sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Arquitectura e pintura – um casamento feliz

Uma conversa com Filipa Oliveira Antunes
 
Arquitectura e pintura – um casamento feliz
Fiquei seduzido desde o primeiro encontro com a pintura de Filipa Oliveira Antunes. Foi no Salão de Outono do Casino Estoril, em 2017. Era mágica a forma como envolvia a arquitectura na paisagem, num halo de poesia a transportar-nos para outras paragens, oníricas quiçá, a mostrar-nos que a realidade pode ser trampolim para o sonho.
Decerto tal não aconteceu apenas comigo, porque, logo em 2018, a mesma galeria albergou o seu «Um Adeus Infinito». Um dos quadros chamava-se «Simonetta» e sobre ele tive ocasião de publicar esta nota, a 19 de Março desse ano:
            «Apostaria que é, de novo, o olhar de Filipa Antunes a espraiar-se pelo azul da costa cascalense, as algas assumem-se em primeiro plano e há riscos brancos a varrer o horizonte. Uma nuvem se adensa ao fundo. E se casas são, as da costa, de negrura se vestem, a contrastar com a chapada de luz a rasgar o céu e a espelhar-se, resplandecente, numa réstia de água…».
            E terminava assim a minha recensão:
           «Apetece sentar-se na sala, em contemplação demorada. No silêncio, deixando a Beleza inebriar-nos».
A mesma sensação temos agora com esta sua 3ª exposição individual a que deu o nome de «Andorinha que vais alta!», inspirado na quadra de Fernando Pessoa: “Andorinha que vais alta, / Porque não me vens trazer / Qualquer coisa que me falta / E que te não sei dizer?”.
Natural de Lisboa, onde nasceu em 1973, Filipa Oliveira Antunes é Mestre em Arquitectura da Habitação, Doutora em Urbanismo e lecciona, desde 1997, na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias.
Dela quisemos saber mais.
 
– Que a seduziu para seguir Arquitectura?
– Conheci a Arquitetura pela mão de uma professora de liceu que marcou a minha geração pela sua capacidade pedagógica capaz de envolver os alunos em projetos reais e de significativo impacto na comunidade. Deu-nos a conhecer a Arte na sua amplitude e, desde muito jovem, tive a certeza que queria aplicar o gosto pelo desenho e a minha criatividade na transformação do espaço. Os meus pais e o meu avô materno são igualmente decisivos no percurso que escolhi e desenvolvi. Aprendi com eles a arte de produzir e de concretizar um determinado objetivo artístico ou técnico e hoje tenho a consciência de que isso é um pensamento muito arquitetónico. 
– «Mestre em Arquitectura da Habitação»: que linhas mestras desenvolveu na sua dissertação de mestrado?
– Na continuidade da formação em arquitetura, terminei a licenciatura em meados dos anos 90, e participei em diversos projetos de construção, nomeadamente no Parque das Nações – EXPO98. Essa experiência levou-me a querer aprofundar o tema da habitação. Fiz um Mestrado com especialização em arquitetura de habitação e desenvolvi uma linha de investigação centrada na morfologia dos Pátios e Vilas de Lisboa. Uma matéria que junta a arquitetura ao urbanismo e que me leva mais tarde a fazer a tese de Doutoramento sobre loteamentos, na relação projetual entre o espaço público e o edificado.
– A habitação para o homem, a habitação para o ambiente – dois binómios a ter sempre presentes, não é verdade? Que regras imprescindíveis há aí a cultivar?
Ser arquiteta é uma enorme responsabilidade. O território natural é de uma beleza inigualável e a arquitetura tem a missão de o potenciar. Assim como os ambientes urbanos devem corresponder aos valores da ecologia humana. Sendo a Arquitetura uma das profissões mais complexas, pela natureza das escalas de intervenção, diria que a regra passará por encontrar o carácter sensorial e emocional que os espaços podem evidenciar sobre a ética da apropriação humana. 
– Da Arquitecta e da Professora para a Artista que decide expor – porquê?
– Em 2021 assinalo os 25 anos de desempenho profissional na área da prática da arquitetura que tenho desenvolvido paralelamente com a atividade académica, como professora de arquitetura. Tendo começado a trabalhar muito cedo em ateliers de arte e de arquitetura, ainda enquanto estudante na faculdade,  aplicando o meu gosto pelo desenho, acabei por desenvolver bastante esta capacidade. Aos 19 anos estava a desenhar cenas da bíblia para vitrais de igreja, e todos esses trabalhos foram abrindo caminho e oportunidades para expor os meus desenhos e mais tarde pinturas.
            – Andorinha / Primavera – que mensagem a desta exposição?
Esta é a minha 3ª exposição individual na Galeria de Arte do Casino Estoril –Andorinha que vais alta – transporta para a pintura a mensagem de poetas, ceramistas e músicos, uma mensagem de renovação e de identidade nacional revista na esperança de um novo ciclo. Quis trazer para as telas uma perspetiva de voo mais alto em analogia com a vida, a nova vida que todos temos e que aprendemos na superação e na proteção.
Algum dos quadros lhe merece predilecção?
Vivo cada quadro com muita intensidade, o processo criativo é de uma exigência transformadora, e nesse sentido posso destacar o primeiro que produzi para esta mostra e que abriu caminho aos restantes – Voo em perspectiva – por ser também  arquitetónico e poético.
– Bem haja, Filipa! E permita-me que, a concluir, eu realce também a sua «história verídica», a da andorinha que tenta reanimar a amiga que jaz ferida. Gosto da asa angelical da ‘socorrista’ e considero este um bem oportuno apontamento quando se soube, há dias, que, em França, um homem caído na rua acabou por morrer por ninguém lhe ter dado atenção… A Arte é também isto: suave anátema contra a indiferença – que, no dia-a-dia, há momentos, os bons e os menos bons, os belos e os menos agradáveis que demandam a nossa atenção. Bem haja!

