quinta-feira, 26 de março de 2020

Fonte e Lavadouro da Mesquita

                Deveras nos congratulamos com o facto de, no âmbito do projecto «Memórias da Terra», se terem completado, a 2 de Fevereiro, as obras de requalificação do Lavadouro e da Fonte da Mesquita, como Noticias de S. Braz desenvolvidamente noticiou (p. 20, com mui oportuna chamada na 1ª página).
            Os trabalhos executados, nomeadamente o da planificação de uma rede de rega (se bem entendo), visam proporcionar doravante o usufruto do local por parte da população, uma vez que, inclusive, se procedeu ao plantio de árvores e à instalação do que hoje se chama mobiliário urbano e que, no fundo, são acomodações para na Fonte haver a possibilidade de se passarem bons momentos ao fim-de-semana e no Verão.
            Lugares ímpares de convívio e de consolidação da comunidade ainda nas décadas de 50 a 60 do século passado, as fontes e os seus lavadouros deixaram de ter préstimo, quando se introduziu o sistema da água canalizada ao domicílio, que permitiu, primeiro, a compra de um tanque de cimento para a roupa se lavar em casa e, depois, quando, com a instalação da electricidade em todos os lares, mesmo os mais humildes, a máquina de lavar acabou por tornar definitivamente inútil a ida ao lavadouro público. E, assim, o espírito comunitário foi fenecendo aos poucos…
            Muito me agradou, pois, que os Amigos do Museu do Trajo, vestidos à moda são-brasense, tivessem querido mostrar como era antigamente. Não, decerto, para que se voltasse a esses tempos, mas – como se diz na notícia – para ser «momento de evocação da memória e convívio».
                Se me é permitido, eu iria mais além.
            Em primeiro lugar, a consciencialização de que S. Brás continua a deter um bom nível freático, que importa salvaguardar, sobretudo evitando a sua contaminação.
            Depois, porque não basta evocar, importa viver! E, por isso, não veria com maus olhos que iniciativas particulares ou colectivas passassem a ter como cenário esses locais.
            Finalmente, porque se falou em rede de rega e porque me lembro quando me levantava de madrugada para ir buscar água ao poço do Corotelo (hoje tapado), para recordar aos são-brasenses esses tempos em que poupar água era preocupação diária.
            Era.
            E, agora, cada vez mais, tem de voltar a ser!

                                                                    José d’Encarnação

Publicado em Noticias de S. Braz [S. Brás de Alportel] nº 280, 20-03-2020, p. 13.

quarta-feira, 25 de março de 2020

Inevitável


         Perdoar-se-me-á, tantos são os textos que nos atafulham a caixa do correio electrónico a propósito do que estamos a atravessar. Perdoar-se-me-á se também eu me decido a escrever sobre o assunto. Não decido propriamente. Sou obrigado a isso, tão impositivo esse momento é.
          Escrever que ninguém estava à espera constitui lugar-comum. Ninguém estava, a nenhum nível. Mesmo os senhores que mandam no Mundo – política e economicamente – por mais videntes que tivessem ao seu serviço, nenhum deles adivinharia que um vírus tudo viesse virar do avesso, obrigando a todos, sem tir-te nem guar-te, a mudarem por completo o seu paradigma de vida. Corria-se, voava-se, hoje estava em Lisboa, amanhã em Berlim, no dia a seguir no Rio de Janeiro? Esquece! Isso acabou mesmo! E tens de parar.
            Não foram precisas bombas nem ameaças nucleares! Um simples vírus, por ter determinado a reclusão, vai alterar por completo e tão eficazmente um modo de encarar a vida que nenhuma religião, por mais prédicas que fizera, haveria de conseguir.
            E o cronista tem, obrigatoriamente, de se fazer eco do que se passa à sua volta. Para que conste – se é que, depois disto, ainda haverá quem venha a estar preocupado com o que o final do ano de 2019 da era cristã nos veio proporcionar. Pelo sim, pelo não, documente-se.
            Não, não vou referir que, por ter havido suspeita de infecção, o talho do meu bairro, aonde todos agora íamos às compras, se viu forçado a fechar com polícia à porta. Prefiro – desculpe-me, Amigo! – dizer-lhe que o meu cão me levou a passear hoje, logo de manhãzinha, pelos arredores de minha casa, em bairro da periferia urbana de Cascais, onde as casas ainda se escondem, aqui e além, sob frondoso pinheiro manso ou mui altaneira araucária.
            Dizia-me ontem uma vizinha que tem também casa perto da Torre Eiffel, desejosa de voltar para cá, mas não a deixam: «Oh! passear nestes dias nos Campos Elísios é uma sensação nova, que, ao longo de tantos anos de França, eu nunca tivera! Sentir o perfume das flores e não o fumo dos carros!...».
            Eu também. Neste quase romper da manhã, o ar estava recheado dos arrulhares – um daqui, outro dali, um outro mais além… – dos casais enamorados das rolas ou dos machos em busca de aconchego. Era só isso. Mais aqueles dois melros, a fugir de ramo em ramo, ela a fazer-se esquiva e ele em perseguição… Duas lagartixas estendiam-se, de olhos fechados, no murete de um jardim. Naquela travessa, onde as vizinhas põem comida para os gatos, lá estavam eles, estirados no alcatrão, a gozar do sol, na certeza de que, num silêncio tal, não haveria carro que por ali passasse em breve. No talude da nova avenida, uma papoila solitária interpelou-me: «Não vês como se realça o meu vermelho em meio do verde rasteiro à minha volta? Sei que não vou durar muito, mas, entretanto, toda me quero pavonear aqui. Não achas que tenho um vermelho bem bonito?». Achei mesmo. Ela fez-se à câmara e não resisti a fotografá-la. Ainda nesse mesmo talude novo, uma mata. Bem, mata não é nem matagal. Mas achei-lhe piada. Não é que por ali cresceu uma ‘floresta’ de cardos! Picam, bem no sei. Contudo, assim juntos, selvagens, gritam que é bom ter liberdade de crescer!

