domingo, 30 de junho de 2019

Tornar S. Brás mais acessível

               Das muitas e variadas notícias publicadas na anterior edição do nosso Noticias de S. Braz, destaco, em primeiro lugar, com aplauso, como não poderia deixar de ser, o processo de elaboração da Carta do Património do Concelho: «decorrem trabalhos de campo que consistem no levantamento sistemática e actualizado dos bens culturais», «um trabalho desenvolvido pelo Gabinete de Reabilitação Urbana do Município em parceria com o Gabinete Municipal de Arqueologia». O objectivo é, mui naturalmente, o de esses resultados virem a ser devidamente integrados no Plano Director Municipal ora em fase de revisão.
            Insistiria também – e que se me perdoe a insistência - na necessidade de inventariação e preservação do património móvel. A necessária campanha de recolha de alfaias e utensílios que, por o progresso os ter tornado obsoletos, constituem memórias a preservar. E as fotografias guardadas em gavetas que, amiúde, os herdeiros acabam por deitar fora?
            Outra notícia a destacar – e essa, decerto, mais saliente (teve, de resto, chamada em primeira página) – prende-se com o avanço da elaboração do projecto de requalificação da Estrada Nacional nº 2. Felizmente que se ‘descobriu’ a grande importância desse eixo viário, depois de os nossos antepassados patrícios tanto se haverem batido por que S. Brás não fosse esquecido no âmbito do traçado da via-férrea do Sul; e, já nos nossos dias, quando o traçado da Via do Infante também nos postergou.
            Congratulo-me, pois, com o facto de se prever a eliminação de algumas condicionantes, a criação de zonas de ultrapassagem e a reformulação do cruzamento de acesso ao Mercado Abastecedor da Região do Algarve.
            S. Brás, ali postado no final – ou no começo – das famosas «curvas do Caldeirão», orgulhoso muito embora de ser a porta («Alportel») de ligação para o Norte, carece, na verdade, que se olhe para ele em termos de acessibilidades. Foi, no passado, mesmo sem elas, viveiro de gente que partiu; quer-se, no presente, viveiro de gentes que chegam e que ficam!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Noticias de S. Braz [S. Brás de Alportel] nº 271, 20-06-2019, p. 13.

Post-scriptum:  A propósito da necessária recolha e inventário do património cultural, nomeadamente do imaterial, de que se fala aqui e a que se fez referência na crónica anterior, teve a Dra. Marlene Guerreiro, mui digna vice-presidente do Município são-brasense, a gentileza de me informar que a criação de um Arquivo Municipal constitui um dos objectivos do Executivo sempre presente. A escassez de verbas tem impedido, no entanto, que se concretize ou, mesmo, que se consiga incluir em plano tal desiderato, cuja importância e necessidade são por todos mui conscientemente sentidas.

Georges Dargent

            Reli «A Minha História de Vida», de Georges Dargent (Colibri, Câmara Municipal de Cascais, 2008), levado também pela vontade de evocar quanto fizera por Cascais no exercício das suas funções camarárias, no mandato de Helena Roseta (1983) como vereador responsável pelas finanças, e no seu próprio (tomou posse de Presidente em 1986).
           Uma singela autobiografia enriquecida com divertidos episódios que se não esquecem:
            – o do Hino da Maria da Fonte tocado em lugar d’A Portuguesa (p. 99);  
            – o das jovens loiras nuas assustadas (p. 106);
            – o munícipe que lhe mostrou um revólver (p. 106);
            – o do senhor que se regozijara por Georges Dargent não lhe ter passado pelas mãos (era o responsável pela morgue do Hospital de Santa Cruz!...) (p. 111).
            – o da jovem juíza que não percebera que «imprescindível para os serviços» equivalia a «urgente necessidade de serviços» (p. 168).
            Relevo duas passagens.
            1ª) A inauguração do cemitério-jardim de Trajouce e a emoção do saudoso Carlos Sota, então vereador responsável pelos cemitérios, como que num retorno à sua juventude salesiana, por o presidente lhe ter pedido para ler a epistola na missa inaugural: «Senti-me como quando era rapaz salesiano e obediente» (p. 146).
            2ª) A sua ideia de, na imprensa regional, (cito) existirem «dois jornais que normalmente só diziam mal do nosso trabalho, pois estavam ligados à oposição ou a interesses encapotados» (p. 174). Tive ocasião de, afavelmente (como sempre foi timbre no nosso constante relacionamento), lhe repetir aquela célebre frase «Olhe que não, olhe que não!», porque eu exercia, na altura, as funções de chefe de redacção do «Jornal da Costa do Sol» e era bem diversa a orientação que tínhamos. A sua opinião era, porém, compreensível, porque, de resto, a vemos igual (salvo raras excepções) em quem exerce funções autárquicas.
            Festeja «Costa do Sol – Jornal» o seu 6º aniversário. E a orientação continua a ser essa: a da independência dos poderes. Critica-se, com argumentos, quando é de criticar; louva-se, quando é de louvar. Privilegia-se a informação e deixa-se para os colunistas – oriundos, clara e expressamente, dos mais diversos quadrantes, a fim de se fornecer um leque de perspectivas – a formulação de opiniões, a apresentação de críticas, as tomadas de posição, que, mui naturalmente, não vinculam a posição oficial do jornal.
            Reza o seu Estatuto Editorial:
            «O Costa do Sol – Jornal compromete-se a separar, de forma inequívoca, a informação da opinião, sem prejuízo do dever e direito da interpretação dos fatores e da liberdade de expressão dos colunistas».
            Assim se tem feito. Assim se continuará a fazer, estou certo – e que o seja durante muitos anos!
                                                           José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 287, 2019-06-26, p. 6.

