sexta-feira, 31 de julho de 2020

Chamar nomes

          Considerei a expressão «chamar nomes». Usamo-la com frequência, mas só agora é que atentei no seu real significado pejorativo. É que esses «nomes» em questão se enquadram no rol dos nomes… feios!
            E, por isso, como ora, em vez de «O Venturoso», «O de Boa Memória», «O Príncipe Perfeito» se prefere «esclavagista», «racista» e quejandos, lembrei-me da importância do nome. E vi a bruxa que, em tempos, se aboletara a fim de massacrar um inimigo: escrevera o nome dele a letras de sangue na almofada e, de agulha em punho, picava-o sem cessar, em transe, de rezas satânicas ciciadas… Massacrado o nome, destruía-se a peçonha e o alacrau não voltaria a ser o mesmo!
Damnatio memoriae
            «Nada há de novo sob o Sol», proclamava o «Eclesiastes» (1, 9), sábio livro do Antigo Testamento. Pois não. Já os Romanos praticavam a «damnatio memoriae», a «condenação da memória». Quando um imperador ou um alto funcionário caía em desgraça, se, porventura, estátua lhe fora erigida ou inscrição gravada para eternamente perdurar, vinha o canteiro de picão em punho e, em raiva, martelava miudamente as letras do nome banido, para que dele traço não restasse. Busílis, hoje, como se calcula, para os epigrafistas, que temos de descobrir, por entre as falhas superficiais, aquele rasgo elucidativo a permitir a reconstituição da História.
            Pois. «Nada de novo sob o Sol», nem mesmo nesse jeito de se atribuírem os feitos – bons ou maus – a uma pessoa, sem ter em conta o contexto em que viveram. Foi lá o D. Afonso Henriques quem conquistou Lisboa? Foi o treinador quem perdeu o jogo? Enfim, o que importa é facilitar e, para o mal, como o povo hebraico (e lá voltamos nós à Bíblia!...), encontrar um bode expiatório, que carregue todos os pecados!... Aguenta-te, ó bode!
            O nome, que nos individualiza. «Quero nomes, ouviste?» – e a polícia política tudo fazia para os extorquir. «Quero nomes já!...». E mais um pontapé!...
            Voltemos, então, aos Romanos. Deixaram-nos, por exemplo, as inscrições onde quiseram perpetuar a memória. E enquanto nós, eventualmente por decoro ou para simplificar, mandamos gravar no epitáfio uma frase comum «eterna saudade de seu marido e filhos», os Romanos não estavam com meias-medidas e ordenavam que se gravasse também o nome do encomendante: «Júlia Amena, a expensas suas, mandou fazer». Decerto a ideia seria que também ela, a Amena, um dia iria ser sepultada com o marido. E, assim, antecipava-se.
            Para nós, epigrafistas, esta forma de a pessoa se identificar na pedra assume importância capital, porque desta forma se denuncia o estatuto social: se escravo, se liberto, se cidadão romano e donde, se pertencente à ordem equestre ou senatorial. Quando subiu ao trono, o imperador Augusto decidiu como é que se havia de chamar oficialmente. Um cardeal, quando eleito papa, escolhe o nome que detém para ele um significado maior.
            Não resisto ainda, nesta ordem de ideias, a falar da – como é que se diz? – categoria profissional. Não é bem isso, mas serve. No Brasil, toda a gente é doutor; em Coimbra, também. Quem sai licenciado do Técnico, tem de ser engenheiro. Quando assinei o primeiro ofício após o doutoramento, pespeguei ‘doutor’ com todas as letras por baixo da assinatura. Houve logo alguém que lhe plantou um ponto de exclamação. E eu aprendi. Daí prá frente é sempre só o nome e… pronto!   
           
                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 324, 2020-07-29, p. 6.

sábado, 25 de julho de 2020

Correios, um serviço cada vez mais essencial!