E, claro, a terminar, o convite, leitor: passe pela galeria do Casino – « Andorinha que vais alta» espera por si até 7 de Março.

                                               José d’Encarnação

 Publicado em Duas Linhas, 23-02-2022:
https://duaslinhas.pt/2022/02/arquitectura-e-pintura-um-casamento-feliz/
 

domingo, 20 de fevereiro de 2022

Torto como um garrocho!

             A ligação entre o concreto e o psicológico: torto, o garrocho, porque assim precisa de ser para a função, que tem, de apertar a cilha duma cavalgadura; torto, o indivíduo teimoso, de antes quebrar que torcer! O garrocho já está torcido e, na verdade, também não apreciamos gente ‘torcida’. Uma forma bem expressiva de se entenderem significados, quando o contexto o propicia. Sim, porque quem há aí, em 2022, que saiba o que é um garrocho? No Algarve, sim; mas… em Lisboa?
            Há, de facto, expressões quotidianas que remontam a esse passado agrícola em que a maior parte da população se ocupava: de pequenino se torce o pepino, tremer como varas verdes, malhar em centeio verde…
               Era bom procurar o retorno a esse modo de falar nosso, para se evitar a uniformização.
         Fala-se em biodiversidade; porque não falar da diversidade linguísticas? Pugna-se pela conservação das espécies; porque não pugnar para que os nossos idiotismos se divulguem e se usem?
              Idiotismo!? Palavra curiosa, essa, que não tem que ver com idiota. Ou talvez tenha. O que é um idiota? Na brincadeira dizemos: «É o que tem ideias!». E, nesse contexto, aplica-se quando alguém se sai com uma sugestão oportuna. A conotação negativa é, todavia, «estúpido», sem raciocínio capaz. Sucede, porém, que, etimologicamente, o significado é o positivo: através do latim, a palavra veio do substantivo grego «idiótes», que quer dizer ‘particular’, ‘pessoa particular’.
            Apontei três idiotismos colhido no (longínquo?) quotidiano rural. Não queremos que os nossos meninos – e, muito menos, os o políticos! – sejam tortos como um garrocho. Detestamos que, assaz amiúde, se ande a malhar em centeio verde. E não gostaríamos que ninguém, em circunstância alguma, tremesse como varas verdes:
            Outros – muitos! – idiotismos temos nós. Venham eles!
            (Pedi a Emanuel Sancho que me emprestasse a fotografia dum garrocho do Museu do Traje. Ela aí vai, com o meu bem-haja!)

