sábado, 24 de setembro de 2022

Esbanjador de sorrisos

            Electrizante a música e bem oportuno o poema «Madre Tierra» (2014) do cantor porto-riquenho Chayanne [ https://youtu.be/VkuRIZ7QyDM  ]. Certamente não houve sessão de hidroginástica deste Verão que não haja optado por terminar a ouvi-lo. O ritmo e toda a coreografia proposta levantam alto o espírito, dispõem bem, promovem saudável convivência:

Ouve, abre os olhos, olha para cima
Desfruta das coisas boas que a vida tem!

Desde que estivera, em Maio de 1989, numa das ilhas do arquipélago das Baamas que o Rogério se apercebera da enorme força do sorriso.

Era quase lusco-fusco. Cruzou-se com ele bonita senhora de meia-idade. Não resistiu a que os seus olhares se cruzassem também. A senhora esboçou logo um sorriso: «You welcome!», «Seja bem-vindo!». Rogério correspondeu; instintivamente e estacou, de imediato, a consciencializar o ocorrido. Ele acabara de chegar do outro lado do Atlântico; a senhora não o conhecia de sítio nenhum e sorriu-lhe!
Daí por diante, Rogério jurou ser um esbanjador de sorrisos.
No cosmopolita equipamento balnear onde lhe foi dado passar uns dias de férias, repetiram-se, pois, os bons-dias, «have a nice day», «you welcome», «boa noite!»… Sempre correspondidos, com toda a naturalidade, passado o inicial centésimo de segundo de surpresa.
No elevador, a jovem tinha, naturalmente, a objectiva ao peito. Rogério olhou, viu-a apontada para ele, «assustou-se», pôs as mãos no ar – e foi o sorriso geral.
A menina segurava uma enorme bóia em forma de flamingo. O bico do bicho soltou-se-lhe dos braços e, numa «ameaça», bateu num Rogério «assustado». A menina riu, os pais acharam piada. O sorriso instalou-se nos escassos segundos da subida do ascensor.
Faleceu-lhe inesperadamente uma colega, amiga do peito e cúmplice em muitas iniciativas. No luto, Rogério deu consigo, a determinado momento, a enviar-lhe um sorriso! E tem a certeza de que ela lhe correspondeu!

                                               José d’Encarnação 

Publicado em Duas Linhas,  14-09-2022: https://duaslinhas.pt/2022/09/a-senhora-sorriu-lhe/

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

O sonho, a nossa 3ª dimensão!

                                   (A propósito de um livro de Eugenia Serafini)

E essa 3ª dimensão, a do sonho, assume importância vital. Somos corpo – e há que alimentá-lo; somos espírito – e há que perenemente o envolver num manto de pensamentos positivos; somos sonho – e há que jamais perder essa capacidade de sonhar.