          Tenho o privilégio de habitar a dois passos do Centro de Distribuição Postal e o carteiro – praticamente todos já me conhecem – me visitar diariamente.
            Quando começou o confinamento e as restrições à circulação, numa das minhas idas à estação (entra-se um de cada vez e com máscara), perguntei à Carminho, a funcionária, se, agora, o movimento não era cada vez menor. Pensava eu na facilidade do correio electrónico, das comunicações por messenger, whatsapp, facebook e afins…
            – Muito pelo contrário! – respondeu-me a Carmo. – Aumentou! Envio e recepção de encomendas (medicamentos, compras pela internet…) e até parece que as pessoas têm mais tempo para escrever cartas e postais! Depois, os idosos com as pensões a receber… E eles não dominam essas tecnologias nem têm quem os ajude!...
            Compreendi. Também eu estou nesse lote dos idosos, embora nem queira crer, como aquela minha vizinha, mais velha que eu, que não frequentava o Centro de Dia do bairro: «O quê? Só há lá velhas!...». E quase me apetecia parafrasear o Augusto Gil: «Mas os idosos, Senhor, porque lhes dais tanta dor, porque padecem assim!».
            Escrevi, a 15 de Março de 2019:
            «’Salve-se o interior!’ Já o uso desse verbo implica desastre, alguém em risco de afogamento eminente. Salve-se! Mas… fechem-se as estações de correio, encerrem-se as repartições de finanças, acabem-se com os tribunais, destruam-se as agências da Caixa Geral de Depósitos!...
            O raio que os parta! (Deus me perdoe!...)».
            Pois. Que os parta, esses que proclamam olhar pelas pessoas. Olham, mas não as vêem! Não as auscultam. Não mexem todos os cordelinhos, em tudo o que é sítio sensível, para resolver os problemas do quotidiano.
            Apoio, claro, com todas as veras da alma, a justíssima crítica que, nesta edição, Correia Martins faz ao péssimo funcionamento da estação dos correios da nossa S. Brás.
            É lá possível que as entidades locais não se unam todas num enorme abaixo-assinado para alterar tão ignóbil situação? Num brado enorme que chegue a Faro e a Lisboa? Ele há rádios, há canais de televisão, jornais, facebooks e afins!... Vam’nessa, minha gente!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Noticias de S. Braz [S. Brás de Alportel] nº 284, 20-07-2020, p. 13.

