sábado, 27 de julho de 2019

Dois espectáculos

              Sei bem que corro o risco de ser altamente injusto por só dedicar meia dúzia de linhas a dois espectáculos de excelência. Pesa-me também por não serem tão eloquentes quanto merecem.

Bailado
            Dia 29 de Junho, no Casino Estoril, a apresentação das classes da Escola de Dança Ana Mangericão. O tema, “From Ballet to Broadway”, pretexto para, numa sequência de bailados, coreografados pelos docentes da Escola, nos deliciarem. Importa referir-lhes os nomes: Ana Mangericão, Catarina Lopes Ribeiro, Susana Rodrigues, Brownen Stout, Maria João Filipe, Diana Vieira. E os alunos colaboraram!
            Doze trechos em cada parte, numa sequência rigorosamente pensada, de forma a alternarem-se não apenas os géneros musicais, mas também os níveis etários. Consolador ver como até os mais pequenos nos deram lições de disciplina, aprumo, alegria… Que nada houve ali que pudesse transmitir enfado ou sentimentos negativos. Do palco se evolou, a todos os momentos, contagiante hino à boa disposição.
            Impressiona a capacidade organizativa, o rigor da execução, a originalidade das coreografias.
            Um final de tarde muito especial, difícil de esquecer pelos estudantes, pelos pais e familiares. Destas centenas poucos serão os que encaram o bailado como futuro profissional; de qualquer modo, o que estão a aprender ficar-lhes-á para a vida!
            É pouco deixar aqui consignado – para alunos, docentes e toda a equipa, tão briosamente orientada pela Profª Ana Mangericão – um enorme aplauso; mas será a minha forma de me congratular com o indiscutível sucesso!


Teatro
            No Mirita Casimiro, outra demonstração do extraordinário resultado obtido pela leccionação, desta feita dos alunos da Escola Profissional de Teatro de Cascais. O Sonho, de August Strindberg, com versão e dramaturgia de Graça P. Corrêa, serviu para, na companhia de Ruy de Carvalho e de membros do TEC (Miguel Amorim, Luiz Rizo, Renato Pino, Sérgio Silva e Teresa Côrte-Real), os ora estreantes saberem o que é pisar o palco num espectáculo a sério.
            Aliás, como é costume para as PAP (Provas de Aptidão Profissional, que são as provas finais dos alunos), Carlos Avilez não deixou de criar momentos em que o bailado e o canto se incorporarem no entrecho, a fim de ser testada a capacidade de os estudantes se organizarem e movimentarem em conjunto (coreografia de Natasha Tchitcherova). De resto, para tal se presta a escolha de um cenário (de Fernando Alvarez) praticamente despido, apenas com leves rampas e estrados.
            Guarda-roupa original, próprio da mensagem a transmitir: os estranhos entes de Jerónimo Bosch n’As Tentações de Santo Antão, as musculadas mulheres de Paula Rego, os guerrilheiros do Daesh...
            Escrito em 1901, o texto detém acutilante actualidade. Vinda à Terra para saber como era a humanidade, Agnes, filha do deus Indra, encarnou Cristo de certo modo, mas, desiludida com o que viu, regressou ao assento etéreo sem pela humanidade se sacrificar. Achou que não valeria a pena. Os retratos circunstanciais que nos é dado presenciar revestem-se de oportuna sabedoria. Poderiam ser peças de um sonho. Não são. É bom que se nos apresentem. Assim. Nuas e cruas!
                                  
                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 291, 2019-07-24, p. 6.
Fotos do espectáculo do TEC retiradas, com a devida vénia, da sua página; as da apresentação da EDAM constituem especial deferência, que agradeço, do Gabinete de Imprensa da Estoril-Sol

