quinta-feira, 29 de abril de 2021

«Hamlet» visto por Avilez

            O palco está aberto. Cenário nu. Duas portas, uma de cada lado, no meio de paredes brancas. Observa-nos, no cadeirão, uma dama de pernas cruzadas, vestido branco, manto verde, luvas brancas, grinalda prateada, máscara nos olhos à moda do Carnaval de Veneza. Caem-lhe das orelhas dois penachos verdes também. Cabeleira ampla sob um toucado verde. Incide sobre ela o único foco de luz. Observa o vaivém dos arrumadores. Descruza as pernas agora, que já tarda o início do espectáculo. Percebemos que há uma rampa larga, a terminar quiçá atrás dum balcão com espelho. Aí se miram os espectadores. E a senhora deve estar a pensar: «Quando é que esta gente se acomoda? Se me balancear um pouco e pousar o queixo na mão, qual pensador, é capaz de ser melhor».
            Quem será a personagem para, assim sentada, nos receber?
         19 h 20 m. Vamos começar. «O uso da máscara é obrigatório durante todo o espectáculo». Apagam-se as luzes. A senhora foi-se embora. Lá no cimo, o saxofone de Elmano Coelho. Saberemos depois que aparecerá de vez em quando a sublinhar uma passagem…
          Assim é. O shakespeariano drama de Hamlet, milhares de vezes encenado em todo o mundo, assume, aqui, pelas mãos de Carlos Avilez e de toda a equipa do Teatro Experimental de Cascais uma roupagem diferente. Sim, é bem original o recorte do guarda-roupa (de Fernando Alvarez), a fazer jus ao que sempre nos habituou. As paredes brancas são, afinal, ecrãs por onde deslizam fantasmas, teias, ora roxas, ora vermelhas, consoante a cena que observam. João Vasco é a voz que vem de longe. Um achado!
            «Quebra-se-me o coração, mas tenho que calar a minha boca». «Se tratares cada pessoa segundo o seu mérito quem escapará ao chicote?»… «Vai para um convento e vai depressa!». «A loucura dos grandes não pode caminhar sem vigilância». Densidade de um texto, superiormente traduzido por Sophia de Mello Breyner Andresen.
            E vem a espalhafatosa alegria dos comediantes. E ensaia-se uma dança à moda antiga, como que para espantar demónios. No duelo de esgrima, sentimos – ainda! – a maestria de Mestre Eugénio Roque, bem continuada por seu discípulo Tiago da Cruz. Ele que tanto gostaria de ter assistido a esse doloroso final!...

          É verdade, esquecemo-nos da senhora. Descobrimos, nos ‘textos de apoio’, que é Maria João Pinho; que a destinada ao convento é Bárbara Branco, de seus 22 aninhos; que o protagonista, José Condessa, anda pelos 24. Temos no rol, claro, os veteranos da companhia: Teresa Côrte-Real, Luíz Rizo, Sérgio Silva… Veterano é também Miguel Loureiro. Por entre eles, como Bárbara e José Condessa, os formados na Escola Profissional de Teatro de Cascais (EPTC): Renato Pino, Rodrigo Cachucho, Miguel Amorim… Mas, agora reparo que me estou a embrenhar pelos nomes e, neste caso, algo me diz que não deveria. Sim, há que notar a falta de Manuel Amorim, que há bem pouco nos deixou e a quem este espectáculo também serve de homenagem.

           Regozija-se Carlos Avilez por lhe ter sido dada a oportunidade de, pela segunda vez, encenar «Hamlet», um espectáculo que «não se faz sem amor, sem amizade, sem um profundo respeito por todos». É por isso que, para ele, não há nomes, só um: Hamlet!

       E, ao verem José Condessa incarnar Hamlet com este nível absolutamente invulgar, uma interpretação colossal, a pedir meças a quantos actores ingleses – e não só! – esta personagem interpretaram, Carlos Avilez, João Vasco, os docentes da EPTC e toda a companhia sentir-se-ão realizados: prepararam o terreno, lançaram boa semente e bem suculentos frutos aí estão! 

                                                                               José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), 28-04-2021, p. 3.