sábado, 18 de julho de 2020

«Bruscamente no Verão Passado» - em cena no Mirita Casimiro


                 Estreou na sexta-feira, 10, no Teatro Mirita Casimiro, a 165ª produção do Teatro Experimental de Cascais: a peça «Bruscamente no Verão Passado», do americano Tenessee Williams (1911-1983).
            Versão e dramaturgia da Dra. Graça P. Corrêa, investigadora em Ciência e Arte na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e docente no Mestrado em Encenação e Artes Performativas da Escola Superior de Teatro e Cinema, que, além da carreira académica, tem sido encenadora, cenógrafa e dramaturga. A encenação é de Carlos Avilez; a cenografia e figurinos, de Fernando Alvarez.
            De interesse para a compreensão da peça são os textos de apoio facultados, organizados por Graça P. Corrêa, onde podem consultar-se: a ficha técnica do espectáculo; o texto da organizadora, «Violência e sublimidade», com desenhos de Fernando Alvarez; mui circunstanciada biografia do autor, que tem como cólofon a frase «As violetas nas montanhas quebraram as pedras!», inscrita no túmulo do autor, retirada da peça “Camino Real”.
            Há, de seguida, um rol de frases de T. Williams. Se fora um historiador a transcrevê-las, poria o livro e a página donde foram retiradas. A internet está cheia de frases atribuídas a este ou àquele, mas desgarradas por completo do seu contexto. Por outro lado, uma selecção de frases é sempre a selecção de alguém que pensa de determinada maneira e, que, por isso, também nelas acaba por se rever. Uma das frases citadas particularmente me tocou: «Amigos são a maneira de Deus nos pedir desculpas pelas nossas famílias».
            Na p. 10, aborda-se a relação do dramaturgo com o poeta, a utilização da poesia no teatro. Sebastien, o jovem assassinado «bruscamente no Verão Passado», era poeta; escrevia um poema por ano. Boa parte do texto da peça, nomeadamente a fala inicial da mãe a evocá-lo – excelente interpretação de Manuela Couto! -, está eivada, de facto, de mui saboroso halo poético.
            Segue-se a entrevista dada a Dotson Rader (Paris Review 5, nº 81, 1981), em que Tenessee Williams fala da sua vida, da ala psiquiátrica em que, a dado momento, foi internado, da sua negação duma outra vida após a morte, ainda que admirasse «a imagem de Cristo, a Sua beleza e pureza, os Seus ensinamentos, sim…». Ilustra-a a fotografia de Tenessee, a fumar, pensativo, cabelos soltos, diante da folha branca da máquina de escrever…
            Valerá a pena ler o ensaio de Graça P. Corrêa «Ecos autobiográficos e míticos em ‘Bruscamente no Verão Passado’» (6 páginas, ilustradas). Mostra a investigadora o paralelo entre Sebastian Venable, a personagem fisicamente ausente mas permanente em cena nas constantes alusões que lhe são feitas; são as circunstâncias da sua morte que, ao longo da peça, se tentam descortinar, até que, no final, perante a confissão de Catherine, o psiquiatra declara: «Acho que devemos, pelo menos, considerar a possibilidade de que a história da jovem possa ser verdadeira». Bem sugestiva a relação com a lobotomia, excisão de lóbulos cerebrais para tratamento, por exemplo, da esquizofrenia, prática a que está ligado o nosso Prémio Nobel Egas Moniz. E, também, o paralelismo entre a morte de Sebastien e o martírio de S. Sebastião e entre Catherine Holly (‘incarnação’ da sua irmã, Rose) e Santa Catarina de Alexandria.
            Transcreve-se – antes da apresentação de pormenorizados currículos dos principais intervenientes no espectáculo – uma ‘introdução’ ao texto, da autoria do dramaturgo norte-americano Martin Sherman, datada de 1987, não se indicando, porém, donde foi retirada.
            Então, e a peça?
            Sim, tem toda a razão a pergunta, porque me perdi nos Textos de Apoio... Violet, a mãe, é superiormente interpretada pela experiente Manuela Couto; Catherine Holly é Bárbara Branco (excelente!); Bernardo Souto, um perspicaz e silencioso Dr. Cucrowicz; Teresa Corte-Real, a Sra. Holly; João Gaspar, George Holly, sempre de raquete de ténis a mostrar-se desportista; Luísa Salgueiro incarna a soturna Irmã Felicidade; e Lídia Muñoz (Miss Foxhill) movimenta-se para que nada falte a ninguém.
Os actores agradecem no final
            A minimalista nudez do cenário; o guarda-roupa creme, o ambiente creme – em que, amiúde, como é timbre de Carlos Avilez, o silêncio fala mais alto – e a mui regrada movimentação dos actores eficazmente contribuem para que se obnubile o drama que, durante 1 h e 45 m sem intervalo, mesmo a nossos pés se desenrola.
            Escreve Graça P. Corrêa que todas as personagens da peça «surgem atormentadas por um ‘horror interno’ contra o qual lutam». Não é, de facto, uma comédia, mas sim o retrato cru de vivências complexas; contudo, a excelência da encenação e das interpretações – mormente as das duas protagonistas, a merecerem amplos encómios – faz-nos esquecer tudo o mais.
            O espectáculo está em cena de quarta a domingo, até 2 de Agosto, a partir das 21.30 h.

                                                                       José d’Encarnação
           
Publicado em Duas Linhas – https://duaslinhas.pt/?p=2103 – a 14-07.2020.

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Uma moedinha, por amor de Deus!

