segunda-feira, 13 de julho de 2020

As batalhas da Reconquista evocadas por um albicastrense

                 Apostado – e faz bem! – em dar-nos a conhecer o que vem lendo e as emoções que essas leituras lhe provocam, António Salvado brindou-nos recentemente (Novembro de 2019) com o 9º volume das suas Leituras. Edição do Instituto Politécnico de Castelo Branco, ISBN 978-989-8196-92-7, 40 páginas.
            O livrinho apresenta uma introdução ao texto do albicastrense Frei Manuel da Rocha (19/11/1676 – 16/11/1744) – que professou no Mosteiro de Alcobaça e chegou a lente de Teologia na Universidade de Coimbra. Chama-se Portugal Renascido, e consta do volume de 1730 da Colecção dos Documentos e Memórias da Academia Portuguesa da História.
            Aliás, integrou Frei Manuel da Rocha o núcleo inicial de académicos fundadores, em 1720, e, em nota (p. 7 a 10), António Salvado faz-se eco do importante trabalho inicial levado a cabo por esta Academia, que deve a sua fundação a el-rei D. João V.
            Como era hábito no século XVIII, a seguir ao título da obra vinha extenso subtítulo que patenteava, desde logo, a intenção do escrito. Neste caso: «Tratado histórico-crítico, em que à luz da verdade se dão manifestos os sucessos de Portugal no século X depois do nascimento de Cristo Senhor Nosso, tirados da confusão e descobertos para glória deste Reino por escrituras autênticas e inteligência genuína dos autores de melhor nota».
            Todo um programa, portanto!
            Nessa introdução, portanto, António Salvado, após historiar a traços largos a vida e obra de Frei Manuel da Rocha, aponta a sua preocupação em basear-se em documentação fidedigna; mostra como Portugal Renascido foi bem aceite por credenciados autores; e acentua a ideia de que, para Frei Manuel da Rocha, a independência de Portugal radica na «contínua e persistente diferenciação humana e territorial, lenta embora, da região portuguesa» (p. 14).

Como no fragor da batalha também há beleza!
            O ponto 7 da introdução embala-nos para o que, no fundo, foi o propósito de António Salvado, ao afirmar que a selecção das passagens do Portugal Renascido que escolheu para transcrever em Leituras IX «obedeceu muito mais a um propósito estético que a uma intenção… historiográfica». E, na verdade, embora declare, linhas antes, que «a persistente preocupação do historiador raramente permitiu expansão livre ao artista da palavra que nesse historiador coexistia», o certo é que os excertos apresentados primam pela elegância da forma.
            Direi, pois, que da leitura deste livrinho, sai deleitado o Poeta e… desejava mais o Historiador!
            As duas partes em que Portugal Renascido se desenrola são, no original, precedidas de uma súmula do que nelas se vai contar, súmula que é completada no começo de cada capítulo. Antonio Salvado optou por apenas transcrever as duas súmulas mais importantes e, por conseguinte, o leitor que esteja mais interessado na parte histórica, é aliciado – e bem! – a ir ler as cerca de 450 páginas do texto original, que hoje, digitalizadas por iniciativa da Google Books, estão disponíveis na Internet.
            Antes, porém, de citar duas ou três dessas passagens em que se prova que até o fragor da batalha se pode aureolar de beleza – a lembrar que até no lodo do Nilo vicejam flores de lótus, como proclama um dos personagens do filme «Os Dez Mandamentos» – permita-se-me que recorde uma das partidas maiores que, na actualidade, o programa dos computadores nos prega, impedindo-nos de ver as gralhas que os nossos textos apresentam. Neste caso, a revisão confiou no programa, que não sabe distinguir quando é que, por exemplo, se deve usar o itálico, e não alinha em nomes estranhos: quem é que disse que se escreve Ordonho? É Ordenho, claro, forma do verbo ordenhar!...
            Deliciei-me como esteta, portanto, ao ler passagens como estas, de antologia, pelo sábio recorte da frase, pela força que delas se desprende:
            D. Ordonho «mostrava-se prudente nas resoluções, atento nas causas, justo nas sentenças, compassivo para os súbditos, para os indignos severo» (p,. 21). Quem não gostaria de ter um retrato assim?...
            «De uma e outra parte se deu sinal para acometer; sucedeu ao sinal o furor, ao furor o estrago» (p. 27).
            «Entre chuveiros de setas que, despedidas do arco, turbavam os ares, se empenhava com acordo a espada e se brandia a lança, não se percebendo já mais do que gemidos tristes dos que, sendo alvo de tão feroz impulso, soltaram em ais os últimos alentos» (p. 28).
            «[…] Infundindo mortal assombro nos inimigos, lhes fazia desmaiar no coração os alentos, no braço a força, na mão a lança» (p. 29) – Um assombro de síntese!
            «Chegou enfim a hora em que a aurora, com boca de riso, ordena às estrelas que se recolham, manda às sombras que desapareçam; e ao mesmo ponto deram ordem também os generais católicos aos seus soldados para se disporem novamente à batalha» (p. 37). Desta feita, porém, o inimigo escapulira-se pela calada da noite; assim não fora, e voltaríamos, pelo jeito, a ter descrição bem poética das espadeiradas brandidas, de modo a que os vencidos haveriam de levar «nas feridas as melhores testemunhas do bem que cortavam as suas espadas» (p. 30)…
            Fica-nos da amostra a vontade de «ler mais» – qual convite actual nas redes sociais… Saber como foram realmente essas lutas dos séculos IX e X, integradas na Reconquista, que viriam patentear a individualidade portuguesa, a desembocar na criação do Condado Portucalense. Será o Condado esse Portugal Renascido?

                                                                       José d’Encarnação               

Publicado em: Gazeta do Interior (Castelo Branco), nº 1645, 01-07-2020, p. 6; e em Reconquista (Castelo Branco), nº 3877, 02-07-2020, p. 27.

1 comentário:

  1. Um belo texto, este, sobre LEITURAS IX, de António Salvado, que se ocupa do PORTUGAL RENASCIDO de Frei Manuel da Rocha, do núcleo fundador da Academia Portuguesa de História. Quando Historiador e Poeta convivem na mesma pessoa, é difícil que o segundo não se sobreponha ao primeiro, pela beleza estilística do discurso. E as passagens aqui apresentadas por José d`Encarnação ilustram-no muito bem. Prosa poética da melhor, embora fique o apelo para revisitar os momentos que à História dizem respeito. Gostei muito desta leitura, a que não falta o toque de humor sobre o tão extenso (mas tão limitado, às vezes) conhecimento das novas tecnologias: Ordonho? Não...o que é isso! Ordenhe é que fica bem...

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