sábado, 27 de março de 2021

Renascer

     

           Vingou-se a romãzeira. Aproveitou de imediato o sol primaveril e toda ela se vestiu de pequeninas folhas verdes e até fez aparecer, aqui e além, uns botões rosados a prometer romãs.
            Estava farta do desaforado jasmim, todo a pavonear-se em flor, a rir-se dos seus delgados tronquinhos nus. As vizinhas passavam «Hum! Que cheirinho bom!» e à romãzeira nem ligavam! Já se não lembravam que, há meses, lhe haviam apreciado a beleza das romãs! Prometeu que depressa renasceria para lhes dizer como, afinal, também bonita era a sua verdejante roupagem.
            Vieram divinalmente a calhar estes dias de sol. A passarada está mais alegre, as plantas espreguiçam a folhagem e nós próprios, os humanos, após forçados confinamentos, nos apetece ir por aí, a renascer!
            E houve quem pensasse nesse tal de Renascimento. A equipa da Egoísta, revista da sociedade Estoril-Sol (III) – Turismo, Animação e Jogo, S. A., foi precursora. Logo o número de Dezembro foi, mui sintomaticamente, dedicado ao Renascimento. Sim, esse de Leonardo da Vinci e de Rafael, que foram génios e ainda hoje como tais nós os consideramos. O Renascimento de há 500 anos, sim, mas lição ainda hoje: importa renascer sempre, sempre!
Vale a pena folhear pausadamente esse número da Egoísta.
Pergunta Mário Assis Ferreira, no prefácio:
«E será que, neste hodierno mundo em que vivemos, a perenidade do Ser ainda sobrevive à transitoriedade do Ter?».
E responde:
«Quero pensar que sim!
Quero acreditar que a Arte, a Cultura, nos humanizam e, nesse sortilégio de humanização, nos inspiram a rasgar, em pórticos de luz, a redentora visão de que renascer é preciso!
Quero, enfim, imaginar o Ser como um livro escrito por Deus, um livro cujo epílogo nos impele ao reencontro com nós próprios, com a raiz do que somos para além do que aparentamos ser»…
ooo
Pela calada, a romãzeira jurou pedir meças ao jasmim; pela calada, sem alarde (que é como eu gosto!), os responsáveis pela «coisa pública» olharam para aquele troço do vale do Rio dos Mochos, entre a Avenida Raul Solnado e a Rua Gomes Leal, entre o Bairro da Pampilheira e o lugar da Torre e deram conta de como era, também ele, susceptível de renascer. E mostrar-se!
Nicho ecológico privilegiado de muita passarada, altos pinheiros, uma figueira aqui, um medronheiro acolá, aquele rincão não podia estar assim, ao abandono. Ou melhor, sem que, além da passarada, os vizinhos dele pudessem usufruir! E, se bem o pensaram – e pensaram bem! – melhor o fizeram!
Dentro em breve, portanto – obrigado, Amigos! – ser-nos-á possível passear serenamente num ambiente ímpar, pelo caminho de saibro, sabiamente ladeado de árvores recém-plantadas, bancos para reconfortante pausa na caminhada, mesa para bem saborear a merenda. Providenciou-se pequeno parque de estacionamento a meio da Rua Joaquim Ereira; pode por uma ponte atravessar-se o ‘rio’ (vamos imaginar que vai cheio, deserto por abraçar o oceano na aconchegada Praia de Santa Marta…) e sorver, a longos haustos, um ar prenhe de oxigénio!
Abençoado renascer!

                                               José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal, 24-03-2021, p. 6.

 

domingo, 21 de março de 2021

Eu tenho o fauno na mão!