           A princípio, fazia-me espécie: por que carga de água é que, de vez em quando, se encontravam moedas nos sítios arqueológicos? Tinham os Romanos os bolsos rotos? Uma aqui, outra acolá. Sim, não eram moedas de valor, ouro ou prata, moedas eram do quotidiano, uns trocos, dir-se-ia.
            Para os arqueólogos, achar uma moeda constitui bom presente, porque a moeda apresenta elementos passíveis de uma datação e, por conseguinte, assim possibilita atribuir uma cronologia ao contexto em que se encontra.
            Além dessas moedas perdidas, mais interessante se apresenta a identificação de um tesouro. Chama-se ‘tesouro’ a uma porção de moedas propositadamente escondidas, como hoje se fala em meter as notas dentro do colchão ou em esconderijo da casa a bom recato. O proclamado «pote das libras»! Não que, em tempo de Romanos, essas libras houvesse; a libra era outra, uma medida de peso equivalente a 327 gramas; mas porque, em tempo de nossos avós, o amoedamento privilegiava a libra de ouro, o hábito era – para quem podia… – oferecer uma libra ou meia-libra de ouro por altura do baptizo. Daí a expressão «pote das libras». Escondia-se o pote, os interessados morriam e o pote lá ficava!...
            A aguardar séculos que os arqueólogos o encontrassem! Às vezes, com milhares de peças, de que são particularmente importantes, do ponto de vista histórico, a mais recente e a mais antiga, para nos darem a conhecer o período do entesouramento.
Aspecto de um tesouro de moedas romanas
            Pois todas aquelas ideias acerca do bolso roto me passavam pela cabeça, mormente quando, nas escavações, eu encontrava uma moedinha romana, até que o parque de estacionamento de terra batida perto de casa foi desactivado e eu, em passeio por lá com o Spike, dei em encontrar, todas as semanas, moedas de 1 cêntimo, 2 cêntimos, 5, 10 e, até, de 20 cêntimos! Terão sido os automobilistas que as deixavam cair inadvertidamente?... Até que me lembrei do rapaz, já falecido por sinal, que ali ajudava nas arrumações. Só podia ter sido ele, justa         mente porque as moedas apareciam no espaço em que mais se movimentava. Só podia ter sido ele! Deitava fora as moedas de pouco valor! Nos estabelecimentos comerciais, marcam os produtos a 19,99 euros, para nos darem a sensação de que não são tão caros assim; mas o João, que nunca estendia a mão «Uma moedinha, por amor de Deus!», achava que 5 cêntimos não davam para nada e só lhe pesavam no bolso!...
            Não, no tempo dos Romanos, não haveria arrumadores de bigas ou quadrigas; não duvido, porém, que, de vez em quando, caísse das mãos uma moedinha dessas e o proprietário não estivesse com vontade de se agachar por tão pouco!...

                                               José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 780, 15-07-2020, p. 12.

segunda-feira, 13 de julho de 2020

As batalhas da Reconquista evocadas por um albicastrense

                 Apostado – e faz bem! – em dar-nos a conhecer o que vem lendo e as emoções que essas leituras lhe provocam, António Salvado brindou-nos recentemente (Novembro de 2019) com o 9º volume das suas Leituras. Edição do Instituto Politécnico de Castelo Branco, ISBN 978-989-8196-92-7, 40 páginas.
            O livrinho apresenta uma introdução ao texto do albicastrense Frei Manuel da Rocha (19/11/1676 – 16/11/1744) – que professou no Mosteiro de Alcobaça e chegou a lente de Teologia na Universidade de Coimbra. Chama-se Portugal Renascido, e consta do volume de 1730 da Colecção dos Documentos e Memórias da Academia Portuguesa da História.
            Aliás, integrou Frei Manuel da Rocha o núcleo inicial de académicos fundadores, em 1720, e, em nota (p. 7 a 10), António Salvado faz-se eco do importante trabalho inicial levado a cabo por esta Academia, que deve a sua fundação a el-rei D. João V.
            Como era hábito no século XVIII, a seguir ao título da obra vinha extenso subtítulo que patenteava, desde logo, a intenção do escrito. Neste caso: «Tratado histórico-crítico, em que à luz da verdade se dão manifestos os sucessos de Portugal no século X depois do nascimento de Cristo Senhor Nosso, tirados da confusão e descobertos para glória deste Reino por escrituras autênticas e inteligência genuína dos autores de melhor nota».
            Todo um programa, portanto!
            Nessa introdução, portanto, António Salvado, após historiar a traços largos a vida e obra de Frei Manuel da Rocha, aponta a sua preocupação em basear-se em documentação fidedigna; mostra como Portugal Renascido foi bem aceite por credenciados autores; e acentua a ideia de que, para Frei Manuel da Rocha, a independência de Portugal radica na «contínua e persistente diferenciação humana e territorial, lenta embora, da região portuguesa» (p. 14).

