, importa não esquecer que é inglesa a invenção do comboio; por isso, os comboios circulam pela esquerda, à moda inglesa, e o nome deriva de ‘convoy’, que também designa a força armada que protege, por terra ou por mar, pessoas ou mercadorias.
E porque é que eu relacionei operários com ingleses? Porque me apareceu, há anos, a palavra ‘chulipas’ para identificar as travessas de madeira de pinheiro (agora são de cimento) que uniam os carris. Palavra estranha, essa, se não a relacionarmos com a sua função de sobre elas, as chulipas, repousarem (dormirem…) os carris. Eram os… sleepers (de sleep, sono, dormir)! Os dormentes!
            E carris faz-me lembrar «bitola», que é a distância entre um carril e outro. Usa-se em Portugal e em Espanha a bitola ibérica, de 1668 milímetros de espaçamento, como ficou convencionado a partir de 1955, diferente da europeia, a bitola-padrão, que é de 1435 milímetros. Diz-se que era também uma forma de os dois países estarem mais alheios a possíveis invasões europeias; na verdade, ir, por exemplo, de Lisboa a Paris no Sud-Express implicava, até não há muito tempo, fazer com que as carruagens-cama tivessem, de mudar de bitola, em Hendaya...
 
5.      As estações floridas
            Não quero terminar sem uma palavra ao período áureo – a meu ver – do caminho-de-ferro em Portugal, aí pelas décadas de 40/50 do século passado.
O tempo dos concursos das estações floridas, instituídos em 1941 pelos servilços de turismo e propaganda do Estado Novo, com o objetivo de «estimular o bom gosto na ornamentação floral das estações dos nossos caminhos de ferro e revelar aos turistas estrangeiros um aspeto bem caraterístico do nosso temperamento artístico e do nosso proverbial bom gosto»!
O tempo em que se primou pelo embelezamento das fachadas com magníficos azulejos, que despertam ainda hoje a admiração de quantos não andam com pressa e podem deter-se momentos diante deles. A estação de S. Bento, no Porto, vem em todos os guias turísticos. E não poucos mostrarão também os azulejos da estação do Pinhão, na Linha do Douro.
Ah! a Linha do Douro, ao longo do rio, na soberba contemplação dos vinhedos em socalco, verdes no Verão, de um quente castanho-amarelado no Outono!... Ah! A Linha da Beira Baixa, também ela ao longo do curso doutro grande rio, o Tejo, a permitir o suave deslumbre da lezíria ribatejana e a passar lá mais adiante, pela altaneira imponência das Portas de Ródão, ninho de grifos, águias e cegonhas!... Paisagens que só da janela do comboio se podem longamente apreciar!

                                                           José d’Encarnação

Ponte ferroviária no Douro

Locomotiva na Linha do Douro

Pormenor da estação do Pinhão


Comboio na Linha do Douro

Chegada de comboio à estação do Pinhão

Azulejos na estação de S. Bento (Porto)

 

Texto bilingue (em português e alemão) publicado em Portugal-Post (Correio Luso-Hanseático) [Hamburgo], 71, 05/2022, p. 34-43.

sábado, 21 de maio de 2022

Chiça, penico!...

 Abri a janela para saudar a manhã e agradecer a Deus mais um dia que me seria dado viver. Entrou um ventinho cortante e o chorrilho de impropérios saiu-me de supetão:
– Tá um frio desgraçado! Chiça, penico, chapéu de coco, abrenúncio!
Na casa-de-banho interiorizei o que instintivamente acabara de dizer: com que jêtes, môce?
            Afinal, eu digo isso muitas vezes, em circunstâncias análogas e só agora consciencializei ser também essa uma herança de meus antepassados. A meu pai ouvira eu esse desabafo, sem que bem me desse conta das palavras ali usadas.
            «Chiça» fui ver ao Dicionário da Academia: «Exclamação que exprime dor ou protesto» e que talvez derive da palavra alemã ««Scheisse», que significa ‘porcaria’. Está bem. E nem é calão, só palavra do léxico popular. Consolei-me.
            Agora, essa junção com o penico e o chapéu de coco é que não quadra bem, na aparência. Se chiça é ‘porcaria’, o penico não vai mal ali; o chapéu de coco, porém, leva-nos para altas cavalarias, senhores vestidos de fraque… Não dá a bota com a perdigota. A não ser que – popular malvadez!... – se queira de imediato atirar para a burguesia as culpas de todos os males, esse incluído! Vem depois o abrenúncio, e esse é mais lógico: frio assim desgraçado só obra do mafarrico!...
            E será que o senhor google, se eu puser a frase toda, me dá alguma dica? Pus. E deu resultado: não sou o único a perorar sobre esse tema!