Porventura, não consciencializamos bem as frases dos poetas: «Deus quer, o homem sonha, a obra nasce», sentenciou Camões; «Eles não sabem nem sonham que o sonho, o sonho comanda a vida», proclama António Gedeão na sua imorredoira ‘Pedra Filosofal’, imortalizada por Manuel Freire.
¿Não é um sonho também O Principezinho, de Saint-Exupéry – como o foi, entre tantos outros, O Feiticeiro de Oz, com a inesquecível Judy Garland?!...
Escreveu a pintora e professora Eugenia Serafini um livro de estranho título: Il Preside che camminava sui rami di pino e i Racconti della Luna (Edições Artecom-onlus, Roma, 2019). «O Presidente que caminhava pelas ramagens de um pinheiro» e que, já no gabinete, querendo negar, com algum nervosismo, que não, não andara pelo bosque, passou as mãos pelo cabelo e deixou cair no chão uma agulha de pinheiro!...
Com prefácio de Marcello Carlino e posfácio de Nicolò Giuseppe Brancato, o livro, profusamente ilustrado (tenho, aqui para nós, o privilégio de possuir um exemplar pintado à mão pela autora com pastel giotto natural!...), contém 14 contos nas suas 112 páginas: «Os anjos», «Anita e o cocheiro», «O sonho do almirante», «Aquela que contempla a Lua»….
Contos breves, onde, do ponto de vista gráfico, a autora deu largas à sua criatividade: os negros e os itálicos surgem inopinadamente; as maiúsculas podem aparecer no meio da palavra; a paginação obedece, aqui, a um eixo de simetria e está alinhada apenas à esquerda, mais adiante, inclusive na mesma pagina. Dir-se-ia que a intenção é chocar, despertar a atenção… sonhar!
            Prendeu-me, de modo especial, a atenção, um dos contos maiores (p. 79-105), «História para um coração de criança», que a Autora quis fazer preceder de uma epígrafe: «Perdoai-me, amigos meus, se não confiei no vosso ser adultos e escrevi e sonhei com o nosso coração criança».
            Começa assim:
            «Encontrara-a na areia da praia, qual pétala murcha: tomou-a nos braços, temendo que estivesse morta, quão pálida estava e fria; mas não: respirava ainda! Ainda que estivéssemos no solstício de Verão, chovera muito e ainda estava frio, como em Março: o velho Renato descera para ver o mar cinzento, sob o cinzento do céu, quase empurrado por um pressentimento, e dera com ela, por acaso, estendida entre areia e mar».
            Levou-a para casa e, tendo-a aconchegado nos cobertores, viu que recuperara a cor: «Era uma menina loira e frágil, muito bonita». Giuggiola de seu nome, soube-o depois.
            Daí por diante, sucederam-se os encontros, envoltos sempre numa aura de poesia, em diálogos límpidos e profundos, a lembrar os do Principezinho de Saint-Exupéry.
«O velho ocupava-se nas lides habituais: as tarefas domésticas, a limpeza, os trabalhos na horta e no jardim; podava as rosas, cortava agora um lírio para pôr na jarra; mas bastava-lhe pensar na menina e logo ela lhe aparecia pela frente, como que por encanto».
            Giuggiola era amiga doutro menino, o Lino; brincava com ele, sonhava os mesmos sonhos que ele; só que, um dia, entrou num sonho que não lhe agradou e, ao fugir, caiu – e foi assim que Renato a encontrou. E Lino nunca mais apareceu.
            Passaram os dias neste enleio. «E o velho via Giuggiola sentada, muitas vezes, na orla do tempo, a esperar o sol-pôr: com a cabecinha entre as mãos, esperava que o seu sonho aparecesse».
Esta, pois, a atmosfera, sedutora para crianças e para os adultos também, estou certo, porque entre linhas há frases que nos obrigam a parar.
Está prestes a vir, agora, neste tempo em que escrevo, o equinócio do Outono, a deixar para trás praias, sol, divagações… Espera-nos tenebrosa engrenagem a correr de manhã à noite e, amiúde, noite adentro. Precisamos de a suster; precisamos de, sentados na orla do tempo, abrir os nossos braços ao Sonho! Como Giuggiola.

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Duas Linhas, 30-08-2022: https://duaslinhas.pt/2022/08/o-sonho-comanda-a-vida/


                                            «Nuvola», uma instalação de Eugenia Serafini


A sedução dos pássaros

            Queira-se, ou não, fazem-nos companhia, mesmo quando habitamos em agitado meio urbano. Há sempre alguma ave que nos espreita.

Gosto de almoçar vendo da janela os melros e as rolas irem até à pia que jeitoso canteiro são-brasense afeiçoou e ali se dessedentarem ou banharem-se de contentes.
José Manuel Durão, morador resvés do Parque Urbano da Ribeira dos Mochos, em Cascais, também não resistiu a essa sedução e, meses a fio, foi captando com a sua objectiva as poses dos pássaros que avistava. Dessa mui saudável iniciativa viria a nascer o cativante livro Aves da Ribeira dos Mochos, editado pela Câmara Municipal de Cascais em Julho de 2010.
Um pouco mais para norte, na Mata Municipal do Bombarral, também a passarada abunda, aí se refugiando das adversidades urbanas. E aí a foram surpreender Hélder Cardoso e Marco Nunes Correia.
O Hélder, nascido nas Caldas da Rainha em 1984, especializou-se em monitorização de aves selvagens (captura e anilhagem) e realiza-se como guia de observação de aves.
Marco Nunes Correia (Alcobaça, 1973), licenciado em Design de Comunicação, tendo também participado em actividades de monitorização de avifauna, assume-se como ilustrador nato, com experiência posta em prática em expedições na Amazónia, em S. Tomé e Príncipe e em áreas protegidas de Portugal.
A dupla ideal, portanto, para concretizarem a elaboração do Guia das Aves da Mata Municipal do Bombarral, magnífica edição (de 2000 exemplares) da Associação de Defesa do Rio Real, com o natural apoio da Câmara Municipal do Bombarral. É esta uma das primeiras associações criadas para a defesa de um rio, neste caso, o Real, decerto pouco conhecido: nasce na Serra de Montejunto, percorre 33 quilómetros e desagua na Lagoa de Óbidos. 
No livro, cada ave tem a sua bem pormenorizada ficha na página da esquerda: identificação, habitat, abundância e distribuição em Portugal Continental, situação na Mata Municipal do Bombarral. Tudo bem explicadinho por miúdos!...
E, na página da direita, a excelente demonstração do rigor pictórico de Marco Correia, que não se contentou com uma imagem, mas nos presenteia com várias: o macho, a fêmea, a ave jovem, a adulta, o voo, «a vocalizar»!... Nem todos estes tópicos se apresentam e, por vezes, há outros, como o ninho ou o instantâneo daquele tordo-músico partindo caracóis, utilizando uma pedra como ‘bigorna’. Um mimo!
Sabe-se como há quem faça grandes deslocações para usufruir do encanto da observação das aves. De resto, é o birdwatchting é uma das actividades turísticas com cada vez maior número de adeptos.
Acontece que as aves não nos oferecem apenas suas vistosas plumagens e seu alegre gorjear: são também motores de um ecossistema, que importa preservar. E se no Parque Urbano da Ribeira dos Mochos e na Mata Municipal do Bombarral elas se sentem bem é porque aí o ambiente lhes é propício. A nós, humanos, a obrigatoriedade de com elas colaborar.
Nesse sentido, as 80 páginas do livro de Hélder Cardoso e Marco Nunes Correia, dotadas, no final, de um índice por ordem alfabética, constituem obra de muito aplaudir!