domingo, 23 de junho de 2019

SARA TAVARES – a reabilitar a tradição!

       Ainda nos recordamos dela, menina e moça, na timidez própria de quem enfrenta o público pela primeira vez. Chegou, porém, e venceu. Foi em 1994, na 1ª edição do concurso Chuva de Estrelas da SIC, onde apresentou um tema de Whitney Houston. E todos ficámos contentes.
      Vira-a, a 17 de Maio, a acompanhar Teresa Salgueiro; e, agora, apreciei deveras o seu espectáculo no palco do Salão Preto e Prata do Casino Estoril, no passado dia 8. Circunstâncias várias me impossibilitaram de fazer há mais tempo esta referência, mas não quero deixar de a fazer.
      Sara Alexandra Lima Tavares, de seu nome completo, nasceu em Lisboa, mas tem ascendência cabo-verdiana. Fitxadu, o seu mais recente álbum, que ora veio apresentar, constitui, na verdade, a homenagem às suas raízes. As letras são, maioritariamente, em crioulo; a música surge-nos bem lá do Sul, traz-nos os ritmos bamboleados e quentes de África e não foi, pois, admiração ver a plateia num bamboleio pegado, seduzidos os espectadores por essa íntima sonoridade que não nos deixa ficar quedos!
      A cantora não se cansou de agradecer aos músicos que a acompanhavam e vieram também Paulo Flores e Boy Gê Mendes, os convidados especiais. Paulo Flores, que já é uma referência no panorama musical de Angola, ligado, como se sabe, ao semba, «um dos géneros mais populares da música angolana», que estrenuamente defende. Gérard "Boy" Mendes nasceu em Dacar, no Senegal (1952), mas assume-se como cabo-verdiano pela sua ascendência e são cabo-verdianas as suas melodias (recorde-se Noite de Morabeza, de 1999).
      Um hino, portanto, a Cabo Verde, que, nesta época em que muito se preza a lusofonia, esta aproximação sem peias entre Portugal e as suas ex-colónias, calou fundo em quantos tiveram a dita de participar no acolhedor serão do Salão Preto e Prata do Casino Estoril. Saiu-me a palavra «participar»; de facto, todos vivemos o espectáculo. Sara Tavares, de mui contagiante sorriso, teve esse bom condão – e estamos-lhe gratos!

                                    José d’Encarnação

Fotos gentilmente cedidas pelo Gabinete de Imprensa da Estoril-Sol.




O diálogo com Paulo Flores
A intervenção de Boy Gê Mendes

quinta-feira, 20 de junho de 2019

Vamos lá embora pró Cobre!