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 303, 20-02-2022, p. 13.

sábado, 19 de fevereiro de 2022

«Charlotte» em cena no Mirita Casimiro - E foi a surpresa total!

Primeiro, saber que um actor vai vestir a pele de 35 personagens – trinta e cinco! – desperta logo expectativa. 35? Como é possível? Depois, lê-se a história. E vem a pergunta: como se passa para o palco toda essa trama, de uma actualidade flagrante, para mais veiculada por tão sugestivo cartaz?

A história

Charlotte von Mahlsdorf é o pseudónimo, feminino, de Lothar Berfelde, alemão nascido a 18 de Março de 1928. Faleceu em 2002. Um travesti, portanto, que viveu, na República Democrática da Alemanha, durante o nazismo e sob o regime comunista. Seu pai, nazi convicto, quis fazer dele um combatente activo, incorporou-o na Juventude Hitleriana em 1942. Mas Lothar assumia-se como… Charlotte! Acusaram-na, também por isso, como delinquente; conseguiram o seu internamento psiquiátrico e chegou a ser condenada a quatro anos de prisão.
O clima de guerras por que foi passando permitiu-lhe adquirir e apossar-se, nas casas bombardeadas, de obras de arte – relógios, espelhos, roupas, móveis, fonógrafos, gramofones… – com as quais criou, na cidade de Berlim, em 1960, o Museu Gründerzeit, que passou a ser lugar de encontros, nomeadamente da comunidade LGBT. Teve o museu peripécias várias: usurpado pelo governo da RDA em 1974, devolvido em 1976, assaltado em 1991 por neonazis… e Charlotte mudou-se para a Suécia. Parte da coleção viria a ser adquirida pela cidade de Berlim e o museu foi reaberto em 1997.
Um aspecto do Museu Gründerzeit
Sim, lê-se a história. Emocionante, sem dúvida. Pejada quiçá de extravagâncias. Uma Charlotte de personalidade riquíssima. E… como é que todo esse drama foi passado a escrito pelo norte-americano Doug Wright, livro que obteve, em 2004, o Prémio Pulitzer, um dos mais altos galardões da literatura universal. Doug Wright teve oportunidade de falar amiúde com a protagonista da peça que estava a preparar e, por conseguinte, não é de admirar que tudo nos seja agora apresentado na primeira pessoa.

O palco

E vem a pergunta: como se passa para o palco toda essa trama, de uma actualidade flagrante?
Não conheço o original de Doug Wright. A peça foi estreada em 2003, pouco tempo depois de Charlotte ter falecido. O que ora nos temos no Mirita Casimiro resulta da tradução de Miguel Graça, da cenografia e figurinos de Fernando Alvarez e, sobretudo, da sublime garra da encenação de Carlos Avilez.
Um só actor e 35 personagens? Sim. Marco d’Almeida. Sem dúvida, desde já, o papel da sua vida, que desempenha com uma simplicidade inconcebível. Como é possível? Quase duas horas a conversar com os espectadores, a desdobrar-se noutros, sem notas dissonantes na voz, numa serenidade que só um grande actor pode assumir sem tergiversar!...
Ficamos rendidos!
É ele, Marco, de vestido preto, cabeleira branca, colar de pérolas, numa fala sem enfeites, plena de naturalidade. Nem nos damos conta, nem nos passa pela cabeça pensar se é mulher com voz de homem… Nada! Ficamos presos, que a história é contada assim, naturalmente.
Desta feita, houve pano de cena, o que é raríssimo no TEC – e também o pano entrou na encenação! E o actor aparece-nos como se jogasse às escondidas, afastando uma fímbria do pano por correr. Aliás, pela fresta negligentemente deixada aberta a meio, o espectador até se vai apercebendo, antes de o espectáculo começar, que há alguém a passear-se por entre os móveis, junto dos relógios de pé, dos gramofones, como que a acariciá-los, a limpar-lhes o pó, a retocar-lhes a posição. É Charlotte. É Marco d’Almeida.
Um espectáculo vive também do seu contexto, o cenário, dizemos nós. Nas peças do TEC amiúde é despojado o cenário em que os personagens se movimentam. Para que seja a personagem a mostrar-se. Aqui, porém, Charlotte mostra-se-nos na sua casa, em meio das suas peças de arte, do seu museu. Os outros que ela evoca são ela própria. De resto, o original chama-se «Eu sou a minha própria mulher», um título que até pode suscitar algum desconforto em quem apressadamente o lê e, sobretudo, a quem não assistir à interpretação de Marco d’Almeida.
          Exacto: dignidade! Essa, a palavra que nos surge, após os aplausos, após vermos as suas lágrimas de emoção no final, ao presenciarmos o longo e sentido abraço de Carlos Avilez. Um espectáculo que a ninguém deixa indiferente e que – se a temática que envolve a ‘comunidade LGBT’ se apresenta duma actualidade premente – é susceptível de apontar soluções: as da dignidade!
Uma palavra ainda para o que se poderia designar de interlúdio: a cena esfusiante de um cancã, que poderá considerar-se como assumindo dois pretextos: o de desanuviar eventuais tensões geradas nos espectadores – e que bem que desanuviam!... – e o de permitir a participação de Carolina Faria, Filipe Feio, Hugo Narciso e Susana Luz. Mais uma vez, o trabalho conjunto de uma grande equipa que bem sabe o que faz!
Outra palavra para os pormenores: tudo ali (ouso afirmar) foi minuciosamente estudado. Não apenas, como é normal, a movimentação do actor, a tonalidade assumida da voz, o gesto contido, ora displicente, ora cheio de vigor, mas também o preciso (e precioso!) manuseio dos objectos espalhados pela sala, uma sala em que, mesmo sem o querermos, nós, os espectadores, acabamos por nos sentir e situar. O bilhetinho escondido naquela secreta ranhura, o objecto que sai de inesperada gaveta…