Fig. 1 - Fauno
            A propósito do pequeno templo mandado erigir, na Beja romana, por Júlia Saturnina, à esposa de Fauno, a Boa Deusa, acabei por mostrar a imagem de um Fauno, gravada num anel de cornalina exumado por ocasião das escavações arqueológicas levadas a cabo, em 2001, na villa romana identificada em Caparide (S. Domingos de Rana, Cascais). E dei comigo a pensar: será que o romano (ou a romana) que usaram esse anel teriam consciencializado, um dia, que tinham um fauno na mão?
É, na verdade, motivo decorativo esteticamente agradável à vista (Fig. 1): de pé, dorso arqueado, orelhas compridas, cabelo hirsuto, cauda longa, o fauno ergue nos braços a flauta cujo clangor vai enfeitiçar os humanos... Mas qual a razão da escolha? Estética apenas? Tendo, mui provavelmente, hipótese de escolher a compra, que razão terá induzido a esta preferência e não a outra?
Mexemos diariamente em moedas. Porventura agora já não ligamos muita importância àquilo que nos entusiasmou no início da era do euro: «Donde é que é esta? Que monumento será este? E este senhor quem é?». E até pensámos em coleccionar moedas de todos os países da União Europeia, porque… era giro conhecer as diferenças! Toda a gente sabe já que, no verso da moeda portuguesa de um euro está representado o selo real de 1144, de el-rei D. Afonso Henriques. Talvez se não tenha reflectido, porém, sobre qual a razão dessa escolha, quando, por exemplo, o euro alemão tem a monumental e bem simbólica Porta de Brandemburgo. Parece, na realidade, algo de estranho, esteticamente pouco convidativo ao olhar… Houve, contudo, uma razão: desde 1143 que Portugal é independente! E a Espanha só no princípio do século XVI, por acção dos Reis Católicos, é que logrou a união dos reinos em que, até aí, estivera dividida. E a Itália nos finais do século XIX, depois das lutas de Garibáldi! Isto é: assim se mostra aos demais que, quando eles nasceram, já Portugal existia!...
Moeda de Alcácer do Sal.
Por isso também, quando identificámos na villa romana de Freiria (S. Domingos de Rana, Cascais) uma estranha moeda e a limpámos, depressa compreendemos que a legenda IMP ‧ SAL queria dizer IMP(eratoria) SAL(acia) e tinha todo o sentido nela estarem representados dois golfinhos e, do outro lado, o busto de Neptuno, deus do mar, com o seu tridente (Fig. 2). Os habitantes da Alcácer do Sal de então quiseram plasmar na moeda o nome da sua terra, de que se orgulhavam. Não era qualquer uma que se poderia gloriar de ser imperatoria, ou seja, directamente ligada a um imperator, um chefe militar de excelência, nesse ano 44 antes de Cristo!
Voltando ao anel. Sim, o romano que o ofereceu à sua amada com a imagem de um sátiro poderia ter um segundo sentido, o de assim melhor a seduzir. Mas, ao usá-lo no dedo, que significado tinha o fauno para a senhora? Claro, também se poderia pensar que era um portador e não uma portadora. Nesse caso, será que almejava identificar-se com a sedução de Fauno, vagueando pelos bosques à espreita de mui descuidadas Ninfas esbeltas?
A questão permite-nos entrar no complexo e sempre misterioso mundo da Arqueologia. Não há textos nos guiem. Imaginamos o que terá acontecido, com base nos dados concretos encontrados, mas não temos garantia de que assim tenha acontecido, porque, em relação aos Romanos, dois mil anos passaram já, as mentalidades evoluíram e o que se nos afigura evidente pode não ter sido assim nessa altura. Em todo o caso, algo pode concluir-se desde logo: não era qualquer um que poderia dar-se ao luxo de ter anel com pedra de cornalina! E, por outro lado, a gravação da imagem de um fauno implicava conhecimentos da mitologia!...
Demos mais dois exemplos.
 
O auriga
           
Fig. 3 - O anel com o auriga
            Achou-se na villa romana de Freiria uma outra pedra de anel, esta de ónix, que representa um auriga a conduzir uma biga (Fig. 3). ¿Recorda-se o leitor de já ter visto, em hipódromos, corridas de cavalos em que o cavaleiro, em vez de estar montado no dorso, conduzia, sentado, um carro de duas rodas puxado por dois cavalos? Isso era uma biga, no tempo dos Romanos; e ao cavaleiro dava-se o nome de auriga. Ora, para além do aspecto estético – que nunca deve esquecer-se como razão da escolha – que poderiam os arqueólogos elucubrar perante tão curioso achado? Corridas de cavalos? Seria cavaleiro o portador do anel? E porque não?
            Claro, arqueólogo que se preza carece de justificar o melhor possível a hipótese de explicação apresentada. Ora, neste caso, como sói dizer-se, «estava-se mesmo a ver»!... Em Lisboa – a romana Olisipo – topara-se, não havia muito, aquando das obras de alargamento do metro, o hipódromo romano na zona do actual Rossio. Portanto, lugar para as corridas havia e não longe, embora também o hipódromo de Mirobriga, perto de Santiago do Cacém, não ficasse muito fora de mão… E, por outro lado, não correra mundo, pelos séculos fora, a lenda (lenda poderia não ser, afinal!...) de que as éguas da Lusitânia eram fecundadas pelo Vento e, daí, serem as mais velozes do mundo? Havia, pois, todos os ingredientes para os arqueólogos sonharem com a possibilidade de, em algum tempo, o proprietário da villa de Freiria se adestrara no manuseio das rédeas para ser triunfador! Então não é que ele empunha mesmo um ramo de louro, símbolo evidente da vitória alcançada!...
 