             Estava-se em Abril de 1989. A determinado momento, já me não lembro por que razão, alguém cantarolou em cicio, no decorrer de uma das pausas-café (creio) das «II Jornadas de Arqueologia do Nordeste Alentejano», em Monforte: «Vamos embora para Barbacena!». A melodia viva, ritmada, bem aciganada, que hoje pode ser ouvida em https://www.youtube.com/watch?v=7EnWqwVbi8Y, pela voz de JoséLito Maia, electrizou o pagode e foi repetida amiúde durante as Jornadas, esfusiante.
Se for em frente, como a placa preconiza, o transeunte dificilmente chegará ao Cobre!... O Cobre é... para a esquerda!

            De vez em quando, ao descer a Estrada da Malveira quase a chegar ao cruzamento de Birre, topo com a placa anexa e dá-me vontade de cantar «Vamos embora pró Cobre!», com a música do JoséLito. O diabo da canção é gira, boa para gingar e eu acho que o forasteiro que não saiba onde fica o lugar do Cobre, bem gingará por aqui e por ali e bem pode cantar «Vamos embora pró Cobre!» que não chegará lá de certeza.

            E perde uma boa visita.

            Não, embora oficialmente uns senhores ignorantes do que se passa cá pelo burgo (e os que deviam saber nem se ralaram nada com isso) tenham pespegado que são no Cobre o Hospital da CUF Cascais e o Centro de Distribuição Postal dos CTT (logo estes, imagine-se!...), não, ambas estas instituições, que muito prezo, se localizam não no Cobre mas no Bairro da Pampilheira, que é extensão da antiga Barraca de Pau.

            No Cobre, há outras, também elas dignas da maior consideração.

            Para já, diga-se que o lugar é um dos mais antigos da freguesia de Cascais. Tinha quatro vizinhos (ou seja, quatro famílias) em 1527 e 14 em 1758 (como reza o relatório do prior da paróquia da Ressurreição). O abastecimento de água data de 1922, como se lê no chafariz junto ao tanque de lavar público, no coração do lugar.

            Para além de estabelecimentos comerciais, como restaurantes, cafés, talho, lugar de frutas, é orgulho da população a escola «primária» (dir-se-ia antigamente), doada pela Associação de Moradores à Câmara e que, hoje, integra o Agrupamento de Escolas da Cidadela. Chegou a ser chamada Birre 2, quando havia a mui vetusta Escola de Birre (continuo a achar que não se andou bem em extinguir esta, de mui enorme tradição republicana), que era a «mãe», a Birre 1.

            Lugar de passagem de eleição para quem vai para a 3ª circular ou dela vem para Cascais Oeste (fugindo à sempre congestionada rotunda de Birre), mantém a característica das terras de antigamente: as casinhas foram sendo construídas de um lado e doutro da rua. Foram-se ocupando depois os matos e os terrenos agrícolas que lhes ficavam nas traseiras; mas a ideia de vivendas predominou e, se exceptuarmos o movimento rodoviário em horas de ponta, é lugar pacato, onde as ruínas de um moinho lá no cimo, como que a vigiar a 3ª circular, dão conta da tradição agrícola. Aliás, quando o donatário (conta o Padre Marçal da Silveira) quis que se incrementasse a agricultura desta banda da Ribeira das Vinhas, um tudo-nada abandonada por medo dos Mouros, de pronto os saloios do Cobre e de Birre se dispuseram a isso, assim como a fazerem a vela de noite na véspera de S. Bento. Gente, portanto, que nunca deixou os seus louros por mãos alheias!

            Pois então, por mor dessa abençoada placa que há anos indica erradamente a direcção do Cobre e não há vivalma que seja capaz de a corrigir, nem mesmo em véspera de campanhas eleitorais, se o JoséLito Maia quisesse cantar «Vamos lá embora pró Cobre», tinha mesmo dificuldade em indicar o caminho!


                                                           José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 285, 2019-06-12, p. 6.

As pègadas

             De pègada hoje se fala muito. Ele são as pègadas dos dinossáurios indelevelmente gravadas na rocha. Ele são as pègadas dos animais sabiamente procuradas na selva pelos especialistas que zelam pela conservação das espécies. E – claro! – a tal «pegada ecológica», definida como (imagine-se!) «a quantidade de terra e água que seria necessária para sustentar as gerações actuais, tendo em conta todos os recursos materiais e energéticos, gastos por uma determinada população».
            E a pègada que cada um de nós deixa e que todos desejamos seja boa. Como aquele desejo de um autor religioso: «Que a tua vida não seja uma vida estéril. Deixa rasto». Ou, como escreveu o imortal Antonio Machado,

                                   Al andar se hace camino,
                                   y al volver la vista atrás
                                   se ve la senda que nunca
                                   se ha de volver a pisar.

