quarta-feira, 5 de junho de 2019

A violência doméstica em cena


           Bem pensou João Vasco em propor que o texto de Tito Lívio, Sobreviventes, fosse levado à cena nas velhas instalações da PSP de Cascais.
            Aceite com aplauso a ideia quer pelo encenador, Carlos Avilez, quer pelo autor, todos deram tratos à imaginação para fazer dessa labiríntica esquadra o cenário ideal para ouvir confissões de uns quantos que nos vieram contar o que padeceram.
          Homens, mulheres, na primeira pessoa, ali junto a nós, olhando-nos nos olhos, confidenciando-nos. Ou imaginaram mesmo quem a/o havia maltratado e com ele/ela falaram, sem peias, libertando-se, mesmo que a confissão fosse feita junto às grades dum velho chilindró…
            – Ora, depoimentos! De depoimentos sabemos nós. Estamos fartos. O que interessa…
            – Sim, o que interessa, neste caso o que interessa é consciencializarmo-nos todos do que pode alguém contra outrem, a pretexto de tudo e de nada, espezinhando, «tu não prestas para nada!»…
            Eloquente, muito eloquente, a sobriedade quase nua da encenação. Nada nos distrai, porque temos o actor, a actriz à nossa frente. E nós não podemos fugir. Estamos numa esquadra. Sim, aquelas paredes já ouviram muitas daquelas histórias. Assim contadas e cantadas, umas três dezenas de espectadores silenciosos, olhos postos em quem representa, mas nem sequer pensamos que representam, tão naturalmente o fazem, tão real é a personagem que incarnam.
           Amiúde escrevo «É espectáculo a não perder!». Nunca, porém (com toda a franqueza o escrevo), nunca como em relação a este. Não pode mesmo perder-se, porque aquelas paredes antigas, prontas a serem desocupadas em breve, nunca tal viram, nunca foram testemunhas de um teatro assim.
            Dar a toda a equipa, a toda, um enorme abraço de parabéns é pouco.
            Foi tudo, é tudo excelente:
            - o texto (recebe, meu caro Tito Lívio, um grande abraço, Amigo!);
            - as actuações (todas, no dizer e no calar e no cantar – e que bem soube ouvir canções por entre calabouços!... O canto, sempre uma das supremas formas de expressar sentimentos e de aliviar tensões!...), de sobriedade enorme, sentidas;
            - a sonoplastia;
            - o rigor da iluminação;
            - os trajectos quase nus…
            Se calhar, haveria teias de aranha, aqui e ali, a dar corpo às outras teias, bem cruéis, de que as personagens nos falaram…
            Aquele enferrujado carregador de baterias cheio de pó teria querido que os algozes sob ele jazessem para sempre, o pó a cobri-los por inteiro… Mas «vingança» não foi palavra ouvida, porque nem dessa seriam merecedores. O que interessa mesmo é ouvir bem aquelas palavras finais, matraqueadas… Para que o Amor, o verdadeiro, o da serena compreensão seja vencedor.
            Para já, o Teatro venceu ali. O Teatro Experimental de Cascais venceu. Mais uma vez.
          E que tudo venha a ser filmado. Já. Para que um canal de televisão daqui a uns tempos difunda. Até para memória duma esquadra, onde, ao longo de décadas, se procurou lutar por que, vencedora também ela, a verdadeira Cidadania reinasse!

                                                                                  José d’Encarnação
Publicado em Cyberjornal, edição de 05-06-2019:
http://www.cyberjornal.net/cultura/cultura/teatro/a-violencia-domestica-em-cena 

Fotos retiradas, com a devida vénia, da página oficial do TEC.

1 comentário:

  1. Por este belíssimo texto avalio a profundidade da obra, o acerto da encenação e o nível das actuações. Até a reverência silenciosa dos espectadores, muitos deles sobreviventes das torturas da existência, dá aos seguidores deste blog a medida do sucesso do espectáculo. Bem hajas por mais um belo naco de prosa com muito sentimento à mistura.
    Maurício Fernandes

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