sábado, 19 de fevereiro de 2022

«Charlotte» em cena no Mirita Casimiro - E foi a surpresa total!

Primeiro, saber que um actor vai vestir a pele de 35 personagens – trinta e cinco! – desperta logo expectativa. 35? Como é possível? Depois, lê-se a história. E vem a pergunta: como se passa para o palco toda essa trama, de uma actualidade flagrante, para mais veiculada por tão sugestivo cartaz?

A história

Charlotte von Mahlsdorf é o pseudónimo, feminino, de Lothar Berfelde, alemão nascido a 18 de Março de 1928. Faleceu em 2002. Um travesti, portanto, que viveu, na República Democrática da Alemanha, durante o nazismo e sob o regime comunista. Seu pai, nazi convicto, quis fazer dele um combatente activo, incorporou-o na Juventude Hitleriana em 1942. Mas Lothar assumia-se como… Charlotte! Acusaram-na, também por isso, como delinquente; conseguiram o seu internamento psiquiátrico e chegou a ser condenada a quatro anos de prisão.
O clima de guerras por que foi passando permitiu-lhe adquirir e apossar-se, nas casas bombardeadas, de obras de arte – relógios, espelhos, roupas, móveis, fonógrafos, gramofones… – com as quais criou, na cidade de Berlim, em 1960, o Museu Gründerzeit, que passou a ser lugar de encontros, nomeadamente da comunidade LGBT. Teve o museu peripécias várias: usurpado pelo governo da RDA em 1974, devolvido em 1976, assaltado em 1991 por neonazis… e Charlotte mudou-se para a Suécia. Parte da coleção viria a ser adquirida pela cidade de Berlim e o museu foi reaberto em 1997.
Um aspecto do Museu Gründerzeit
Sim, lê-se a história. Emocionante, sem dúvida. Pejada quiçá de extravagâncias. Uma Charlotte de personalidade riquíssima. E… como é que todo esse drama foi passado a escrito pelo norte-americano Doug Wright, livro que obteve, em 2004, o Prémio Pulitzer, um dos mais altos galardões da literatura universal. Doug Wright teve oportunidade de falar amiúde com a protagonista da peça que estava a preparar e, por conseguinte, não é de admirar que tudo nos seja agora apresentado na primeira pessoa.

O palco

E vem a pergunta: como se passa para o palco toda essa trama, de uma actualidade flagrante?
Não conheço o original de Doug Wright. A peça foi estreada em 2003, pouco tempo depois de Charlotte ter falecido. O que ora nos temos no Mirita Casimiro resulta da tradução de Miguel Graça, da cenografia e figurinos de Fernando Alvarez e, sobretudo, da sublime garra da encenação de Carlos Avilez.
Um só actor e 35 personagens? Sim. Marco d’Almeida. Sem dúvida, desde já, o papel da sua vida, que desempenha com uma simplicidade inconcebível. Como é possível? Quase duas horas a conversar com os espectadores, a desdobrar-se noutros, sem notas dissonantes na voz, numa serenidade que só um grande actor pode assumir sem tergiversar!...
Ficamos rendidos!
É ele, Marco, de vestido preto, cabeleira branca, colar de pérolas, numa fala sem enfeites, plena de naturalidade. Nem nos damos conta, nem nos passa pela cabeça pensar se é mulher com voz de homem… Nada! Ficamos presos, que a história é contada assim, naturalmente.
Desta feita, houve pano de cena, o que é raríssimo no TEC – e também o pano entrou na encenação! E o actor aparece-nos como se jogasse às escondidas, afastando uma fímbria do pano por correr. Aliás, pela fresta negligentemente deixada aberta a meio, o espectador até se vai apercebendo, antes de o espectáculo começar, que há alguém a passear-se por entre os móveis, junto dos relógios de pé, dos gramofones, como que a acariciá-los, a limpar-lhes o pó, a retocar-lhes a posição. É Charlotte. É Marco d’Almeida.
Um espectáculo vive também do seu contexto, o cenário, dizemos nós. Nas peças do TEC amiúde é despojado o cenário em que os personagens se movimentam. Para que seja a personagem a mostrar-se. Aqui, porém, Charlotte mostra-se-nos na sua casa, em meio das suas peças de arte, do seu museu. Os outros que ela evoca são ela própria. De resto, o original chama-se «Eu sou a minha própria mulher», um título que até pode suscitar algum desconforto em quem apressadamente o lê e, sobretudo, a quem não assistir à interpretação de Marco d’Almeida.
          Exacto: dignidade! Essa, a palavra que nos surge, após os aplausos, após vermos as suas lágrimas de emoção no final, ao presenciarmos o longo e sentido abraço de Carlos Avilez. Um espectáculo que a ninguém deixa indiferente e que – se a temática que envolve a ‘comunidade LGBT’ se apresenta duma actualidade premente – é susceptível de apontar soluções: as da dignidade!
Uma palavra ainda para o que se poderia designar de interlúdio: a cena esfusiante de um cancã, que poderá considerar-se como assumindo dois pretextos: o de desanuviar eventuais tensões geradas nos espectadores – e que bem que desanuviam!... – e o de permitir a participação de Carolina Faria, Filipe Feio, Hugo Narciso e Susana Luz. Mais uma vez, o trabalho conjunto de uma grande equipa que bem sabe o que faz!
Outra palavra para os pormenores: tudo ali (ouso afirmar) foi minuciosamente estudado. Não apenas, como é normal, a movimentação do actor, a tonalidade assumida da voz, o gesto contido, ora displicente, ora cheio de vigor, mas também o preciso (e precioso!) manuseio dos objectos espalhados pela sala, uma sala em que, mesmo sem o querermos, nós, os espectadores, acabamos por nos sentir e situar. O bilhetinho escondido naquela secreta ranhura, o objecto que sai de inesperada gaveta…