quarta-feira, 24 de julho de 2019

O talismã da alcunha

               Foi cascalense dos quatro costados. Nasceu a 23 de Janeiro de 1927, na pequenina Rua da Palmeira, trabalhou durante 63 anos numa loja da Rua do Regimento da Infantaria 19, junto ao Largo Camões. Vendia calçado, solas e cabedais. Por isso, Henrique Rodrigues de Brito era mais conhecido como «o senhor Henrique da sapataria». Faleceu a 19 de Maio de 2014.
            Versejava. Ou melhor: para ele tudo era motivo de mais uma quadra, quer a pedido, quer porque estava prá virado.
            Este livrinho, ora em 2ª edição, vem na altura certa e bem fez a União das Freguesias de Cascais e Estoril em o reeditar.
            Assim se mostra quanto de saboroso, típico e substancial a alcunha encerra, por desta forma se caracterizar espontaneamente toda uma personalidade, nos seus tiques, na sua maneira de ser, na actividade que exerce. Diria ser uma espécie de talismã, que cada um carrega consigo e não se importa nada, porque sabe que, no fim das contas, ali não há maldade mas uma ingénua forma de carinho.
            Sentiu-se a necessidade, aqui há tempos, de editar um livro com as alcunhas do Alentejo. É o Tratado das Alcunhas Alentejanas (Edições Colibri, 4ª edição, 2013), de Francisco Martins Ramos (da Amareleja) e Carlos Alberto da Silva. É o primeiro professor catedrático de Antropologia; doutor em Sociologia, o segundo! Isto para mostrar o extraordinário alcance que a alcunha tem no seio de uma sociedade.
            E, neste livrinho, a sociedade é a vila de Cascais e as suas gentes, nos meados do século passado. As gentes com quem Henrique Rodrigues de Brito, «o senhor Henrique da sapataria» se cruzava todos os dias. Diz ele, no final do larguíssimo rol de alcunhas, que porventura mais haveria, «não me lembro, podem crer. Por me doerem as unhas, vou terminar de escrever».
            Terminou essa primeira parte, porque vem depois um ressuscitar do Largo Camões, o coração da vila; um relancear de olhos sobre os nobres que escolheram Cascais para viver – e o povo tinha por eles admiração e eles este Povo bem entendiam; passeamo-nos de seguida pela Rua Visconde da Luz e pela Rua da Palmeira, que lhe era tão querida, pois aí nascera. De caminho, não poderiam esquecer-se os sons quotidianos, Cascais e os seus pregões («Ó viva da costa! Venha cá ver, freguesa!» – parece-me que as estou a ouvir, as azougadas varinas, com seus aventais coloridos).
            Para quem, hoje, vê a vila custa-lhe a crer, de certeza, na quantidade de ofícios que por ali pululavam! De tudo havia! O funileiro, o latoeiro, o amolador, o ferrador, o capador… quem diria?!
            Revivemos, porém, os que tivemos a dita de já ser vivos então: a tabacaria do Messias, onde se compravam cadernos, lápis, os livros prá escola… Ai, as nozes e os bolos do Paulino!… Ainda hoje para os mais antigos escapa, de vez em quando, a referência à «padaria do Paulino» e, se calhar, até quem lá trabalha ainda não reparou bem na grande chaminé que o forno tinha… A Marelina, onde havia tudo quanto era botão e onde todas as modistas se aviavam. A relojoaria do Gomes; o Ferrer engraxador; o Barateiro, para os bibes; a sapataria do Carneiro; a Tabacaria Cabral; o Béu da drogaria na rua da polícia; o Retratista, que viria a morrer na Boca do Inferno, a tentar salvar uma turista; o Edmundo Ferreira, actor no grupo cénico dos Bombeiros; o chefe Zé Frito, uma glória dos bombeiros; «no outro lado do rio» (achei piada a esta frase!), a estância do Estêvão d’Oliveira…
            Henrique Brito tudo envolve nas suas rimas e não esquece histórias. O velhote Caga Lume, relojoeiro, quando ia para montar os relógios «sempre lhe sobravam peças»! O «Salsa», Mestre Oliveira, exímio afinador de pianos; o «Joaquim da Cooperativa que rifava um galo por semana»!
            No domínio dos «comes»: o João Padeiro (ai, aquele linguado frito que não tinha igual!...); o Pereira, que persiste na ‘ementa’ dos nossos dias; o Mestre Zé, que viria a ter restaurante no Guincho; o Torretas, com taberna em Birre; o Manuel Diabo, com casa de pasto entre o cemitério e a Boca do Inferno e o que a gente brincava com isso!...
            Vários dos personagens acabaram por se alargar pelos lugares vizinhos de Torre e de Birre: os Gafanhotos, os Paulistas, os Campanudos… Alfredo Pinheiro, o Perna de Pau, teve estabelecimento na Torre, muitas vezes me cortou o cabelo, e era ali mercearia, taberna, tudo… Foi presidente da Junta de Freguesia, doou à Misericórdia a creche que viria a ter o seu nome, na estrada para Birre. E já que se fala nessa estrada, à beira da qual eu passei a minha meninice, direi que uma das personagens que mais admiração me causava, pelo mistério que dele evolava (penso eu), era o Màriguta, que apregoava «Fèrrevelho!» e eu corria a perguntar «Ó mãe, não tens aí nada pró Màriguta?»… E, de vez em quando, vinha também o azeiteiro, que nos abastecia de azeite, petróleo, sabão… A carroça dele era um espanto de brilhos e de vasilhas!...
            Antes de se lançar na evocação do Largo Camões, Henrique Brito afirma não ter «veia poética». No final do livro, apela ao respeito pelos velhos, que são, afinal, como ele, repositório de tantas memórias. De memórias se vive aqui. E se revivem. E poesia, Amigo, é isso mesmo: criar rimas, sim, mas sobretudo fazer as memórias falar. Em tom de chalaça aqui, mais sério acolá; sempre, porém, numa profunda atenção às Pessoas! Essa, a sua grande Lição! Estamos-lhe também gratos por isso!