                                                           José d’Encarnação
 
Não achas que tenho um vermelho bem bonito?
Assim juntos, selvagens, gritam que é bom ter liberdade de crescer!

domingo, 22 de março de 2020

E longamente envelheças…

               Vem de longe a preocupação com o envelhecimento. E, também, a não menor atenção para com os anciãos. Todos – e não apenas aqueles que o Povo, nas cidades da antiga Grécia, escolhia para senadores (senador é mesmo sinónimo de velho!), a fim de, com a sua larga experiência, apontarem os melhores caminhos a trilhar.
            Prefiro «anciãos» a «velhos». É mais suave na pronúncia e não tem conotação de «não-presta»!
            Cícero escreveu, no ano 44 antes de Cristo, não muito tempo antes de morrer, o diálogo «Sobre a Velhice». E logo no começo, um dos personagens confessa:
            «Escrever este livro foi-me tão aprazível que não só afastei de mim todas as angústias da velhice, como a própria velhice se me tornou doce e confortável».

            São anciãos a maior parte dos meus vizinhos de bairro. Reúnem-se alguns no café, enquanto se não faz hora de irem buscar os netos à escola; dedicam-se outros ao voluntariado aqui e além; raros são os que, aparentemente, não têm objectivos para os seus dias… Muitos quereriam escrever as suas memórias, a contar das peripécias passadas, que «a minha vida dava um filme!»…
            Sinto-me bem como ancião e confesso ter-me emocionado quando, pela primeira vez, li uma das epígrafes de há dois mil anos, romana, achada em Beja, e que eu traduzi assim:
            «Quem quer que tu sejas, viandante, que passares por mim, neste lugar sepultada, se de mim tiveres pena – depois de teres lido que faleci no vigésimo ano de vida – e se o meu descanso te sensibilizar, rogarei que, fatigado, tenhas mais doce descanso, mais tempo vivas e longamente envelheças nesta vida de que me não foi lícito desfrutar. Chorar de nada te vale! Porque não aproveitas os anos?
            Ínaco e Io mandaram fazer para mim.
            Vai, é preferível, apressa-te, agora que já leste o que tinhas para ler. Vai».
            Ficou-me sobretudo o voto da jovem Nice: «E longamente envelheças»...
            Na Misericórdia de que sou irmão, o lema para os anciãos que acompanhamos situa-se num singelo trocadilho: envelheser! Ser, existir, viver, enquanto se envelhece!...

                                                                                   José d’Encarnação

            Ilustração retirada, com a devida vénia, do texto de Ana Vidal, «Este país não é para velhos, é para idosos», de 26.09.13

                        Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 773, 15-03-2020, p. 11-12.

quinta-feira, 12 de março de 2020

Ecos de eventos

            Registem-se dois eventos ocorridos em Cascais, pelo significado que tiveram: um concerto e uma exposição solidários e duas exposições de arte. Prefiro realçar os aspectos agradáveis dos dias que nos é dado viver e, à boa maneira lusitana, àquilo que nos traz boa disposição, como a moda de ora nos cumprimentarmos com leve sapatada ou como aquela de, em Milão, terem retirado todos os personagens d’A Última Ceia, de Leonardo, não fosse propagar-se entre eles o Covid-19!...