            Recorda-se, porém, inexoravelmente, a eterna «Balada da Neve» de Augusto Gil: 

                                   «E noto, por entre os mais,
                                   os traços miniaturais
                                   Duns pezitos de criança...
                                   E descalcinhos, doridos...
                                   A neve deixa ainda vê-los,
                                   primeiro bem definidos
                                   Depois em sulcos compridos,
                                   porque não podia erguê-los!...

            Estanquei na silenciosa serenidade da manhã. Apenas esparso assobio de melro pela encosta. Domingo. O parque, vazio. Viera ali passear com o «Spike». No saibro fino, nítidos e lentos (imaginei!) os rodados das viaturas. Uns por cima dos outros, num atropelo. Havia, no entanto, pègadas que particularmente me chamaram a atenção. De pombos ou, mui provavelmente, dos casais de rolas que amiúde se viam por ali. Nítidas também, muito nítidas. E lentas. Em passeio. Primeiro, afastadas; depois, como quem se enamora e vai encontrar-se…
            Na brandura da manhã, dei comigo a pensar, olhando o chão, na terna lição daquele casal. Eles pisaram os rastos dos automóveis, eles deixaram tranquila marca da sua presença…

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 756, 2019-06-15, p. 11.

segunda-feira, 10 de junho de 2019

ERASMUS – um caminho para a convivência

            Quando, no ano lectivo de 1988-1989, o Conselho Directivo da minha Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra me nomeou responsável pelo Programa ERASMUS no Grupo de História, estava longe de perceber o que me iria esperar.
            Para mim, ERASMUS, até então, fora apenas o nome do conhecido pensador de Roterdão, o humanista que ousara escrever o Elogio da Loucura e se assumira como independente nas suas teorias teológicas e existenciais. Longe de mim estava, naquele instante, que se tratava, sintomaticamente, da sigla de um programa: European Action Scheme for the Mobility of University Students, isto é, o Programa Europeu para a Mobilidade de Estudantes Universitários.
            A ideia era fomentar a permuta de estudantes entre universidades europeias que quisessem aderir. Criavam-se, para esse efeito, os PICs, Participant Identification Code, que identificavam os núcleos que, entretanto, se foram formando, reunindo em torno de uma área de estudos os docentes interessados de diversas faculdades.
            Tudo começou, portanto, nas pessoas; ou seja, parecia-te bem que um dos teus alunos fosse estudar com um dos professores teus conhecidos, especialista, por exemplo, em Arqueologia Subaquática, uma disciplina que tu não tinhas em Portugal? Entravas em contacto com ele, propunhas-lhe que integrasse o teu PIC especialmente endereçado para a Arqueologia e assim se estabelecia o intercâmbio. Tu próprio, como docente, além de participares nas reuniões periódicas de coordenação, serias convidado a ir a essa Universidade fazer uma conferência ou, até, dar umas aulas, porque o intercâmbio era não apenas de estudantes mas também de docentes.
            E aqui entra de novo a palavra ERASMUS, relacionando-a, sem que, na verdade, nenhuma relação houvesse, com os Humanistas e os seus conhecidos périplos para irem à Escola Y ou Z, a fim de aumentarem os seus conhecimentos e partilharem as suas experiências.
            A princípio, não o nego, o receio era geral. Dos estudantes e, de modo especial, dos pais. Amiúde tive de conversar com eles, explicar o que se iria passar, garantir que tinha nessa Universidade um colega amigo, atencioso, competente. Ainda se não haviam vulgarizado os telemóveis e, por conseguinte, não somos capazes, hoje, de compreender bem o que essa aventura significava. É que temos o skype, a whatsapp, o messenger!
            Como era minha tarefa, procurei vencer obstáculos, hesitações: encorajei o mais que pude. Eu próprio estagiara, como bolseiro do Governo Francês, durante um semestre em Bordéus, no âmbito da preparação do doutoramento e sentia bem quanto essa estada me enriquecera em todos os aspectos, que não apenas no científico. Desde Novembro de 1995 ao ano lectivo de 1999-2000, acumulei as funções de responsável do Grupo de História com as de delegado do Conselho Directivo da Faculdade para a supervisão de todos os programas ERASMUS.
            Para os estudantes essa foi sempre uma experiência deveras enriquecedora do ponto de vista dos estudos, da observação de novos métodos de trabalho, da adaptação a vários estilos de leccionação e de aprendizagem. Era-o, de modo especial, no domínio da língua do país de acolhimento. Não, não havia essa ideia de dar as aulas numa língua supostamente universal, o Inglês. Isso foi pecha que só mais tarde – infelizmente, a meu ver – se instituiu! Era a língua de acolhimento! Só quem já viveu algum tempo noutro país é que compreende o que tal significa, porque uma coisa é a língua que se aprende nos livros e outra a do dia-a-dia. Recordo ainda a cara dos franceses quando eu lá cheguei, a falar como se tivesse a ler um autor clássico!...
            As facilidades das comunicações tanto físicas (de transportes) como de comunicações tornaram tudo muito mais acessível e proveitoso. E se dúvida alguma houvesse acerca dos benefícios do ERASMUS, bastaria ouvir o programa da Antena 1, «Portugueses no Mundo»: raro será o interlocutor de Alice Vilaça que não lhe diga que tudo começara, na sua vida (profissional e até pessoal), com uma estada ERASMUS aquando estudante.
            Apoio, por conseguinte, com todas as veras da minha alma, o prosseguimento deste programa. E aplaudo, inclusive, a possibilidade de, hoje, ele ser alargado aos estudantes do Ensino Secundário, desde que devidamente enquadrados.