                                                                       José d’Encarnação
                                                                   Associação Cultural de Cascais

Prefácio ao livro, de Henrique Rodrigues de Brito, Nomes e Alcunhas de Cascais, União das Freguesias de Cascais e Estoril, Cascais, 2ª edição, 2019, p. 3-5.

As nossas falas

             Está garantido: o falar próprio de cada região constitui o seu património cultural imaterial. E há, por isso, que preservá-lo. E usá-lo, porque não?
            Bem fez a nossa mui querida amiga Lídia Jorge quando, no seu «O Dia dos Prodígios» pôs aquelas alminhas a falarem bem à algarvia, até com ponto final onde faziam pausa, mesmo que gramaticalmente não desse jeito nenhum. E Julieta Lima, de Olhão, ora radicada pelo concelho de Loulé, autora, por exemplo, do livro «Contos por Cordas» e doutros, em que pôs a falar à moda de Olhão aqueles marafados todos!
            Temos um «Dicionário do Falar Algarvio», do Eduardo Brazão Gonçalves. A 2ª edição, aumentada, que é a que eu tenho, data de Dezembro de 1996, apoiada pela Direcção Regional do Algarve do Ministério da Cultura. Mas já Estanco Louro, no seu «O Livro de Alportel» sabiamente ensaiara a apresentação de um vocabulário dito «alportelense», que, na reedição feita pelo município em 1986, ocupa as páginas 211 a 278.
            Abençoados!
            Aliás, tenho ideia que tudo isso interessou – e interessa! – grandemente o nosso Padre Afonso Cunha, que anotava (disse-me) quanto eu apontava de novidade lexical na coluna «A Retalho» do VilAdentro.
            Pois aí vão mais algumas dessas falas que me recordo de ter ouvido a meus pais e avós:
            – Ele disse que vinha de témêdia (= de manhã, até ao meio-dia);
            – O moço pequeno está cheio de abábuas, mulher! (aqueles altos devido a picadelas de insectos);
            – Ena, compadre! Até fiquei azamboado! (assim como não saber bem onde se está, com a cabeça à roda);
            – O homem saiu desostinado de casa (= parecia um doido, bem depressa, com vontade de ir fazer alguma!...)
            – Pois, ando cá hoje com uma dor no ortelho!... (por artelho, tornozelo).
            E com essa verdadeira dor no ortelho hoje me vou!...

                                                                       José d'Encarnação

Publicado em Noticias de S. Braz [S. Brás de Alportel] nº 272, 20-07-2019, p. 13.

Livros, livros, livros!


             Dizem que se escreve pouco. Eu afirmaria, antes, que pouco se lê desses livros que se palpam e podem acariciar-se, onde se sublinham as palavras mais significativas para cada um de nós ou, até, se fazem anotações à margem. Recordo como é aliciante ‘sentir’ que aquela página foi lida pelo investigador José Leite de Vasconcelos, porque escreveu ao lado uma sábia observação, a lápis.
            Procuro sempre ler de lápis na mão, se o livro é meu. Mais tarde, ao folheá-lo, há essas frases sublinhadas que me saltam mais à vista e paro a fim de as reler e lembrar-me da razão pela qual essa passagem, há anos, me pareceu ser de interesse.