Refood
            Continua a organização Refood a sua importante missão de distribuir por famílias carenciadas o que sobra dos restaurantes e que seria desaproveitado. Toda uma equipa de voluntários e, naturalmente, um conjunto de procedimentos que vai desde a recolha ao acondicionamento e à entrega.
            Em estreita colaboração com a galeria do Casino Estoril e mediante o prestimoso apoio de artistas habituais na galeria que se disponibilizaram para mui significativo abatimento nos preços, a exposição patente no ‘hall’ do Casino obteve enorme êxito e vendas, cujo produto reverteu para a Refood.
            No Salão Preto e Prata, nesse mesmo dia 26, o Tributo a José Mário Branco teve mui luzida assistência (o salão quase esgotou!), até porque era de luxo o elenco dos artistas que graciosamente entraram na festa: Pedro Branco, filho de José Mário Branco; Rogério Charraz; Fernando Pereira, proprietário da Taverna dos Trovadores; Mafalda Arnauth; Maria Ana Bobone; e, após o intervalo, Kátia Guerreiro, de elegante fato-macaco escuro; Diogo Branco, neto do homenageado, que disse a ‘Carta ao Zeca’; Mafalda Sacchetti, que actuou também com Pedro Branco e Rogério Charraz; Diana Castro, de casaco branco comprido sobre fato-calça preto, a disfarçar a gravidez, que se fez acompanhar só à viola, em «Volta para trás!»; Edu Mundo e Júlio Resende, este com o seu jeito de se inclinar sobre o piano, qual divindade que venera; «Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades»: só Júlio Resende no improviso que nem sequer ele sabia bem como iria terminar – e foi um espectáculo!
            O momento final, todos no palco: «Quando eu for grande!».
            Grande é a organização Refood no seu projecto – a merecer todo o apoio que ora lhe foi dado. E mais tem de vir!
            José Mário Branco deve ter apreciado deveras!
Kátia Guerreiro. [Foto Casino Estoril]
Diana Castro, em «Volta para trás!» [Foto Casino Estoril]
Exposições
            Na galeria do Casino, estiveram, até segunda, 9, trabalhos de dois dos responsáveis da Oficina de Desenho, centro de ensino artístico em Cascais: Rui Aço, com «Modéstia Laica», acrílicos de fundo negro onde se passeiam traços e irrequietas manchas de cor; e Marita Moreno Ferreira, com «Apenas Enredos», em que se integram as séries Bruxas (mimosos desenhos), Serpentes, Strange Creatures, Birds, Rosas e Fishing Things…
            Ambos com longo currículo de exposições individuais e colectivas.
De Rui Aço
De Marita Moreno Ferreira
            Antecedeu esta a exposição ‘Ch ama’, de Filipa Oliveira Antunes, jovem arquitecta lisbonense (1973), professora, que aí fez, em 2018, a sua 1ª exposição individual e logo cativou pela singularidade com que aborda as paisagens e as formas. Fez bem Pedro Lima de Carvalho em lhe dedicar (como é seu timbre) catálogo de excelente qualidade: a artista bem no merece.
«O Arco», genial interpretação, de Filipa Antunes, do arco da Rua Augusta

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 319, 2020-03-11, p. 6.

sábado, 7 de março de 2020

Os brancos e os pretos

          Lembro-me como se fora hoje: sempre que acontecia estarmos por perto de um garoto ou garota de cor, meu pai punha-se de voz infantil e imitava o diálogo:     
            – Ó mãe! O branco chama-me preto!
            – Pois chama-lhe tu branco!
            – Mas o branco não se rala!...
            E ríamo-nos!
            O certo é que a mensagem ficou e agora dela me lembro, quando a questão do racismo voltou à baila. Uma educação singela, sem alardes, sem filosofias por detrás, mas eficiente para o dia-a-dia.
            Uma das colecções de cromos que mais me marcou na meninice foi a das Raças Humanas. Sei que fiz muita questão em a completar e guardei a caderneta durante muitos anos. Deve ter desaparecido numa qualquer mudança ou entreguei-a a algum dos filhotes; o certo é que dela me recordo muito bem. E como eu me deliciava a ver aquela enorme diversidade de trajos, costumes, caras, enfeites!...
            Um dos cromos ficou na minha memória para sempre: o do indígena de uma tribo africana que pusera um prato nos lábios. A confusão que aquilo me causou! Era um ritual de lá, explicaram-me, e eu compreendi, porque cada terra tem seu uso! Fui agora pesquisar na Internet e identifiquei: é a etnia mursi, do Sudoeste da Etiópia. Havia um outro que me deslumbrava, mas por outro motivo; creio que mostrava uma indígena da Samoa, não garanto; cativava-me pela serenidade e pela beleza; apaixonei-me por aquela imagem!

            Perdoar-se-me-á se vejo toda esta questão apenas pela aparência. Achei piada – passe a publicidade – ao anúncio da united colours of benetton que mostrava jovens de todas as cores. Fiquei encantado quando fui pela primeira vez a Londres e deparei, na rua, com todos aqueles trajos indianos, africanos, árabes… um caleidoscópio digno de se ver! Cometo, porventura, um erro, mas tenho ideia de que, num dos seus romances, Eça de Queiroz também acha ‘folclórico’ (certamente a palavra era outra) ver pelas ruas de Lisboa frades, freiras, sacerdotes vestidos segundo a sua praxe. Nada tem a ver com racismo, bem no sei; contudo, estamos irmanados num hino à diversidade, em que o que deve contar não é o exterior mas sim a competência, a dignidade. Insiste-se muito na diversidade vegetal e animal e pugna-se pela preservação da identidade – uma identidade que é local, diversa da do nosso vizinho do lado.

 

                                                     José d’Encarnação


Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 772, 01-03-2020, p. 11-12.