Um dos instantâneos do espectáculo.
                    O pasmo perante o extraordinário.
                    A adequada escolha da luz.
                    Cada um no seu lugar e todos no mesmo espanto.
                    O rigor da coreografia.
                    A enorme eloquência das mãos.
                    A sintomática escolha dos planos.
                    Cena simples, dir-se-ia; sim,
                    a  simplicidade aparente gizada por grandes Mestres!
                    Momento de antologia!


sábado, 24 de abril de 2021

Joaquim Pessoa: «Um coleccionador é como um guardador de rebanhos»

Quem é Joaquim Pessoa? Ou seja: que ideia faz de si próprio?

– Sou um militante da vida, um ser solidário que se revê e que faz parte dos outros, num mundo em que é uma utopia viver-se só, no sentido de que a vida, sendo a melhor de todas as coisas, deve ser partilhada com aqueles a quem amamos. Fundamentalmente, um poeta é os outros, pois é para os outros que escreve e a sua obra será sempre mais dos outros que de si próprio.

– Escreveu António Machado: “Caminhante não há caminho. Faz-se o caminho ao andar! E, ao olhar para trás são pegadas tuas o que vês” (tradução livre, a minha!) Ocorre-me, pois, perguntar que caminho foi o seu? E que pegadas deixou?

– O meu caminho, como o dos poetas em geral, tem sido um caminho solitário, na criação. Escrevi um dia: “A escrita é um acto solitário, e o poeta resultado dessa solidão, a solidão de um útero imenso, um vulcão que expulsa de dentro de cada um de nós as coisas mais difíceis de transformar, numa lava que vai tomando a forma das palavras, e as palavras são sempre, mas mais ainda, aquilo que nomeiam. De resto, não há destino, como afirma Machado. Somos nós que o fazemos, e é pelo rasto que se pode ver o caminho andado. Quanto ao meu próprio rasto, também um dos meus sonetos termina interrogando: “Porquê ambicionar ser imortal / se nunca saberei se fui capaz?”.

– Retrospectiva implica, amiúde, nostalgia e, até, algum pesar por não se ter logrado atingir metas fixadas. Assim acontece consigo?

– Não acontece, de facto. Não fixo metas. Procuro sempre fazer o melhor que posso e sei, ir o mais longe possível e o objectivo é, sempre, implícito: superar-me. A luta dos poetas é consigo mesmo e com as palavras. São elas que o escrevem, que o descrevem, que determinam o lugar e o tempo do poeta.

– Há pulsões internas que levam uma pessoa a ser Poeta, a exprimir por poucas palavras o que outros dizem por muitas ou nem sequer dizem. Como se sente Poeta?

– Não me sinto Poeta, sou Poeta. E nem sei se a pulsão é interna. Na realidade, no meu caso, penso que ela é externa a mim mesmo é, como diz Kierkgaard, o criador do acto poético não é mais do que um escape de uma linguagem universal. Cósmica, direi eu. E como se passa na construção de tudo o que é natural, o que for excesso mata ou atrapalha. A síntese é, na realidade o grande trunfo da poesia. Não terá sido por acaso que tantos poetas tiveram o seu percurso profissional ligado à Publicidade, actividade onde o tempo e o espaço custam muito dinheiro.

– Poeta é também aquele que sabe sentir o Homem de todos os tempos nas mais diversas manifestações artísticas? Foi essa tendência que o levou a ser coleccionador?

– O poeta é um ser, um homem de todos os tempos. O poeta carrega em si mais de cinco mil anos de cultura e, quando escreve um poema, é como se ele tivesse sido escrito pela mão de muitos milhares de homens em muitos milhares de anos. É por isso que a grande poesia (a Poesia) não tem tempo, é de todos os tempos, é de todas as idades. E esta forma de a sentir terá sido, talvez, o que me levou a ser coleccionador: viver neste tempo o tempo de todos, já que, na realidade, o tempo não existe, é a mais perigosa todas as abstracções.

– Que vida é essa de coleccionador? A de um homem rico – em dinheiro ou em saber?

