Bem pensou João Vasco em propor
que o texto de Tito Lívio, Sobreviventes,
fosse levado à cena nas velhas instalações da PSP de Cascais.
Aceite
com aplauso a ideia quer pelo encenador, Carlos Avilez, quer pelo autor, todos deram
tratos à imaginação para fazer dessa labiríntica esquadra o cenário ideal para
ouvir confissões de uns quantos que nos vieram contar o que padeceram.
Homens,
mulheres, na primeira pessoa, ali junto a nós, olhando-nos nos olhos,
confidenciando-nos. Ou imaginaram mesmo quem a/o havia maltratado e com ele/ela
falaram, sem peias, libertando-se, mesmo que a confissão fosse feita junto às
grades dum velho chilindró…
–
Ora, depoimentos! De depoimentos sabemos nós. Estamos fartos. O que interessa…
–
Sim, o que interessa, neste caso o que interessa é consciencializarmo-nos todos
do que pode alguém contra outrem, a pretexto de tudo e de nada, espezinhando,
«tu não prestas para nada!»…
Eloquente,
muito eloquente, a sobriedade quase nua da encenação. Nada nos distrai, porque
temos o actor, a actriz à nossa frente. E nós não podemos fugir. Estamos numa
esquadra. Sim, aquelas paredes já ouviram muitas daquelas histórias. Assim
contadas e cantadas, umas três dezenas de espectadores silenciosos, olhos
postos em quem representa, mas nem sequer pensamos que representam, tão
naturalmente o fazem, tão real é a personagem que incarnam.
Amiúde
escrevo «É espectáculo a não perder!». Nunca, porém (com toda a franqueza o
escrevo), nunca como em relação a este. Não pode mesmo perder-se, porque
aquelas paredes antigas, prontas a serem desocupadas em breve, nunca tal viram,
nunca foram testemunhas de um teatro assim.
Foi
tudo, é tudo excelente:
-
o texto (recebe, meu caro Tito Lívio, um grande abraço, Amigo!);
-
as actuações (todas, no dizer e no calar e no cantar – e que bem soube ouvir
canções por entre calabouços!... O canto, sempre uma das supremas formas de
expressar sentimentos e de aliviar tensões!...), de sobriedade enorme, sentidas;
-
a sonoplastia;
-
o rigor da iluminação;
-
os trajectos quase nus…
Se
calhar, haveria teias de aranha, aqui e ali, a dar corpo às outras teias, bem
cruéis, de que as personagens nos falaram…
Aquele
enferrujado carregador de baterias cheio de pó teria querido que os algozes sob
ele jazessem para sempre, o pó a cobri-los por inteiro… Mas «vingança» não foi
palavra ouvida, porque nem dessa seriam merecedores. O que interessa mesmo é
ouvir bem aquelas palavras finais, matraqueadas… Para que o Amor, o verdadeiro,
o da serena compreensão seja vencedor.
Para
já, o Teatro venceu ali. O Teatro Experimental de Cascais venceu. Mais uma vez.
E
que tudo venha a ser filmado. Já. Para que um canal de televisão daqui a uns
tempos difunda. Até para memória duma esquadra, onde, ao longo de décadas, se
procurou lutar por que, vencedora também ela, a verdadeira Cidadania reinasse!
José d’Encarnação
Publicado em Cyberjornal,
edição de 05-06-2019:
http://www.cyberjornal.net/cultura/cultura/teatro/a-violencia-domestica-em-cena
Fotos retiradas, com a devida vénia, da página oficial do TEC.
Por este belíssimo texto avalio a profundidade da obra, o acerto da encenação e o nível das actuações. Até a reverência silenciosa dos espectadores, muitos deles sobreviventes das torturas da existência, dá aos seguidores deste blog a medida do sucesso do espectáculo. Bem hajas por mais um belo naco de prosa com muito sentimento à mistura.
ResponderEliminarMaurício Fernandes