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em P&V – Ponto & Vírgula, jornal do Agrupamento de Escolas de Marinha Grande Poente, edição de Junho, p. 41.

1995-09-16 - Uma pausa na reunião de coordenação, na ilha grega de Córcira. PIC-F-1315 (Arqueologia e História Antiga), com representantes das universidades de Valhadolid, Bolonha, Bordéus III, Córcira e Coimbra.

quarta-feira, 5 de junho de 2019

A violência doméstica em cena


           Bem pensou João Vasco em propor que o texto de Tito Lívio, Sobreviventes, fosse levado à cena nas velhas instalações da PSP de Cascais.
            Aceite com aplauso a ideia quer pelo encenador, Carlos Avilez, quer pelo autor, todos deram tratos à imaginação para fazer dessa labiríntica esquadra o cenário ideal para ouvir confissões de uns quantos que nos vieram contar o que padeceram.
          Homens, mulheres, na primeira pessoa, ali junto a nós, olhando-nos nos olhos, confidenciando-nos. Ou imaginaram mesmo quem a/o havia maltratado e com ele/ela falaram, sem peias, libertando-se, mesmo que a confissão fosse feita junto às grades dum velho chilindró…
            – Ora, depoimentos! De depoimentos sabemos nós. Estamos fartos. O que interessa…
            – Sim, o que interessa, neste caso o que interessa é consciencializarmo-nos todos do que pode alguém contra outrem, a pretexto de tudo e de nada, espezinhando, «tu não prestas para nada!»…
            Eloquente, muito eloquente, a sobriedade quase nua da encenação. Nada nos distrai, porque temos o actor, a actriz à nossa frente. E nós não podemos fugir. Estamos numa esquadra. Sim, aquelas paredes já ouviram muitas daquelas histórias. Assim contadas e cantadas, umas três dezenas de espectadores silenciosos, olhos postos em quem representa, mas nem sequer pensamos que representam, tão naturalmente o fazem, tão real é a personagem que incarnam.
           Amiúde escrevo «É espectáculo a não perder!». Nunca, porém (com toda a franqueza o escrevo), nunca como em relação a este. Não pode mesmo perder-se, porque aquelas paredes antigas, prontas a serem desocupadas em breve, nunca tal viram, nunca foram testemunhas de um teatro assim.
            Dar a toda a equipa, a toda, um enorme abraço de parabéns é pouco.
            Foi tudo, é tudo excelente:
            - o texto (recebe, meu caro Tito Lívio, um grande abraço, Amigo!);
            - as actuações (todas, no dizer e no calar e no cantar – e que bem soube ouvir canções por entre calabouços!... O canto, sempre uma das supremas formas de expressar sentimentos e de aliviar tensões!...), de sobriedade enorme, sentidas;
            - a sonoplastia;
            - o rigor da iluminação;
            - os trajectos quase nus…
            Se calhar, haveria teias de aranha, aqui e ali, a dar corpo às outras teias, bem cruéis, de que as personagens nos falaram…
            Aquele enferrujado carregador de baterias cheio de pó teria querido que os algozes sob ele jazessem para sempre, o pó a cobri-los por inteiro… Mas «vingança» não foi palavra ouvida, porque nem dessa seriam merecedores. O que interessa mesmo é ouvir bem aquelas palavras finais, matraqueadas… Para que o Amor, o verdadeiro, o da serena compreensão seja vencedor.
            Para já, o Teatro venceu ali. O Teatro Experimental de Cascais venceu. Mais uma vez.
          E que tudo venha a ser filmado. Já. Para que um canal de televisão daqui a uns tempos difunda. Até para memória duma esquadra, onde, ao longo de décadas, se procurou lutar por que, vencedora também ela, a verdadeira Cidadania reinasse!