Os textos de apoio

Finalmente, leia-se a documentação proposta nas folhas do programa.
Carlos Avilez incita os jovens a apreciarem o Teatro, a fazerem Teatro, que «está naturalmente envolvido na reforma social e promove a união humana e um sentido de comunidade entre todos os que nele participam […]. O Teatro é revolucionário, grita contra a opressão e resiste sempre». Para Avilez, Marco d’Almeida, «o jovenzinho que apareceu na escola com aqueles olhos brilhantes e uma noção do que queria, ou seja, do seu amor pelo teatro», Marco d’Almeida é «um exemplo e um orgulho», «só um grande actor» como ele «poderia representar» esta peça «sempre e ainda com os seus olhos brilhantes».
Por seu turno, João Vasco evoca o sólido percurso de Marco, que ganhou uma bolsa da Fundação Gulbenkian para estudar em Londres e nos Estados Unidos, um «profissional rigorosíssimo, com uma enorme cultura, emprega estudo profundo aos seus personagens». «Por tudo isso», conclui, «admiro o seu enorme talento e sou fiel admirador do miúdo de mochila às costas, naquele ano de 1993».
Do testemunho de Marco d’Almeida, recorto os dois últimos parágrafos, que, como historiador, particularmente me tocaram:
«No final da peça, Doug Wright, o dramaturgo, pergunta-lhe se alguma vez ela deita fora peças do seu museu por estarem velhas ou danificadas. Charlotte responde-lhe que não. Devemos guardar tudo e mostrá-lo tal como é.
É importante mostrar o que foi a nossa História, sob o perigo de a esquecer. Ou reescrevê-la».
A ler também a entrevista que Justin Sanders fez a Doug Wright, em Março de 2021, para a revista Creativefuture. Ilustrada com instantâneos de Charlotte, ocupa as páginas 8 a 16 dos textos de apoio. Segue-se-lhe (pp. 16-29), sob o título «Retrato de um enigma», em tradução de Miguel Graça, o relato do relacionamento de Doug Wright com Charlotte, escrito em Outubro de 2003, recheado de informações acerca dessa vida plena de peripécias.

Enfim, foi tudo uma surpresa total! Pela personagem, pela peça, pela serena beleza que envolve este acutilante grito de alerta! Também quem diz não gostar de teatro deve ir ao Mirita Casimiro. Sairá de lá com um gosto bem diferente!

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Duas Linhas, 17-02-2022: https://duaslinhas.pt/2022/02/e-foi-a-surpresa-total/

 

2 comentários:

  1. Bom Dia Prof. Ameio o texto, só no Jornal de Letras leio critica com tão boa qualidade.
    Bem haja
    Maria Helena

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  2. Este texto riquíssimo de informação, é de leitura aliciante pela fluência do discurso. Ando a tentar programar uma ida ao Mirita Casimiro, que nem me fica assim tão longe, mas ainda não consegui. Por um lado para ver como foi tratado o texto de Doug Wright, que conheceu a "heroína" da peça. Por outro lado, para ver essa gigantesca maratona de Marco d´Almeida a dar vida a 35 personagens.
    Quando conseguir ver a peça, voltarei aqui para comentar novamente. Um abraço. Muito grata.

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