Os textos de apoio

Finalmente, leia-se a documentação proposta nas folhas do programa.
Carlos Avilez incita os jovens a apreciarem o Teatro, a fazerem Teatro, que «está naturalmente envolvido na reforma social e promove a união humana e um sentido de comunidade entre todos os que nele participam […]. O Teatro é revolucionário, grita contra a opressão e resiste sempre». Para Avilez, Marco d’Almeida, «o jovenzinho que apareceu na escola com aqueles olhos brilhantes e uma noção do que queria, ou seja, do seu amor pelo teatro», Marco d’Almeida é «um exemplo e um orgulho», «só um grande actor» como ele «poderia representar» esta peça «sempre e ainda com os seus olhos brilhantes».
Por seu turno, João Vasco evoca o sólido percurso de Marco, que ganhou uma bolsa da Fundação Gulbenkian para estudar em Londres e nos Estados Unidos, um «profissional rigorosíssimo, com uma enorme cultura, emprega estudo profundo aos seus personagens». «Por tudo isso», conclui, «admiro o seu enorme talento e sou fiel admirador do miúdo de mochila às costas, naquele ano de 1993».
Do testemunho de Marco d’Almeida, recorto os dois últimos parágrafos, que, como historiador, particularmente me tocaram:
«No final da peça, Doug Wright, o dramaturgo, pergunta-lhe se alguma vez ela deita fora peças do seu museu por estarem velhas ou danificadas. Charlotte responde-lhe que não. Devemos guardar tudo e mostrá-lo tal como é.
É importante mostrar o que foi a nossa História, sob o perigo de a esquecer. Ou reescrevê-la».
A ler também a entrevista que Justin Sanders fez a Doug Wright, em Março de 2021, para a revista Creativefuture. Ilustrada com instantâneos de Charlotte, ocupa as páginas 8 a 16 dos textos de apoio. Segue-se-lhe (pp. 16-29), sob o título «Retrato de um enigma», em tradução de Miguel Graça, o relato do relacionamento de Doug Wright com Charlotte, escrito em Outubro de 2003, recheado de informações acerca dessa vida plena de peripécias.

Enfim, foi tudo uma surpresa total! Pela personagem, pela peça, pela serena beleza que envolve este acutilante grito de alerta! Também quem diz não gostar de teatro deve ir ao Mirita Casimiro. Sairá de lá com um gosto bem diferente!

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Duas Linhas, 17-02-2022: https://duaslinhas.pt/2022/02/e-foi-a-surpresa-total/