– Convém, antes do mais, deixar claro que um coleccionador não é um ajuntador. É um amador no sentido literal do termo: aquele que ama, aquele cujo amor cobre a coisa amada que, se por um lado lhe pertence, a ela pertence também, de forma a transformar-se no guardião de um passado que, como um presente, ele há-de oferecer ao futuro. Porque coleccionador não é apenas aquele que junta, que guarda, mas também o que investiga, compara, defende, conserva e estuda com um deslumbramento permanente, para depois mostrar, dar a fruir, repartindo assim aquilo que durante algum tempo foi um enorme e profundo privilégio individual, transformando o que até aí pareceu egoísmo muito fechado numa generosa forma de partilhar com os outros aquilo que ele tem consciência de a todos os outros também pertencer. Como afirma a magnífica assinatura de uma das mais prestigiadas marcas de alta relojoaria, nós, coleccionadores, nunca somos verdadeiramente donos de um objecto. Só cuidamos dele para a geração seguinte. O coleccionador é sempre um homem rico, normalmente em saberes, como um Guardador de rebanhos.

– Sente-se… português? O espólio que foi reunindo tem a ver com um gosto meramente pessoal ou, também, com a vontade de não deixar fugir um património que, sendo seu, considera também de todos?

– Sinto-me, como disse o meu homónimo, homófono e homógrafo, um cidadão cuja pátria é a língua portuguesa. Este núcleo ibérico foi criado pelo facto de em nenhum espaço museológico nacional ter visto um conjunto tão significativo de artefactos iberos e celtiberos, povos que, na realidade, são as nossas verdadeiras raízes. Durante muitos anos fui adquirindo este conjunto que acabei por doar à minha mulher (Inês Pessoa) no dia em que atingi os 50 anos de idade, e parti noutra direcção porque um coleccionador é assim, não pára de procurar, a busca é permanente e, como lembra o Dr. Tarzzi, arqueólogo afegão ligado aos Budas gigantes que foram destruídos pelo governo dos Talibans, que quando estudamos um objecto, pensamos nele como um pertence pessoal. Aquilo, diz ele, torna-se um ente querido, um filho nosso. Claro que a preocupação de não deixar fugir o nosso património é grande e, nesse aspecto, essa preocupação do coleccionador é por vezes maior do que aquela que, amiúde, o Estado tem revelado.

– Que significado pode ter para si esta exposição?

– Penso aquilo que a minha mulher, detentora actual deste núcleo igualmente pensa: é uma forma de dar a possibilidade justa de cumprir um desígnio, mostrando pela primeira vez algo que o público de outra não teria possibilidade de conhecer. É tornar dos outros o que até aqui foi apenas nosso. E também uma homenagem merecida aos artesãos nossos antepassados que nestes objectos deixaram, para além da canseira, o seu tempo, o seu talento, a sua criatividade e uma deliciosa transposição do passado para o futuro. Porque, na realidade só o passado existe e é com ele que construiremos o que há-de vir. O presente não existe, é gerundivo, está existindo. E o futuro é o que disse Alberto Caeiro: “O que for, quando for, é que será o que é”. Este “voo sobre os Iberos” é, por tudo, também um voo sobre a nossa identidade, e demonstrativo igualmente de um percurso rico de influências das culturas mediterrânicas, alma mater da nossa cultura pré-atlântica.

Como gostaria de ser recordado pelos vindouros?

– Caríssimo Professor, os vindouros não me conhecerão nunca, apenas conhecerão a minha obra, que é tudo o que pude e soube dar aos outros. Essa obra é deles. Julguem-na, e estarão a julgar-me, porque a minha obra sou eu e, se alguma diferença houver para melhor, ela será sempre a favor da Obra, não do Homem.

Publicado em Duas Linhas, 22-04-2021: https://duaslinhas.pt/2021/04/joaquim-pessoa-um-coleccionador-e-como-um-guardador-de-rebanhos/

Peças da colecção de Joaquim Pessoa

                                                 

domingo, 18 de abril de 2021

Jardim do Paço – Inspiração inevitável!