             
             Há mesmo um vídeo que guardo e não sei como o hei-de propagandear, porque não fiquei com os dados. Tem por título «book», apesar de a versão que eu tenho estar vertida para castelhano e quem o procura ‘impingir’ – como se fosse um daqueles produtos-maravilha publicitados na hora dos telejornais, ligue agora, que terá 10% de desconto e ainda lhe oferecemos uma almofada!... – esse, o senhor do anúncio, muito sério, lá vai dizendo que é sua intenção falar-nos de um «novo dispositivo de conhecimento bio-óptico organizado», que representa «uma revolucionária ruptura tecnológica», porque é portátil, não usa bateria, não carece de cabos nem de fios e, ainda por cima, trabalha sem rede… O tal «book»!
            Todos augurámos, um dia, escrever um livro. Mesmo os que, durante antes, escrevemos crónicas em jornais e até gostávamos que um mecenas nos batesse à porta, disposto a arcar com as despesas da edição. Não deixa de ter piada ver uma das nossas crónicas a servir de embrulho para a dúzia de castanhas assadas. Certo é, todavia, que, depois, a folha do jornal ou vai para o papelão (na melhor das hipóteses) ou pode, até, ser a escolhida para pôr no chão, uma vez que o canito lá de casa até manifesta especial predilecção por deixar presentes em folhas de jornal…
            Bem andou, por exemplo, o nosso amigo João Lourenço Roque, distinto catedrático que, aposentado, decidiu largar as delícias urbanas de uma Lusa Atenas e foi refugiar-se em Calvos, recôndita aldeia da freguesia de Sarzedas. Daí observa o mundo, as gentes, e sobre tudo vai escrevendo crónicas que reuniu em «Digressões Interiores» 1 e 2 (esta com os textos publicados de 2011 a 2017), donde extraio a sua confissão de ter, entre outros, «o vício da escrita aos farrapos, quantas vezes farrapos da minha própria vida» (p. 114), uma escrita que ele tem em jeito de conversa com a pessoa amada – e nunca se descose a dizer quem ela é, se amor platónico ou real: «Ainda não sei o que os teus olhos diziam» (p. 128). Nós sabemos, porém, o que, observando horizontes, pela escrita os seus olhos nos dizem. Sublinhamos esta e aquela passagem – e ficamos enriquecidos…

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 758, 2019-07-15, p. 12.

quarta-feira, 17 de julho de 2019

António Salvado – Um escritor compulsivo

            Cruzo-me constantemente com pessoas, de todas as idades, que estão longe do caminho que levam. De auscultadores nos ouvidos, vivem seguramente num outro mundo, o das suas melodias preferidas ou o de afastadas vozes que assim se lhes tornam presentes. Um outro mundo – e não aquele da calçada que pisam, do gritar assustado do melro ou do embater das ondas nas rochas…
            Outro mundo, esse, o do som das aves ou do incessante murmúrio do mar. Mundo real, dos seres vivos, das pessoas… E esse é o do Poeta ou do Escritor, que insiste em fazer parte da comunidade em que vive, do lugar onde habita, do chão que pisa.
            António Salvado apresenta-se-nos como esse alguém capaz de adoptar a sugestão que o filósofo romano Séneca deu a Lucílio (Ad Lucilium Epistulae Morales – 95, 53):
            «Ille versus et in pectore et in ore sit homo sum humani nihil a me alienum puto».
            «Que esteja no coração e na boca aquele verso que diz: «Sou homem e nada do que é humano eu considero alheio a mim!».
            Ouso, por isso, chamar-lhe um escritor compulsivo, porque certamente pratica também aqueloutra sugestão que Plínio-o-Velho (Naturalis Historia, 35) atribuiu a Apeles, o celebrado pintor: «Nulla dies sine linea», que em nenhum dia o Sol se ponha sem que tu tenhas escrito uma linha só que seja!
            Cumpre, pois, de quando em quando, dar conta do que o compulsivo escritor nos vem legando.

