sábado, 28 de agosto de 2021

A riqueza da língua portuguesa

            A riqueza da língua portuguesa – em comparação, então, com a pobreza, mais do que franciscana, do inglês – deve ser posta em realce.
Nós temos palavras para tudo e ‘saudade’ será, sem dúvida, a primeira palavra que nos ocorre, por sempre se ter considerado única no mundo com essa conotação tão específica. Saudade não é melancolia, não é tristeza, não é ausência – é isso tudo!... Aparentemente, terá derivado do vocábulo latino salutatem, que os dicionários não registam. Prender-se-á com salus, saúde; com salutare, saudar… Ao particípio salutatus se poderá dar o significado de «adorado». E saudade é esse amor, essa adoração por algo que está ausente e cuja falta nos dói...
Quando estive na Roménia, país de língua românica, como se sabe, falaram-me de «dor». Dor é, para eles, o equivalente à nossa saudade. E, se atentarmos bem, saudade é esse sentimento que nos aperta o coração, uma dor sui generis, mas… dor! Roménia e Portugal por aí singram, então.
A riqueza do nosso vocabulário radica no facto de nos situarmos em privilegiada zona de passagem. Há etimologias latinas, gregas, visigóticas, árabes, do longínquo Oriente… E dos árabes, por exemplo, recebemos mui fecundo manancial de vocábulos concretos: nós dizemos azeitona, almanxar, alcoviteira!... Aliás, é nessa terminologia concreta que radica a nossa grande originalidade e, por outro lado, a grande dificuldade de falantes diferentes de nós lograrem captar o significado de muitas frases.
Foi-me dado o privilégio de ensinar português a Peter Koj, professor da Escola Alemã de Lisboa, hoje um grande divulgador da língua portuguesa em Hamburgo, sua terra natal, para onde se retirou aquando da aposentação. Hamburgo, a cidade mais portuguesa da Alemanha. Um dia, deu-lhe na veneta coligir as palavras e locuções nossas com o significado de «fugir», pôr-se na alheta, escapulir-se, dar às de vila-diogo…! Chegou à centena e não ficámos certos de que o rol estivesse completo. O mesmo em relação a embebedar-se, apanhar uma piela, estar alegre, ter um grãozinho na asa… Um nunca-mais-acabar!...
ooo
            Depois daquele longo período em que o Latim era a língua universal; depois do século XIX e primeira metade do século XX em que o Francês predominava, instalou-se agora a tirania do inglês, de tal maneira que se determinou: ou escreves em inglês ou arriscas-te a não ver valorizado nenhum dos teus escritos. E não é valorizado porque os avaliadores não compreendem o português.
E agora pergunto eu: se não escrever em português estou a contribuir para que a nossa língua mantenha o estatuto que hoje detém de uma das mais faladas no mundo? Quem é que está mal? Os que não querem aprender português ou eu que não desisti de escrever na minha língua?
E o grave é que essa opção assumiu foro oficial, a nível da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, que, para ter ‘estatuto’, contrata avaliadores internacionais, os quais, na maioria dos casos, da língua portuguesa conhecem apenas mui leves rudimentos. Claro, por isso, é que ditatorialmente se decretou que é em inglês que se deve escrever. Uma língua paupérrima a tentar adaptar-se a um idioma vetusto de quase dois milénios, riquíssimo das mais variadas contribuições!...
Diria o nosso sempre oportuno Gil Vicente: e así se hacen las cosas! Em castelhano, pois – que, no seu tempo, era língua culta e todos a entendiam muy bien!

                                                           José d’Encarnação

Publicado, a 28-08-2021, em:

http://laconimbriga.blogspot.com/2021/08/a-riqueza-da-lingua-portuguesa.html

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Se a Senhora das Mercês nos dá uma mercê!...