                                                                                  José d’Encarnação
Publicado em Cyberjornal, edição de 05-06-2019:
http://www.cyberjornal.net/cultura/cultura/teatro/a-violencia-domestica-em-cena 

Fotos retiradas, com a devida vénia, da página oficial do TEC.

sábado, 1 de junho de 2019

Alijar tudo dos baús


             Será sempre assim? Terá sido sempre assim? É obrigatório que seja assim?
            Estas, as perguntas que, de olhos no infinito após os ter poisado no ecrã do computador, se me martelaram na cabeça.
            Se calhar, foi, e nós nada mais somos do que a repetição de tantos que, antes de nós, década após década, pensaram da mesma maneira, tiveram a mesma reacção. Uns soçobraram, talvez; outros encararam a realidade de peito aberto e abriram os baús para os arrumar e alijar quanto neles, de desnecessário doravante, haviam ciosamente guardado; outros, ainda, tentaram mudar de olhar e convencer-se de que quanto se lhes antojava evidente não passava de mui ilusória miragem irreal.
           Assaltaram-me, impertinentes, estes pensamentos. Já não os tinha há muito, embalado – graças a Deus! – pelos afazeres quotidianos que não faltam e serenamente me preenchem os dias. Não hesitei, porém, e recortei o penúltimo parágrafo da mensagem que a minha colega endereçara a um Amigo comum. Chegou a ser Reitor de Universidade durante largo tempo. Em breve se jubilaria. Transcrevo o recorte na língua original, para que não perca o sabor:

«Tra qualche mese anche tu sarai “dei nostri”. Non preoccuparti: i ritmi di lavoro non cambieranno, la gioventù continuerà a farti rileggere quanto ha scritto e potrai dedicare alle tue ricerche tutto il tempo che ora impieghi a riempire e-moduli dai nomi impronunciabili con i quali quest’università, così lontana da quella che avevamo voluto e in parte realizzato, pensa di mascherare la propria agonia».

Traduzo:
“Dentro de alguns meses também tu serás dos ‘nossos’. Mas não te amofines – que não mudarão os ritmos de trabalho, os jovens continuarão a dar-te a ler o que escreveram e poderás dedicar à tua investigação o tempo todo que ora empregas a preencher e-módulos de nomes impronunciáveis com que esta universidade – tão longe daquela por que suspirámos e, em parte, lográmos concretizar – imagina que consegue mascarar a sua própria agonia”.

«Velhos do Restelo!», dir-se-á. E não posso deixar de concordar. «Velhos do Restelo» somos. De vez em quando, em «velhos do Restelo» nos tornamos. Ou as circunstâncias nos transformam…
            ¿Porque será, pergunto-me agora, porque será que Luís de Camões imaginou, no solene momento da mui gloriosa partida, essepara o canto IV d’Os Lusíadas, «velho d'aspeito venerando», que três vezes a cabeça meneou e de «voz pesada» falou, «c'um saber só de experiências feito»? No mar, então, ouviram-no «claramente». Agora, será que inda há tempo para… ouvir?

                                                             José d’Encarnação
Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 755, 2019-06-01, p. 11.

   Ilustração de Rolando Sá Nogueira para o canto IV d’Os Lusíadas,
   edição comemorativa do 4º centenárioda 1ª edição do poema
   (Estúdios Cor, Lisboa, 1971).