segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Património do falar

Ainda que não isento de polémica, pelo que me constou, eventual cópia (disse-se) de algo já feito, temos, com assinatura de Eduardo Brazão Gonçalves, o Dicionário do Falar Algarvio.
Uma iniciativa de fixar o que o povo usa no seu quotidiano e que constitui, por isso, património a não perder. E a palavra «património» assume aqui o seu real significado como algo de típico a transmitir de pais para filhos.
Bichoco, por exemplo, era palavra que eu ouvia amiúde, com um significado preciso: não era a simples ferida provocada por esfoladela ou arranhão; o bichoco era algo que viera de dentro, uma chaga a criar pus, a denunciar mal interior, difícil de sarar e de origem estranha, desconfiava-se que maligna.
E «chaga sem mezinha»? Uma pessoa incorrigível, incómoda, incurável, por mais conversa e conselhos que houvesse. Não tinha remédio. Não havia mezinha que lhe valesse!
Neste âmbito das dores e das mezinhas, dizia-se: «Ó homem, espera aí, não corras, que isto não é sangria desatada!»…

Publicado em VilAdentro [S. Brás de Alportel], nº 139/140 (Ago/Set 2010) p. 10.

António Feio - as lições


Todos víramos logo em Março – e ora revimos – a sua tocante mensagem, a propósito do filme Contraluz: saboreiem a vida, agarrem com ambas as mãos todos os momentos.
Esse, o testemunho a guardar; essa, a primeira enorme lição de António Feio, oportunamente salientada por Carlos Avilez (por exemplo), que no Teatro Experimental de Cascais lhe acompanhou os primeiros passos. A vontade de sermos nós os donos da nossa própria vida, mau grado as naturais adversidades!...
Tive maior relacionamento com o António devido às iniciativas de seu irmão Carlos, em Carcavelos, a que sempre se associou:
– o lançamento, a 20 de Outubro de 2007, do livro Podiamsermais, editado pela Associação Cultural de Cascais, com a colaboração plena da Junta de Freguesia («todas as noites / quero remendar a minha vida»…);
– a inauguração, a 28 de Março, p. p., de uma exposição colectiva de pintura e escultura, na Sociedade Recreativa Musical. Dei-lhe, então, aquele abraço emocionado, agradecido.
E aqui senti, mais uma vez, a segunda lição: a importância real de uma família que se entreajuda, que se ama, que… está lá! E que, como sabemos, esteve lá, no momento da partida – num «até sempre!» em que, afinal (vimo-lo nas emocionantes emissões televisivas de sexta, dia 30), todos nos sentimos irmanados…
Fez-nos rir o António. Fez-nos olhar para a vida, para as asneiras, para as malandragens, para os outros… com bonomia e benevolência – que é demasiadamente curta a nossa passagem por aqui!...
Bem hajas, Amigo!
A luta terminou; o teu exemplo, esse, permanecerá!
Descansa em paz!

Nota: Foto de 28-02-2010, gentilmente cedida por Carlos Feio, que nela se vê com o irmão António.

Publicado no Jornal de Cascais, nº 231, 03-06-2010, p. 6.