            Existe no lugar da Alagoa (Moimenta da Beira), a pouco mais de 200 metros a nor-noroeste da igreja paroquial de São João Baptista, a capela de Nossa Senhora das Mercês, de estilo pombalino.
            Esta capela é a primeira das sete que vêm mencionadas na Memória Paroquial de Moimenta da Beira, que é a resposta do pároco da vila de Moimenta da Beira, Francisco Gonçalves, datada de Maio de 1758, ao questionário enviado pela Coroa. Aliás, Bento da Guia – que a considera edificada sobre as ruínas de uma anterior — relaciona-a, de uma forma assaz curiosa, com duas delas, a de S. Sebastião e a da Senhora do Amparo. Segundo ele, tudo estaria ligado: S. Sebastião equivalia ao «acabar de todas as guerras»; a Senhora das Mercês, «a libertação de todos os cativeiros»; e a da Senhora do Amparo, «a misericórdia vigilante para todas as carências» (As vinte freguesias de Moimenta da Beira, 3.ª ed. Viseu, 2001, p. 278). Aí também se informa (p. 328) que, na sequência de promessa feita a 20 de Abril de 1649, por ocasião da praga de lagartas que destruía os soitos, a essa capela, entre outras, se cumpria romagem anual.
            Encastrada na fachada posterior da capela, ao centro, em plano superior, voltada a noroeste, mostra-se uma edícula, de granito de grão médio, com 57 cm de altura por 38 de largura. Tem a encimá-la frontão triangular flanqueado por pináculos encimados por esferas. A superfície central, lisa, sem vestígio de ter sido pintada ou de haver levada algum escrito, é ocupada por uma tarja pentagonal, rebaixada, limitada por moldura em filete, que termina em volutas, uma de cada lado, a envolverem, de certo modo, a inscrição em duas linhas na base.
O P inicial desse letreiro lê-se bem e está seguido de um ponto. Vem depois o que parece ser D (há uma racha na pedra nesse local) com um S deitado; no final, M com ponto a indicar que deve entender-se como sigla. A linha seguinte, entre as volutas em relevo, mostra a data que interpretamos como 1756: o 7 com breve barra horizontal superior; o 5 gravado quase como S, como era hábito no século XVIII, embora não esteja inteiramente perceptível; o 6 é claro. Uma data que se aceita bem, porque pode resultar de reedificação ou restauro levado a efeito logo após o terramoto de 1755.
E para que imploramos o auxílio da Senhora?
Primeiro, porque – se DAS M(ercês) até se nos afigurava normal estar escrito na placa, como que para identificar o edifício (ainda que seja estranho estar na sua parede posterior) – para o P inicial não encontramos, de momento, solução de desdobramento.
Depois, porque o Padre António Francisco d'Andrade, ao referir-se a esta capela no seu livro Descripção e Historia do Concelho de Moimenta da Beira (Viseu, 1926, p. 31), diz que há, na sua «parede da retaguarda, numa lápide parietal, a data de 1164».
É, pois, verosímil, que a lápide actual tenha substituído a anterior, ainda que nos cause confusão como é que, escrevendo em 1926, o Padre Andrade se haja referido à inscrição do século XII e não a esta, do século XVIII, na medida em que essa substituição poderá ser explicada, como atrás se disse, pelo facto de ter havido destruição aquando do terramoto. Contudo, destruição não houve, porque teria sido notícia que o prior Francisco Gonçalves não teria deixado de relatar, no quesito expressamente a isso dedicado, o nº 26: «Se padeceu alguma ruína no terramoto de 1755 e em quê e se está já reparada»; e, nesse aspecto, ele é peremptório: «não padeceu ruína alguma» (Memorias Paroquiais – Arquivo Nacional da Torre do Tombo - vol. 25, nº 259, p. 1923).
Portanto, à Senhora das Mercês uma mercê ora se roga: se houve essa placa de 1164, a denunciar que aí existiu ermida dos primeiros tempos de Portugal, onde se poderá saber mais acerca dela? Que, Senhora, a Vossa ermida, assim, bem envolta anda em mistério!...
 
José Carlos Santos
José d'Encarnação

 Publicado em Terras do Demo [Moimenta da Beira], 19 de Agosto de 2021, p. 6.

Nossa sirene calou

Devido a uma avaria técnica, a sirene dos Bombeiros de Cascais deixou de tocar ao meio-dia. Há longos meses. Não houvera esta situação de pandemia, não houvesse diminuído o pulsar cascalense e já teríamos protestos na rua. Não temos. É pena.
Segundo pude apurar, a avaria é informática e só uma empresa do Norte tem capacidade para a reparar. Até agora, tantos meses passados, os seus técnicos não lograram arranjar tempo para dar uma salada até Cascais. Cascais fica-lhes longe como o raio e pelas proximidades nortenhas há tarefas mais fáceis e, quiçá, compensadoras. Que Cascais se dane! E, de resto, que mania essa de tocarem ao meio-dia! Marroquinos! A quererem muezim do alto do minarete a convidar para a oração! Finórios é o que é!...
Pois, cavalheiros, isso da sirene não é assunto de muezim nem de gente fina, não, mas do Povo! Desenganem-se! Habituados estamos, há muito, ao meio-dia da sirene, que nos pautava a jornada, na vila e nos arredores.
Restam-nos, é claro, as sirenes de Alcabideche e do Estoril, que ouvimos bem, quando o vento está de feição. Mas essas mais nos fazem ter saudades da nossa!
Para quem está na vila, sempre se pode regular pelo toque das ave-marias do sino da igreja matriz; quem vive nos arredores não tem esse privilégio.
Contente deve estar aquele senhor que mora no Alto da Pampilheira e que, por trabalhar de noite, sempre que a sirene tocava ele ligava para o quartel a barafustar que o acordavam. Faz-me lembrar os estrangeiros que vieram para a zona oeste de S. Brás de Alportel e que não queriam o avé de Fátima da capela de S. Romão durante a noite; o prior fez-lhes a vontade e, aí, houve informáticos que resolveram a situação; não foi preciso chamar esse pessoal do Norte.
Em Cascais, Também já não nos deixam participar da angústia de um incêndio ou de um naufrágio, porque o chamamento dos bombeiros é feito por telemóvel. Modernices! Não há aquela sensação de pertença a uma comunidade, no bem e no mal. Já não chora a sirene quando sai o funeral dum dos bombeiros...
Temos saudades. A sirene é aquele ar de quem está alerta, zela por nós....
Numa das vezes em que estive em Poitiers, na França, ao meio-dia todas as sirenes da cidade deram em tocar. Perguntei porquê. Em dias determinados, explicaram-me, faz-se essa experiência, que já vem do tempo da guerra, para verificar se tudo funciona a preceito, não se dê o caso de ser preciso dar o alerta e o sistema não funcionar.
Quando visito o Palácio Nacional da Pena, pergunto sempre se não pensam pôr a funcionar o pequeno canhão da varanda, que, por engenhoso processo físico, fazia com que, ao meio-dia solar, a pólvora puxasse fogo por meio do calor da forte lente e o som ribombava pelas encostas. Paciência. O canhão é lembrado mas está inoperacional. Assim a sirene de Cascais.
Custa-nos. E todos nós a desejarmos matar saudades! Apuramos o ouvido e ouvimos as do Estoril e de Alcabideche. Mas não matamos a saudade.

                                               José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 337, 2021-08-21, p. 6.