Como no fragor da batalha também há beleza!
            O ponto 7 da introdução embala-nos para o que, no fundo, foi o propósito de António Salvado, ao afirmar que a selecção das passagens do Portugal Renascido que escolheu para transcrever em Leituras IX «obedeceu muito mais a um propósito estético que a uma intenção… historiográfica». E, na verdade, embora declare, linhas antes, que «a persistente preocupação do historiador raramente permitiu expansão livre ao artista da palavra que nesse historiador coexistia», o certo é que os excertos apresentados primam pela elegância da forma.
            Direi, pois, que da leitura deste livrinho, sai deleitado o Poeta e… desejava mais o Historiador!
            As duas partes em que Portugal Renascido se desenrola são, no original, precedidas de uma súmula do que nelas se vai contar, súmula que é completada no começo de cada capítulo. Antonio Salvado optou por apenas transcrever as duas súmulas mais importantes e, por conseguinte, o leitor que esteja mais interessado na parte histórica, é aliciado – e bem! – a ir ler as cerca de 450 páginas do texto original, que hoje, digitalizadas por iniciativa da Google Books, estão disponíveis na Internet.
            Antes, porém, de citar duas ou três dessas passagens em que se prova que até o fragor da batalha se pode aureolar de beleza – a lembrar que até no lodo do Nilo vicejam flores de lótus, como proclama um dos personagens do filme «Os Dez Mandamentos» – permita-se-me que recorde uma das partidas maiores que, na actualidade, o programa dos computadores nos prega, impedindo-nos de ver as gralhas que os nossos textos apresentam. Neste caso, a revisão confiou no programa, que não sabe distinguir quando é que, por exemplo, se deve usar o itálico, e não alinha em nomes estranhos: quem é que disse que se escreve Ordonho? É Ordenho, claro, forma do verbo ordenhar!...
            Deliciei-me como esteta, portanto, ao ler passagens como estas, de antologia, pelo sábio recorte da frase, pela força que delas se desprende:
            D. Ordonho «mostrava-se prudente nas resoluções, atento nas causas, justo nas sentenças, compassivo para os súbditos, para os indignos severo» (p,. 21). Quem não gostaria de ter um retrato assim?...
            «De uma e outra parte se deu sinal para acometer; sucedeu ao sinal o furor, ao furor o estrago» (p. 27).
            «Entre chuveiros de setas que, despedidas do arco, turbavam os ares, se empenhava com acordo a espada e se brandia a lança, não se percebendo já mais do que gemidos tristes dos que, sendo alvo de tão feroz impulso, soltaram em ais os últimos alentos» (p. 28).
            «[…] Infundindo mortal assombro nos inimigos, lhes fazia desmaiar no coração os alentos, no braço a força, na mão a lança» (p. 29) – Um assombro de síntese!
            «Chegou enfim a hora em que a aurora, com boca de riso, ordena às estrelas que se recolham, manda às sombras que desapareçam; e ao mesmo ponto deram ordem também os generais católicos aos seus soldados para se disporem novamente à batalha» (p. 37). Desta feita, porém, o inimigo escapulira-se pela calada da noite; assim não fora, e voltaríamos, pelo jeito, a ter descrição bem poética das espadeiradas brandidas, de modo a que os vencidos haveriam de levar «nas feridas as melhores testemunhas do bem que cortavam as suas espadas» (p. 30)…
            Fica-nos da amostra a vontade de «ler mais» – qual convite actual nas redes sociais… Saber como foram realmente essas lutas dos séculos IX e X, integradas na Reconquista, que viriam patentear a individualidade portuguesa, a desembocar na criação do Condado Portucalense. Será o Condado esse Portugal Renascido?