                                               José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 306, 20-05-2022, p. 13.

 

segunda-feira, 16 de maio de 2022

Cantar de galo

           – Ó Maria, despacha-te! Que andas tu praí a besoirar?
            E o Joaquim voltou-se para a vizinha:
            – É sempre assim: quando temos pressa, põe-se a encanar a perna a uma arrã e depois ainda é capaz de cantar de galo, porque eu me esquecera disto ou daquilo.
            Conversas de antigamente que nem o Partido dos Animais e da Natureza sabe fazer ressuscitar. Do tempo em que mui saudavelmente se convivia com a Natureza e se tinha criação!… Até essa frase «ter criação» não é entendida agora à primeira. Que é lá isso de ter uma capoeira ao pé ou uma coelheira? Chegava-nos a casa uns primos sem aviso prévio? Sem problema: vai-se à coelheira, mata-se um coelhinho e está o almoço feito!
        Cantar de galo. Ele acabara de galar pomposamente duas das galinhas mais airosas da capoeira. Sentiu-se feliz, abriu as asas e… cantou, qual rei! Vangloriou-se.
            Besoirar. É um bichão de cores vivas, anuncia-se com um zumbido forte, bate as asas em frenesim. Mal poisa numa flor, ei-lo que salta para outra. E depois para outra. Será que conseguiu algum pólen de jeito ou foi só para se armar e marcar território?
            Encanar a perna a uma arrã. Tarefa que não vale a pena. O melhor mesmo é, se for gordinha, perder o amor à Natureza e prepará-la para o petisco. Coxinhas de rã? – Apreciam-se! ¿Quem poderia ter a veleidade e, sobretudo, a paciência de, um dia, tentar concertar com palas ou caninhas finas a perna duma arrã? Operação longa, longa de mais – e de nulo efeito, decerto.
            O besoirar, esse, é mais do nosso quotidiano, mormente o dos anciãos: pegas agora numa coisa, lembras-te doutra e não acabas a primeira; de seguida, olhas para uma terceira e dás-lhe seguimento… No fim da jornada, ainda a primeira se não acabou… Um dia de… besoiro!

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 822, 15-05-2022, p. 12.

 