Atitudes (in)compreensíveis

Não, não vou bater mais no ceguinho. Estamos todos plenamente convencidos de que:
- os ricos não pagam a crise;
- as mordomias dos senhores políticos (governamentais) se mantêm e se acrescentam até;
- as inconcebíveis alcavalas da factura da electricidade não sofrem generalizada contestação (não surgiu nenhum petição ainda!...);
- as verbas do Jogo da Costa do Estoril não só são cada vez menores como haverá um senhor de Lisboa a dizer «Não dou!»;
- foi jogada política sem sentido (está bem, teve sentido político!...) a inopinada extinção da Junta de Turismo da Costa do Estoril…
Portanto, tudo isso é… compreensível. Quero, pois, referir-me a um assunto que não compreendo.
Prende-se com o calor anormal, o buraco do ozono, a excessiva densidade de raios ultravioletas da luz solar… Derivam, diz-se, do exagerado consumo de energia, mormente dos veículos automóveis. Proclamam-se cândidas intenções políticas; mas… é ver – e não apenas em horas de ponta – a fila imensa que se forma à saída da A5. Não vislumbrei, nos programas eleitorais, intenção de desbloquear a situação – que aquela saída, assim, é provisória, é perigosa e constitui vergonha. Nada se disse, Nada se diz. Ou melhor, aqueles que nós reputamos responsáveis nada dizem. Se estão a mexer no assunto, fazem-no pela calada, não vá levantar-se a lebre!
E, ao calor, o Povo padece, padece, padece!...
Bem se advoga que queremos os políticos na rua, a beber um copo co’a gente, para sentirem o pulso da vida verdadeira, a dos trabalhadores, de todos os dias. Saiam, amigos, saiam! Vão ver como se sentirão mais felizes!

Publicado no Jornal de Cascais, nº 230, 27-07-2010, p. 4.

A gurita


Para nós, os que, nos anos 50, brincávamos por esses matos da freguesia de Cascais, atrás de rebanhos ou simplesmente a armar aos pássaros nos carrascais e nos troviscos, a «gurita» era, simplesmente, o marco geodésico (para nós, imponente, porque éramos catraios…) plantado no topo do Mato Romão. Na verdade, outros marcos geodésicos haverá na freguesia, mas, para nós, aquele era o único. Aliás, nessa zona então inóspita, reino da passarada e dos coelhos, zona obrigatória de passagem dos tordos pelo Outono, se prantavam os alvos preferenciais dos exercícios da artilharia antiaérea e de costa, com aquele canhão de Alcabideche a fazer estremecer tudo e os aviões a descarregarem granadas (que nem sei se era assim que se chamavam…).
Por tudo isso, não quis deixar de ir à inauguração da nova exposição do Forte de São Jorge de Oitavos, que aconteceu ao final da tarde do passado dia 15. Complementa-a – e muito bem! – o livro (em quatro línguas!) Guaritas – Arte e Engenho, então apresentado, da autoria de Augusto Moutinho Borges (texto e fotografias) e Marín García (desenhos a lápis).
Constitui a guarita, como se sabe, aquele casinhoto com frestas, que se diria pendurado aos cantos das fortificações, resguardo e confidente de sentinelas, nas longas horas de vigília, a proteger (sempre pouco!...) do sol, dos ventos, das friagens… Mas, se calhar, passamos por ela e nem sequer lhe damos a importância que realmente detém, não só do ponto de vista militar (fundamental!), mas também como obra de engenharia. Que não são todas iguais. Bem significativas, por exemplo, as da Torre de Belém, de cúpula em gomos de laranja, a imitar o topo do minarete da Koutoubia de Marraquexe, que depois seria também imitado na «Giralda» de Sevilha e nos torreões da Quinta da Bacalhoa (em Azeitão).
Útil e excelentemente apresentado, o livro, a que tanto as fotos como os desenhos emprestam especial sabor. Bem agradável de ver-se a exposição, que veio (felizmente!) substituir a que ali se apresentava e que, a meu ver (e sei que a equipa do Departamento de Cultura da Câmara partilha da mesma opinião), era densa de mais, pejada de longos textos em letra miudinha, que ninguém tinha pachorra para ler. Esta, ao invés, designadamente na sua última parte, é aliciante de singeleza, convida-nos à admiração, a quedarmo-nos, em silêncio, diante daquela construção minúscula, a que, se calhar, ainda não déramos a devida atenção. E imaginamos o vendaval a uivar, o soldado mal aninhado no capote, numa luta contra o sono e a fadiga, a perscrutar horizontes e a sonhar com o conforto de uma lareira, onde pudesse trincar mesmo que fosse côdea rija e um naco de toicinho, regado pelo carrascão… Sempre lhe aconchegaria o estômago!

Publicado no Jornal de Cascais, nº 229, 20-07-2010, p. 6.