A deusa Diana
            O exemplo seguinte não é tão faustoso do ponto de vista estético. Não se trata do uso de uma pedra semipreciosa, mas de mui singelo objecto de barro: uma lucerna.
Lucerna era o nome que os Romanos davam ao que nós, hoje, chamaríamos, mais lhanamente, lamparina. Consta de uma pega, do disco onde se punha o combustível (azeite ou óleo) e do bico, por onde saía a torcida. Tudo muito simples, utilitário, para o dia-a-dia, portanto.

Pois o caso é que não seria bem assim. Essa função de alumiar, de concreta passou a ter também um significado maior, quase místico, dir-se-ia! Não será, por isso, de admirar que, num santuário como o de Santa Bárbara de Padrões, em Castro Verde, dedicado a uma ou várias divindades, a oferta devota fosse precisamente uma lucerna. Doutra forma se não entenderia o facto de aí se haverem encontrado às dezenas (Fig. 4). Ora também por esse motivo, por essoutro significado, é que a parte superior do disco passou a ser decorada com as mais variadas cenas e imagens.
         Uma das lucernas encontradas na villa romana de Freiria tem representada no disco a deusa Diana, divindade que, como se sabe, superintendia às actividades venatórias (Fig. 5).
            Significava essa representação que o seu proprietário fosse caçador?
Não necessariamente.
Primeiro, porque a lucerna era feita com um molde e, embora se não conhecesse o fabrico em série, o normal seria que o oleiro as fizesse logo em quantidade, enquanto estava ‘com as mãos na massa’, digamos assim. Depois, porque uma pessoa pode gostar de uma imagem só por meras razões estéticas; a caça era, de facto, uma actividade a que, por necessidade e por prazer, os Romanos se dedicavam, como o demonstram também as movimentadas cenas de caçadas plasmadas em policromos mosaicos que pavimentam as salas nobres das suas casas de campo (as villae); mas isso não implica acalorada devoção à deusa.
Por conseguinte, para o arqueólogo, a presença dessa decoração vale não expressamente como testemunho de um culto mas de uma cultura a que se aderiu.
         E torna-se, por isso, bem aliciante pensar que – no dedo de uma matrona romana ou de mui distinto proprietário rural – aquele fauno no anel mais não seria, afinal, do que excelente pretexto para, mostrando-o, proporcionar uma conversa… brejeira!... 
 
 
                                                                     José d’Encarnação

Publicado em Duas Linhas 2021-03-21: https://duaslinhas.pt/2021/03/eu-tenho-o-fauno-na-mao/

 

Viveu-se o Amor!

              Agradeço à amiga Cláudia Guerreiro ter-me chamado a atenção para a iniciativa «Trovas e Serenatas de Amor São-brasense» levada a efeito, no Dia de S. Valentim, pelo Gabinete de Gestão Cultural da Câmara Municipal, sob coordenação da vice-presidente, Marlene Guerreiro, um evento a que a Junta de Freguesia também deu a sua colaboração. Está ainda acessível na página do Facebook do Município.
            Na impossibilidade de se fazer ao vivo, junto da Fonte dos Amores, como era tradição, o espectáculo foi gravado e, desta sorte, quando eu acedi – já quase um mês depois – dei conta de ter havido cerca de 5000 visualizações! E tenho a certeza de que todos aqueles que puderam dispor de pouco mais de uma hora para ouvir e ver o que ali se passou não deram seu tempo por mal empregado. Eu não dei.
            Uma viagem. Começa com a carta de amor escrita a caneta de aparo, à moda antiga. Depois, seis casais com mais de meio século de vida em comum e também um casal jovem vêm contar como se conheceram, como foi o namoro, a cerimónia nupcial… E, sobretudo, explicam como se consegue manter o casamento: «sabermos desculpar», «ter cabeça para ultrapassar as dificuldades», «ganha-se 100, gasta-se 80»… Respeito, confiança, tolerância – as três palavras que mais se ouviram.
            As histórias passaram pelo baile na verbena, por idas do namorado prá guerra do Ultramar, pela emigração para a Alemanha e para a África do Sul… Casava-se depois de fazer a tropa…
            Muito bem arquitectado o conceito do espectáculo: Sofia Silva e Sónia Silva, as apresentadoras; Fernando Guerreiro nos intermezzi, dizendo as frases adequadas, quais poemas, no terno dedilhar da guitarra; Andréia Viegas e Inês Cruz a cantar trovas de amor (no início, a imprescindível «Amar pelos dois»), bem acompanhadas pela viola (viola será, porventura) de Nuno Martins.
            E o carinho com que os sete casais contam como tudo se passou! E aquele inesperado botão de rosa oferecido a ela no final da conversa!... «Onde é que ele foi buscar isto?», admirou-se uma, feliz. «Meu pai não quer que eu namore ainda», «Não é pela diferença de idades que deixamos de gostar um do outro».
            Fico grato pela iniciativa magnífica. E eu teria muita pena se a não houvesse saboreado.

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz, nº 292, 20-03-2021, p. 13.