Reflexões sobre os museus
            Tendo sido, durante anos, director-conservador do Museu de Francisco Tavares Proença Júnior, dele editou a Sociedade dos Amigos desse Museu o livrinho Museu e Comunidade & Outros Textos, acabado de paginar, lê-se numa das badanas, «no dia 11 de Dezembro de 2018, dia do papa São Dâmaso, poeta e padroeiro dos arqueólogos que a tradição afirma ter nascido em Idanha-a-Velha».
            A apresentação, oportuna e erudita, é de Luís Raposo, que dirigiu o Museu Nacional de Arqueologia. «Museu e Comunidade», de 1977, proclama a necessária relação das instituições museológicas com o ambiente em que existem. António Salvado insiste na necessidade da «salvaguarda dos valores que definem o vasto património da cultura comunitária, regional». E, num momento em que – é o escritor um visionário, por vezes! – a escola-oficina dos tradicionais bordados de Castelo Branco foi extinta no museu, o que se destaca é «a chamada arte artesanal». Aquela ‘ciência’ que o saber ancestral foi condimentando e à qual importa voltar.
            Segue-se o texto de uma ‘conversa’ de 1989 (gostaríamos de saber em que circunstâncias ocorreu, mas o Autor parece resistir a contextos cronológicos e geográficos…). Chamou-lhe, mui sugestivamente, «Museu lição de coisas», porque os objectos expostos, se devidamente integrados no ‘mundo’ que os viu nascer, assumem-se lições de vida!
            «Por um museu etnológico da Beira Baixa» é de 1983 e mantém a sua actualidade na proclamação da região como um todo diversificado que importa, afinal, preservar na sua diversificação autêntica.

Para que se não olvide…
            Essas reflexões do Homem e do Poeta, semeadas aqui e além, ao longo de já longo percurso, vão, mui judiciosamente, sendo passadas a livro. Cito dois.
            Sirgo II, datado de finais de 2018, reúne, como se anota em subtítulo, «Quatro títulos esgotados de poemas em prosa e poemas dispersos por outros títulos esgotados». Mais de 170 páginas, edição e propriedade do Instituto Politécnico de Castelo Branco (ISBN 978-989-8196-75-0). E os esgotados são «Malva», de 1995; «Largas vias», de 2000; «Ravinas», de 2004; «Modulações», de 2005. E os dispersos aqui reunidos atingem a bonita soma de 70!... Difícil comentar. São ecos d’alma ao longo «da vereda semi-perdida», em que o Poeta procura o seu lugar, na ânsia de um ripanço «azul sobre a cabeça e cabeça sob os pés» (p. 164).
            Poemas d’”O Pequeno Lugar” constitui, por seu turno, nas suas escassas 40 páginas, em edição (deste ano de 2019) da Associação Cultural chamada precisamente «O Pequeno Lugar», o oposto ao alheamento que eu anotava nas considerações iniciais: os textos, breves, comentam (dir-se-ia) as mui sugestivas fotografias de Marco Nunes, a chamar a atenção para as falas simples das humildes casas de xisto e o rumorejar das águas simples da ribeirinha... Tem razão o Poeta: aí, ‘um dia qualquer’, cansado da diáspora e de ‘missão cumprida’, o Homem regressará. E verá tudo com um outro olhar, sereno, sem se preocupar com os relógios…

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Reconquista (Castelo Branco), 4-7-2019, nº 3825, p. 35.



quarta-feira, 10 de julho de 2019

Um filho, uma árvore, um livro!

Memórias
            Não sei quem escreveu a frase, hoje do domínio público, sem que lhe seja possível determinar paternidade. Para ser completo, o Homem tem que fazer um filho, plantar uma árvore e escrever um livro.
            Máxima de tal modo entranhada na humanidade que muitos, senão todos, almejariam escrever um livro: «A minha vida dava um romance», «dava um filme»…
            As «memórias» constituem o género literário preferido por quem teve uma vida intensa e sente necessidade de a partilhar quer para que se lhe reconheçam os méritos quer a fim de outrem não incorrer nos erros porventura cometidos.