            Decidira ajuntar numa só crónica alusões breves a cada um dos mais recentes livros de António Salvado. Primeiro, para se não perder actualidade; depois, porque, de rompante, me caíram na secretária quatro ou cinco, a reclamar leitura e atenção
            Desisti.
          Esta nova edição de Jardim do Paço exigia nota singular. Editada pela primeira vez em 1967, ganhou, em Dezembro passado, nova roupagem e mui esbelta companhia: papel cuchê de alta gramagem e capa cartonada para bem guardar as 50 aguarelas de José Manuel Castanheira. Um álbum! O casamento perfeito da Pintura com a Poesia, irmanadas ambas nos reflexivos devaneios que o Jardim do Paço acicata. 120 páginas a saborear. Livro para ter à mão e abrir de vez em quando, a folhear na lentidão das tardes repousadas…
            José Manuel Castanheira atira-nos, em manchas de cor, para um espaço irreal – e aí nos deixamos enlevar. António Salvado agarra-nos pelo braço, obriga-nos a sentar, a escutar as personagens que pelo jardim vagueiam: os santos, as santas de nossa devoção, os reis e as rainhas, as virtudes cardeais, as estações do ano, os continentes… Viagens no espaço e no tempo!
            Pinceladas largas, imprecisas, as de José Manuel Castanheira; pinceladas carteiras, agudas, incisivas, contundentes, as António Salvado.
            Das aguarelas não ouso escolher nenhuma – que não consigo. Sugestiva, a reprodução, na página da direita, de significativo pormenor da imagem mostrada na esquerda. Dos poemas, sim, escolho dois:
            Samaritana. A Mulher, o encontro, a fonte… Quatro versos a resumir a prece, dela e nossa: «Enche, Senhor, meu coração de crente / dessa vívida água que prometes: / e não terei mais sede, em todo o sempre / porque ela brotará de fonte eterna» (p. 21). Lapidar! Que mais se poderia dizer?
            Caridade. Consubstanciada na imagem da criança só (ai, a ‘Balada da Neve’, do Augusto Gil!...), aqueles olhares de meninos suplicantes a entrarem-nos, hoje, pela casa adentro, ao fundo as casas destruídas, ainda no ar o fumo dos bombardeamentos… Ali estão. Num terceto e numa quadra. Assim: «Criança de olhar exangue, / perdido, sem claridade, / de pés descalços no chão, / não sei, ó flor sem idade, / ao tocar a tua mão, / se o que percorre o meu sangue / é revolta ou caridade» (p. 41). E está o painel completo. E a mão pequenina que nos apetece agarrar!...
            Excelente apresentação gráfica, a cargo da Caleidoscópio (ai, o maroto do scanner que não viu acentos – p. 71 – e trocou o m por rn! – p. 75).
            Aplauda-se o inteligente patrocínio da Junta de Freguesia.

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Gazeta do Interior [Castelo Branco] nº 1686, 14-04-2021, p. 7; e em Reconquista [Castelo Branco] nº 3918, 15-04-2021, p. 31.

Observação das aves

              Sim, quando era puto, observava-as. As felosas brancas e pretas, os fuinhos, os pardais… Via por onde andavam, os hábitos que tinham, porque o meu intuito, nessa idade e na década de 50 do século passado, a ideia era ser valente, esperto, e a caça poderia ser uma das formas de titilar o meu ego. Chegar a casa, após uma ronda pelas seis ou sete ratoeiras que estrategicamente armara com agüidas de asas brilhantes, o aro recheado, de pendura numa das presilhas das calças. Um aro de arame, que furava a parte inferior do bico do passarinho e, qual caçador ufano das perdizes e coelhos que caçara, eu ostentava os dois ou três pássaros que conseguira apanhar. Havia muitos, as felosas brancas vinham aí por Setembro e comiam amoras e as bagas alaranjadas do trovisco e era nessas moitas que a malta armava as ratoeiras.
            Ao final da tarde, toca a depenar, que a mãe Maria saberia preparar tudo para uns passarinhos fritos, com alhinho inteiro a condizer, para o petisco antes da sopa do jantar.
            Outros tempos, outra idade.
           Consola-me agora ver que um casal de melros adoptou o ninho que, aproveitado do ano passado, quando a romãzeira se limpou, eu pus sob o telheiro, recatado. Lá chocaram os ovos à vez e, nestes dias, é à vez que vão e vêm, a espaços, trazendo no bico o cibo para os dois bicos escancarados, esfomeados, bem abertos assim que sentem pai ou mãe próximos...
            As lições que os pássaros nos dão! De dedicação extrema, de sacrifício também – onde é que há, nesta secura, gostosas minhocas e outros vermes que se deixem apanhar?
A observação das aves. Birdwatching, em linguagem internacional. Uma das práticas constantes do turismo de Natureza. Dela falei abundantemente nas aulas de Património Cultural da licenciatura em Turismo da Lusófona. E uma razão pessoal havia: é que um grupo de ingleses, amantes da Natureza, foi, na Primavera de 1989, à ilha de Great Abaco (Baamas), para observar as aves da ilha. E que raras e bonitas que eram! Uma delas escapuliu-se pelo chão e o senhor, admirado, foi-lhe no encalço. Era uma gruta! E, numa das paredes, havia gravada uma caravela portuguesa e a data de 1460! E Vasco Graça Moura mandou-me ir lá atestar a autenticidade do grafito. Sim, era autêntico, mas… de há meses! Perdeu-se a oportunidade de carimbar para um português a descoberta da América; ganhou-se o interesse pelas enormes lições que as aves nos dão!