sexta-feira, 6 de maio de 2022

Viver (n)um Centro de dia

         Vão de propósito as duas hipóteses de título para as palavras de abertura a esta colectânea de versos. David Inácio vive no Centro de Dia da AISI (Associação dos Idosos de Santa Iria), em Murches, freguesia de Alcabideche, concelho de Cascais, desde que enviuvou e passou a estar sozinho, mas vive esse Centro. Ou seja, não é elemento passivo, que por ali está sentado entre refeições, olhando vagamente o vazio: integra, ao invés, a comunidade que durante o dia o acolhe
Esse, sem dúvida, o primeiro aspecto a realçar.
Natural de S. Brás de Alportel, em pleno Barrocal algarvio, David Inácio herdou desses ares entre a Serra e o Mar a facilidade de versejar. E recordamos necessariamente António Aleixo, sabendo de antemão que esse foi um dos muitos que por esse Barrocal medram e versejam, na alegria de viver, na vontade magana de nunca deixar perder oportunidade.  Tudo serve ao barrocalenses para lhes sair uma quadra – e David Inácio não é excepção.
Confessa que foi na AISI que ele próprio descobriu essa veia. Já a teria, aposto eu; só que não lhe fora dado azo para que se manifestasse. A vida decorrer-lhe-ia monótona: casa – pedreira; pedreira – casa; um copito na taberna, dois dedos de conversa além – e nunca o estro se revelara, até porque, decerto, o ambiente não seria o mais propício. Foi-o a AISI, mormente porque, tendo enviuvado cedo, o novo meio lhe despertou de imediato o lirismo que os anos de labuta diária por entre macetas, escopros e ponteiros, lhe não haviam permitido alimentar. Aqui, sim.
Nunca será de mais evocar o papel dos jograis medievos, vozes que se faziam eco de vidas, anseios, alegrias e dissabores. Como aqui, em toda a simplicidade de quadras de pé quebrado. Não teve David Inácio a instrução bastante para saber de sílabas, de ortografias, de rimas toantes ou soantes, de imagens de estilo ou versáteis onomatopeias… Nada disso! Tudo nele é espontâneo e se, na edição, quisemos agora mostrar – na ilustração da capa, que é de sua autoria – o que nos entregou, primeiro à Dra. Ana Raquel Silva e depois a mim, e como no-lo entregou, foi justamente para o mostrar na sua bem genuína autenticidade. Limitou-se a Dra. Raquel a ortografar e eu próprio ousei propor, aqui e além, a palavra que melhor quadraria ao acento ou à medida e não bulia com o cantar desse ritmo. Omitiu-se a raríssima pontuação que vinha nos originais manuscritos: abandonámo-la todinha para que o leitor a descobrisse. Propôs-se apenas uma sequência cronológica, porque sabemos quanto a Poesia – e esta de um modo muito especial – vive do dia-a-dia, do Carnaval, da Páscoa, das visitas, dos almoços de festa, do Natal… Todos sabemos quanto a epidemia e, agora, a guerra profundamente interferiram no nosso viver. E no dos Poetas ainda mais!...
«Órfão de letras» lhe poderíamos chamar; rico, porém, na forma simples como nos transmite o que lhe vai na alma. Sentimentos de ternura. Muitos, esparramados quase por todas as quadras. Sentimentos do membro duma comunidade que intensamente vive como sua. Por isso, não perde um aniversário para, com esse pretexto, propor mais abraços e beijinhos.
  Curioso, não há dúvida, este pormenor do abraço e do beijinho. Para David Inácio, não foi preciso vir a epidemia – que ele bem sente, aliás («Tive um sonho arrepiado / Um sonho não verdadeiro / Sonhei que estava infetado / Com o vírus traiçoeiro») – para lhe mostrar a forte importância que ambas essas manifestações de carinho têm no relacionamento humano. Pululam abraços e beijinhos pelas páginas do seu livro. Ousa, por vezes, ir um pouco mais além, na insinuação de algo mais íntimo: «Dá-me água por favor / Mas que seja bem fresquinha / Para eu matar o calor / Que tenho nesta boquinha»; ou mesmo engenhoso convite a uma vida em comum que se lhe antoja venturosa: «Recebe de mim um beijo / Ó minha querida fofinha / Eu sinto um grande desejo / Que um dia sejas minha».
Nunca esmoreceram, porém, as saudades da sua Aurora: «Éramos felizes verdade / Caminhávamos lado a lado / Partiste veio a saudade / Recordo o tempo passado». E mesmo os carinhos que recebe e as «princesas» que o rodeiam nem sempre lhe conseguem sublimar ausências, consolar tristezas, ainda que o tente esconder: «Digo sou triste por fora / Mas sou alegre por dentro». E não resistiu, apesar disso, mau grado essa quiçá aparente alegria interior, a desabafar assim em despedida: «Já estou a bater no fundo / Como se costuma dizer / Irei para o outro mundo / Já estou farto de sofrer». Ainda que, de facto, seja o versejar um dos seus maiores arrimos: «Os poemas vou escrevendo / Porque escrever faz-me bem».
Cumpre-me, pois, terminar como comecei: temos aqui um testemunho de vida. «A Árvore da Vida» foi, de resto, o título que o autor escreveu e quis ilustrar. Deu folhas, flores e frutos a sua árvore ditosa. 90 anos volvidos sobre o seu nascimento em S. Brás de Alportel, David Inácio dá testemunho. Os que – com ele – quisemos mostrá-lo neste livro estamos felizes por tal, assim, na simplicidade maior, no-lo ter proporcionado.

            Cascais, Páscoa de 2022

                                                           José d'Encarnação
                                                                       Associação Cultural de Cascais

Prefácio ao livro A Árvore da Vida, de David Inácio, Cascais, 2022, p. 3-6.

APRESENTAÇÃO (p. 85):

David Inácio nasceu, a 29 de Abril de 1932, em S. Brás de Alportel, no Barrocal algarvio.
Na década de 50, veio – com muitos outros, canteiros, cabouqueiros, trabalhadores… – para as pedreiras de Cascais. Descobrira-se a importância do azulino cascalense para as grandes obras públicas de então e, por outro lado, o chão são-brasense não se oferecia tão dadivoso quanto os subúrbios da capital…
Nunca o abandonou, decerto, esse hábito barrocalense do rimar quotidiano, a pretexto de tudo e de nada, mormente – como os demais – perante o azougue feminino.
A Árvore da Vida constitui, pois, em despretensiosa singeleza, o seu tributo à alegria de viver!

                                                           José d’Encarnação

Em conversa com Daniela Anghel

«A palavra definitivo, nos tempos apressados de hoje, parece, se não uma utopia, um insulto».

            Decorreu com o natural entusiasmo a inauguração, no passado dia 23, da exposição «Desfiguração da Utopia», da artista romena-lusa Daniela Anghel, na galeria do Casino Estoril, onde ainda pode ser visitada até ao próximo dia 23.