                                                                       José d’Encarnação               

Publicado em: Gazeta do Interior (Castelo Branco), nº 1645, 01-07-2020, p. 6; e em Reconquista (Castelo Branco), nº 3877, 02-07-2020, p. 27.

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Como é que tu te chamas?

            – Olá! E como é que tu te chamas?
            Eu não me chamo, chamam-me! – responde o Albano, já industriado pelo pai nesse jeito de mangar meridional…
            Tens razão! E, então, como é que te chamam?
            Chamam-me Albano, tenho três anos, meu pai é Zétoino e os dentes de leite estão todos a nascer!
            Marafado do mocinho, hein!...
            Hoje, no atendimento ao público, a pessoa traz ao peito a placa identificativa. Habitualmente, deito-lhe os olhos e, ao ser tendido, trato a pessoa pelo nome. Amiúde, acolhe-me uma expressão admirada, que é como quem diz «como é que este sabe o meu nome?». Depois, apercebe-se da razão e sorri. Gostamos de ser tratados pelo nome. Detesto, pois, as placas do género T. Gonçalves, à laia da tropa, onde é pelo apelido que somos tratados. T. pode ser Teresa, Tânia, Tibúrcia!... Não gosto. Também não gosto que escondam a placa ou a ponham do avesso, assim como quem tem medo de ser conhecido.
D. Manuel I, «O Venturoso»
            Lembro-me sempre dum professor, que, por sinal, completou no dia 8 a bonita idade de 95 anos, o Professor Joaquim Veríssimo Serrão (parabéns, Amigo!). Anos depois de eu ter sido seu aluno, encontrou-me na rua:
            Olá, Zé Manel, como é que tu estás?
            Fiquei de tal modo satisfeito não apenas por me reconhecer mas, sobretudo, por me tratar pelo nome habitual nesses tempos de Faculdade, que jurei a mim próprio fazer todos os esforços para saber os nomes dos meus alunos. E nem me importo de os tratar pelas alcunhas que lhes dão, se não são pejorativas. Um dos meus antigos alunos é o «Alvito», porque é de lá, tem «Feio» de apelido e o pessoal desatou a chamar-lhe «Alvito» e ele não se rala. Numa das turmas, havia dois Joões. Um – infelizmente já falecido – era de Alcácer do Sal e tinha aqueles modos de falar vincadamente alentejano, como é o das gentes de Alcácer. Passou a ser o «João Alentejano». A alcunha tem esse condão: é como os outros nos vêem e nos caracterizam e envolve-a, de um modo geral, um halo de camaradagem, carinho. Não adregámos nós em dar cognomes aos nossos reis? Um é «O Conquistador», outro «O Justiceiro», outro «O Venturoso»!…

                                               José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 779, 01-07-2020, p. 13.

sábado, 4 de julho de 2020

Portugal furou o bloqueio, mas os ingleses não sabem!

             Todos os noticiários do passado dia 3 de Julho de 2020 (faço questão em registar a data completa!...) veicularam as declarações amargas de Augusto Santos Silva, Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, a comentar o facto de o Reino Unido ter, de certo modo, fechado as fronteiras à entrada de portugueses nas suas (dele) ilhas e desencorajado os ingleses a virem a Portugal.
            Não me admirei, porque a nossa História – independentemente de, em meados do século XIV, se ter selado um pacto de amizade entre os dois países, com o casamento de el-rei D. João I com D. Filipa de Lencastre – está semeada de gestos menos amistosos por parte dos britânicos. Aliás, quando cantamos «Às armas! Às armas! Contra os canhões marchar, marchar!», que canhões eram esses? Os dos ingleses, que, a 11 de Janeiro de 1890, nos haviam feito um ultimato, a obrigar-nos a entregar-lhes os territórios entre Angola e Moçambique, representados no Mapa Cor-de-Rosa.
            Já não refiro o facto de o Tratado de Methween, assinado a 27 de Dezembro de 1703, só aparentemente nos ter sido favorável, porque o interesse britânico era o de chegar mais facilmente aos barcos vindos com o ouro do Brasil…
            Querem bloquear-nos agora? Estão no seu pleno direito de ignorarem a História, pois foi precisamente para os seus barcos poderem vir abastecer-se à costa portuguesa, que Portugal não respeitou o Bloqueio Continental decretado, a 21 de Novembro de 1806, por Napoleão Bonaparte e sofreu, por isso, três invasões que nos depauperaram. Sim, eles, os britânicos acabaram por vir ajudar-nos, mas, não fora o movimento surgido após a frustrada conspiração de 1817 contra o marechal inglês Beresford, mais tempo ainda eles estariam por cá – que a governança, com Suas Majestades no Brasil, lhes era bem favorável!...