Assis Ferreira
            Referiu-se, na passada crónica, o que Georges Dargent nos deixou como testamento. «Os poemas da minha vida», de Mário Assis Ferreira, livro apresentado a 7 de Dezembro de 2016, pode assumir-se como forma diferente de memórias autobiográficas, embora liminarmente o autor como tal o desconsidere. Primeiro, não foi casual a escolha dos poemas; depois, os comentários não assumem apenas uma forma (bem ajustada, diga-se) de crítica literária, porque Assis Ferreira acaba por ceder à envolvência do manto das recordações:
            «Conheci Vinícius de Moraes em casa de Tom Jobim, numa daquelas sextas-feiras em que, noite adentro, a música nos embriagava, as horas corriam céleres e era o nascer do Sol a alertar-nos. Disse-me um dia que sabia ir morrer de cirrose mas queria antecipar-se na homenagem à morte, abrindo um bar, no Leblon, baptizado de «Cirrose». Ambas as profecias se confirmaram» (p. 37).
            «Fui amigo de David Mourão Ferreira. Dele recebi, como legado, a saudade irreparável, a aprendizagem no vício do cachimbo» (p. 54).

Aquela biblioteca móvel…
            Não me sentei ainda ao canto do jardim, a pensar nos livros que me rasgaram horizontes. Sei que foram livros de papel, que, mensalmente, me deixava em casa a Biblioteca Móvel do museu, a grande invenção de Branquinho da Fonseca. Salgari, Júlio Verne, Júlio Dinis, Eça de Queiroz, Jorge Amado…
            Decidi ir agora à estante. Tenho lá uma pasta com a etiqueta ‘Leituras’. Não podia sublinhar, eram livros de leitura pública, mas anotava o que mais me chamava a atenção. Folhas A4, dactilografadas dos dois lados, a um espaço, com fita vermelha (a que menos se gastava), cheias de citações repletas de abreviaturas. Colho uma, a primeira que me chamou a atenção, de «Saga», do Erico Veríssimo (Edição Livros do Brasil, Lisboa, 4ª edição, sem data):
            «Os homens complicaram muito a vida. Veja… Rádio, jornais sensacionalistas, televisão, aviões. Pressa, muita pressa. Vive-se depressa, morre-se depressa, come-se depressa, ama-se depressa, É como se quiséssemos chegar o quanto antes a um ponto determinado. No fim veremos que não há nenhum objectivo sério. E os homens, cansados e gastos, vítimas das máquinas e dos mitos que eles criaram, chegarão à certeza de que é preciso procurar outra coisa».
            As palavras são de Dom Miguel, vêm na pág. 122. Anotei no final da resenha: «Agosto 1970». Ainda não tinha 26 anos – e sinto de novo, agora, como Dom Miguel tinha razão!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 289, 2019-07-10, p. 6.

sexta-feira, 5 de julho de 2019

Está com um livro – parabéns!

            Serenamente, Rosa aguardava a sua vez, na sala de espera do Serviço de Imagiologia. Levara um livro para ler, porquanto viera com tempo, para a ecografia. Quando a veio chamar, a técnica não resistiu a dizer-lhe, enquanto a encaminhava por o gabinete:
            – Parabéns! A senhora era a única que, na sala, estava a ler um livro, toda a gente via era os telemóveis!...
            Rosa admirou-se, sorriu, agradeceu e concordou.
            O Museu Arqueológico de S. Miguel de Odrinhas (Sintra) ufana-se de ter reunido, ao longo dos anos e muito por acção do seu responsável, Dr. Cardim Ribeiro, bibliófilo militante, uma excepcional biblioteca sobre a Antiguidade, inclusive com volumes de edições raras, seculares. À entrada desse espaço modelar, pronto a receber investigadores, uma placa em latim reza assim: LEGE · LEGE · LEGE · RELEGE – que é como quem diz: não te canses de ler!
            Hoje, a leitura começa a ser feita em «tablets» e, na escola, os meninos aprendem a manuseá-la, até porque inclusive o tradicional TPC lhes é enviado por correio electrónico. Compreende-se e aceita-se a inovação. Isso não está, porém, a impedir – e ainda bem! – que, em Centros de Dia e noutros locais comunitários, se haja instituído a «Hora da Leitura», amiúde protagonizada por um escritor. Uma forma, portanto, de contrabalançar o avanço do digital em exclusivo e de, por outro lado, se ensinarem os mais novos a sentir o cheiro do papel impresso e a palpar-lhe a textura.
            Custa-me passar junto de contentores do lixo e deparar com caixotes de papelão cheios de livros ou mesmo livros a monte, parte deles de colecções quase completas. Outro dia, eram mesmo os volumes de uma enciclopédia. Recolho-os por norma, faço a selecção, passo em revista as entidades passíveis de os receber e… começam as diligências da distribuição, evitando, pela diplomacia, eventuais relutâncias, mormente por parte do pessoal nem sempre vocacionado para a função que lhe cometeram e que, por isso, vê num novo volume apenas mais uma entrada a inserir no ficheiro!... Recordo o dia em que técnicos duma biblioteca foram a umas águas-furtadas onde, para entrega gratuita, havia uma colecção (rara em Portugal) de livros de bolso ingleses, mais de um milhar, tudo bem arrumadinho… e opinaram não ter qualquer interesse. Eram as águas-furtadas servidas por estreita escada quase em caracol…
                                                                                  José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 757, 2019-07-01, p. 11.