José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 797, 15-04-2021, p. 11.

quinta-feira, 8 de abril de 2021

O Sonho ao leme do teu batel!

 
          Silêncio. Embala-me o cadenciado e metálico tiquetaque do relógio, pêndulo a marcar, inexorável, os segundos do meu viver. Tenho o olhar fixo na distância. Não mo cativa nenhum dos objectos da sala e, nessa distância, com ele o pensamento voa. E sonha. Sonho que é, neste caso, fuga da realidade invisível, por se querer alojar onde sinta o aconchego.
              Vibrou a meia-hora.
            Ao jantar, eu remirei a cortina presa daquela tela antiga, de 1996, de Nélio Saltão. Saltei por cima da romã e do marmelo e parei na cortina da janela. Ilusão minha até hoje: não é branca nem pura, como eu sempre a vira – povoam-na, afinal, indefiníveis reticulados, a catapultar-me para um outro mundo. Esse, o do sonho. Onírico, dirão os estetas da linguagem.
            Daquela natureza morta dos primeiros anos, zarpou Nélio Saltão, de rumo bem definido.
            A cor.
            As cores.
            Sem regra, sem régua. Sem forma legível. Não são quadros para ler – são veículos para sonhar. Tu imaginas. Tu navegas nessas pretensas geometrias e vais além. Além!...
            Manchas de cor? Não! Mancha é palavra negativa e, aqui, o impulso é positivo.
          Imagino Nélio Saltão diante da tela virgem. Que irá sair dali? ¿Terá sido o desabrochar lento, carmesim, dum botão príncipe negro a inspirá-lo agora e, impossibilitado de ali espelhar o seu bem sedutor perfume, deixou a trincha mergulhar, delirante de prazer, nesta cor e mais naquela e naqueloutra?
          Júlio Pomar, em Da Cegueira dos Pintores (p. 127), fala da «motricidade corporal do gesto: movimento do dedo, do punho, do cotovelo, do ombro, o golpe de rins, o corpo todo do pintor na refrega».
            Não imagino Nélio Saltão em refrega. A serenidade que das suas telas se desprende (ou serei eu que, sereno, me deixo embalar por elas?), tal serenidade não requer luta nem labuta mas sentimento!
            Sem títulos as pinturas. Nem os poderiam ter. Têm nome os sonhos? Não podem.
         Horas infinitas tentaram perceber o sorriso da Mona Lisa. Outras mais, ininterruptamente, a esmiuçar pormenores da Última Ceia de Leonardo ou do Guernica de Picasso. Os quadros de Nélio Saltão não são para perscrutar nem permitem esmiuçamentos – contemplam-se!
 
«Pintura sem prazo certo e sem destino». Óleo sobre tela.

          
            Senta-te aí, tranquilamente; deita os olhos a passear pelas cores; abstrai-te do resto do mundo – e o Sonho tomará posse de ti e sentir-te-ás a navegar, suave, num pélago multicolor, onírico…
            Depressa compreenderás que é ele, o Sonho, que está, na verdade, ao leme do teu batel!

                                                      José d'Encarnação                                              

Publicado no catálogo SALTÃO – Geometria Imperfeita. São Mamede Galeria de Arte, Lisboa, Maio 2021, p. 78.