            Os visitantes ficam estupefactos – é o termo! – não apenas pelas dimensões das obras ali patentes, mas, sobretudo, pelo realismo da multiplicidade das imagens que para cada uma das telas são convocadas.
«As expectativas utópicas humanas, a falta da água, a fome a e pobreza em África, a guerra na Síria e a perda da fé como crítica do presente» – constituem, na opinião da artista. os temas ali dominantes.
Aliás, há toda uma mensagem de intervenção a perpassar pela enorme beleza do que se vê. Daniela Anghel é, também, uma pensadora que faz da pintura uma arma. Impunha-se, por isso, uma conversa.
 

1.      Quem é Daniela Anghel?

 

            É preciso um longo desvio para falar de nós mesmos.  Neste espetáculo, que é a vida, cada um de nós vive como Cristo por quinze minutos, como afirma Andy Warhol; e nem todos têm a contentamento de ser representados na eternidade como o próprio Cristo. Todos nós temos escondidos algures uma versão particular do calvário. Não estou interessada nos desastres que um pequeno calvário particular provoca, mas na força criativa indefinida em que este se exibe.  Pode ser que neste estado temporário intempestivo se possa falar de qualquer coisa como eu.    

 

2.      Sendo teu pai um diplomata, acabas por ser também tu uma artista itinerante. Expuseste na galeria do Casino, a mostrar-nos personalidades portuguesas retratadas em ponto grande.

                  Que recordações tens dessa exposição?

            O Doutor Nuno Lima de Carvalho apreciou, apoiou e divulgou muito a minha pintura ao longo dos anos. Claramente, estou entre aqueles que tiveram o privilégio de passar umas tardes com o Doutor Lima e a Doutora Clarinda na Galeria de Arte do Casino. Tenho muitas memorias bonitas com eles. Foi através deles que conheci também a escritora Agustina Bessa Luís e muitas outras personalidades portuguesas. Também foi ao seu apelo que fui desenvolvendo projectos de pintura que poderiam talvez não ter acontecido. Em 2004, por exemplo, o Doutor Lima, convidou-me para pensar numa exposição dedicada às Mulheres de Portugal. Embora, em muitos dos casos possam ter passado despercebidas, acredito que quase todas as mulheres que retratei tiveram um papel decisivo na história e na cultura portuguesas. A escritora e jornalista Maria Lamas, foi uma das figuras que mais lutou para os direitos das mulheres portuguesas. Na Europa, entre 1948-1950, quando ela escreveu “As Mulheres do Meu País”, foram publicadas outras obras também, sobre o conteúdo analítico de “género” na sociedade; nomeadamente “As estruturas elementares do parentesco” de Claude Lévi-Strauss e “O segundo sexo” de Simone Beauvoir entre outros. Foi uma mulher solidária e é essa pré-disposição para o outro que mais me interessou nelas.

3.      Foste depois para o Brasil: que novidades te trouxe, como artista, o contacto com as gentes brasileiras?

        Vivi na capital, em Brasília DF. Uma cidade nova, moderna, a cidade criada pelos arquitetos Lúcio Costa, o Óscar Niemeyer e o engenheiro Joaquim Cardozo. Uma cidade viva com uma atividade cultural intensa. Um dos encontros mais interessantes que tive no Brasil foi através da arte. “A primeira Missa no Brasil” do pintor do imperador Pedro II, Victor Meirelles; o retrato autêntico e singular do povo brasileiro visto por Cândido Portinari, ele mesmo nascido numa fazenda de café; a pintura modernista da Anita Malfatti; os retratos dos africanos pintados pelo Arthur Timótheo da Costa; as obras “A Elevação da Cruz” e a “Fascinação”, pintadas por Pedro Peres; mostrara-me uma imagem totalmente nova sobre o Brasil. Era um Brasil que eu desconhecia e que, no fundo, como todas as coisas imensas que vale a pena ver, tocar, tentar compreender, continua cada vez mais desconhecido.

4.      Que significa este regresso a Portugal: mais uma passagem ou um regresso definitivo?

 

           É uma passagem. Para sempre, como se costuma dizer, é muito tempo. A palavra definitivo, nos tempos apressados de hoje parece, se não uma utopia, um insulto.

 

5.      Que mensagem principal pretendes passar com a exposição que vais apresentar-nos?

 

        Não procuro mensagens principais, respostas ou soluções, mas, sim, imagino a produção de ambiguidades geradoras de perguntas. A imagem nunca é uma realidade simples. “Para que a montagem ambígua dos corpos suscite a liberdade do olhar crítico ou lúdico, é preciso organizar o encontro” afirma Georges Didi-Huberman em O destino das imagens. As minhas pinturas mostram vários encontros de imagem/fantasma que reivindicam novas forças.

 

José d’Encarnação

 

Publicado em Duas Linhas,05-05-2022: https://duaslinhas.pt/2022/05/em-conversa-com-daniela-anghel/

Espírito Santo

Beleza árabe