quarta-feira, 3 de julho de 2019

A igreja matriz de Alcabideche

          Acertaram quantos apontaram ser este o campanário da igreja matriz de Alcabideche, cujo orago é S. Vicente.
            Tudo o que se sabe acerca desse templo e da vida religiosa que, em torno dele, se desenvolveu ao longo dos séculos pode ver-se, com muito proveito, no livro que Guilherme Cardoso, Jorge Miranda e † Carlos Andrade Teixeira escreveram, intitulado Registo Fotográfico de Alcabideche e Alguns Apontamentos Histórico-Administrativos, livro publicado em 2009 pela Junta de Freguesia local. Vejam-se, de modo particular as páginas 63-79.
            A actual construção é posterior ao terramoto de 1755; contudo, a igreja foi erguida em local de tradição religiosa anterior, pois que aí se encontraram vestígios da época romana.
            Está o templo intimamente ligado à tradição de Nossa Senhora do Cabo, cuja imagem peregrina de vinte e cinco anos o visita; e também às festividades do Espírito Santo e respectivo bodo.
            Vale a pena reler as páginas referidas onde, por exemplo, se diz do que relatavam os visitadores: questões de bruxas, de bebedeiras por perto, de dinheiros desviados… Vale a pena! Claro: outras informações menos ‘picantes’ ali igualmente se encontram…

                                                           José d’Encarnação

segunda-feira, 1 de julho de 2019

Da Arte de Ler o Tempo


            Sob o patrocínio da Universidade de Coimbra – através do seu Centro de Estudos Superiores em Alcobaça – decorreu nesta cidade, hoje, dia 1, e terá continuidade amanhã, o VI Seminário da Rede de Bibliotecas do Concelho de Alcobaça, subordinado ao tema “Da Arte de Ler – o tempo”.
            Hoje, foi dia de comunicações no auditório da Biblioteca Municipal: os docentes da Universidade de Coimbra Carlos Fiolhais e José d’Encarnação falaram, de manhã, respectivamente sobre «Os livros como máquinas do tempo» e «Da arte de ler o tempo entre os Romanos». De tarde, o escritor e imaginauta Carlos Eduardo Silva proferiu a conferência «Percepção e distorção – o tempo na ficção científica, e o escritor Richard Zimler dissertou sobre «Romance histórico».
            O programa de amanhã, a realizar na Escola Secundária D. Inês de Castro, inclui cinco oficinas:
            A bióloga da Universidade de Coimbra Ana Cristina Tavares orientará o tema «Storytelling em Comunicação e Educação de Ciência»;
            Na oficina 2, Paulo Trincão, director do Exploratório Centro de Ciência Viva de Coimbra, presidirá ao desenvolvimento do tema «É tempo de explorar a ciência nos livros infantis;
            Na oficina 3, de novo Carlos Eduardo Silva, agoira a proseio da «Anatomia das histórias»;
            Na oficina 4, Maria Antónia Oliveira, da Universidade Nova de Lisboa, orientará «Escrever a vida»;
          – Finalmente, na oficina 5, Joana Bárbara Fonseca, bolseira de doutoramento em Materialidades da Literatura, a concretizar na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, será monitora do tema «Fanfiction na era digital: reescritas e recodificações».
            Trata-se de um curso de formação devidamente creditado, dirigido, em especial, a docentes e a bibliotecários, cujas inscrições depressa se esgotaram e constitui uma das iniciativas anuais que o referido Centro de Estudos patrocina, com o apoio também da Câmara Municipal.

                                                                        José d’Encarnação