                                               José d’Encarnação

Publicado em Duas Linhas, 27-08-2022: https://duaslinhas.pt/2022/08/a-seducao-dos-passaros/



A carriça

As partes em que se divide a cabeça de um pássaro

Pisco-de-peito-ruivo

 

terça-feira, 20 de setembro de 2022

Acarear água...

             Afligem-nos as imagens dos campos gretados à míngua de água. Todos sabemos quanto a energia que produzimos contribui para a actual seca desoladora. E é natural voltarmos atrás, aos nossos tempos de meninos, mormente os que vivemos em áreas rurais, quer no Algarve quer também em Cascais. Na década de 40, ainda não tínhamos água canalizada. A inauguração de um chafariz era uma festa no lugar, com direito, por vezes, a governador civil. Chafariz que tinha torneira para encher as bilhas; mas daí a água escorria para o bebedouro dos animais do lado da frente e, daí, ia para o tanque de passar e, deste, para o de lavar. Poupar água era palavra de ordem, que assim bem se cumpria.
            Ao chafariz – ou, pelo Inverno, à nascente que brotava límpida do chão a uns 200 metros de casa – lá ia eu, de improvisado chinguiço ao ombro, e um balde de cada lado.
            Lavava-se a cara e o pescoço e as orelhas numa bacia de esmalte; mas a água não se deitava logo fora, que servia para nela se irem passando as mãos ao longo do dia…
            Das férias de Verão no Corotelo me lembro – e já o contei outras vezes – de ir de madrugada, com minha tia, ao poço («o poço do Corotelo», assim se chamava), para conseguir melhor apanhar com o balde a água que a nascente acareara durante a noite. Por isso, ter uma cisterna foi, durante largos anos, o sonho de meus parentes.
            Alegrei-me, pois, ao ler, na edição de Abril passado do Notícias de S. Brás (p. 11), que a Junta de Freguesia continuava a desenvolver o plano de recuperação e manutenção das fontes, poços e lavadouros. Nesse caso, mostrava imagem do Poço do Vale Carvalho, todo caiadinho e degraus a condizer. Parabéns!
              Acrescentava-se que essa preservação tinha que ver com a história dos sítios.
               Sempre os poços e as fontes constituíram ponto de encontro das comunidades.
               «Tantas vezes vai o cântaro à fonte que, qualquer dia, lá deixa a asa».
                O cântaro ou a sua portadora!...
                ¿Não foi junto à fonte que a Samaritana encontrou Jesus?
               ¿Não cantou Camões a Lianor que
                            «descalça vai para a fonte […] 
                            Vai fermosa, e não segura 
                            Leva na cabeça o pote,
                            O testo nas mãos de prata…»?

            Vivem as fontes, sabe-se bem, do lençol freático. A impermeabilização do solo por via de exagerada urbanização e a contaminação do lençol por desapropriados despejos são urgentes acções a evitar!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 310, 20-09-2022, p. 13.