            Deixemos, pois, esses senhores e voltemos, então, às invasões, porque nos comprometemos a contar histórias relacionadas com o burgo cascalense.
Sala nobre do Solar D. Carlos, em Cascais, onde terá sido assinada a Convenção de Sintra
            E a vila muito sofreu, na verdade, com a primeira invasão, de 1807, porquanto sua excelência o comandante Junot se aboletou na vila e não dava mostras de querer ir-se embora. Sim, vencemos as batalhas de Almoster e Asseiceira e veio de seguida o representante do governo inglês, Almirante Sir Charles Cotton (1753-1812), que foi quem assinou com os franceses a retirada. Esteve hospedado Cotton na casa de D. Inês Margarida Antónia da Cunha, que foi depois dos Condes da Guarda, os actuais Paços do Concelho. Junot terá estado no que é hoje o Solar D. Carlos e há fortes probabilidades de ali – na bonita sala que a foto mostra – ter sido assinada a tristemente célebre Convenção de Sintra. ‘Tristemente’, porque em nada nos foi favorável, até do ponto de vista cultural, pois muitas das preciosidades que pilhara em igrejas e conventos a soldadesca teve hipótese de levar consigo. Cita João Paulo Ferreira Silva (em Primeira Invasão Francesa 1807-1808, edição da Academia das Ciências de Lisboa, 2015, p. 14), o que um jornal francês noticiou:
            «Os 7000 franceses que desembarcaram em Quiberon vinham carregados de ouro e não havia nenhum soldado que não trouxesse à volta do corpo cintos repletos de moedas de ouro».
            ¿Aliás, não se estipulava também aí, nessa Convenção, que as fortificações e praças apreendidas pelos franceses eram entregues aos… ingleses?
            Não fora, porém, nada serena a estada das tropas francesas por Cascais nesse ano de 1808. Além de os soldados portugueses mais válidos terem sido de imediato incorporados na Legião Estrangeira e enviados para França, foi de polé o tratamento dado, por exemplo, pelo general Morin, conforme relato do então Juiz de Fora, José Belo Madeira (veiculado por Ferreira de Andrade, em Cascais Vila da Corte – p. 260). Diz Belo Madeira que, ao chegar, o general «sem civilidade e em tom napoleónico», lhe «deu uma ordem por escrito para fazer aportar 1200 rações de pão, carne, vinho, legumes e lenha para, no dia seguinte; fornecerem a tropa».
            Não houve luta aberta, mas o povo sabia-as fazer pela calada. Num relato da época se conta que, nas redes, de vez em quando lá vinha mais um cadáver francês!…
            Nove meses aturou Belo Madeira os despotismos franceses, mas, ao recordar esse ano, em carta de 1810, confessa sentir-se desvanecido por não ter visto correr sangue cascarejo; por o povo de Cascais nem um real ter pago para a contribuição dos 40 milhões; por ele próprio não ter desarmado o povo, impedindo assim que o saque à vila tivesse sido maior. Conta também que, um dia, por o general francês o haver desmentido, se foi a ele, lhe agarrou na espada e com ela o trespassaria se os ajudantes não tivessem acorrido...
            O certo é que todas essas atrocidades se cometeram contra o povo português, por termos sido fiéis à «velha aliança britânica». E nem a dita Convenção de Sintra, assinada em pleno coração da vila cascalense entre ingleses e franceses nos valeu!

                                                        José d’Encarnação

Publicado, a 4 de Julho de 2020, em Duas Linhas: https://duaslinhas.pt/?p=1753