domingo, 28 de junho de 2020

Os bairros operários

             Ao referir-se, em anterior apontamento, a criação da «Iniciativa Patriótica da Instituição Memorativa do Regimento de Infantaria nº 19 de Cascaes…», anotava-se ser «história digna de se contar» a grande preocupação manifestada em alojar a população necessitada, condigna e até gratuitamente, em colónias de casas económicas.
            O documento, datado de 1906, em que se dá conta das diligências a fazer nesse sentido refere, dentro do espírito ‘racionalista’ vigente, «as nefandas condições de miséria e insalubridade das habitações cubiculares de centenas de locais de Lisboa, chamados ‘pátios’, onde habitam milhares de indivíduos de ambos os sexos, válidos, valetudinários e menores, da mais obscura, miseranda, e desprezada classe da população urbana». Para tais males remediar, a Iniciativa Patriótica propunha-se levar a cabo, com o apoio de todos, a «edificação de colónias prediais económicas, administrativamente zeladas, e intencionalmente beneficiadoras do proletariado embrutecido, e da vegetabilidade humana miseranda; moralizadoras da família, e educadoras da prole; luminosos vestíbulos da civilização, por onde o baixo povo entre seguramente na carreira do trabalho honroso e utilitário».
            Não conseguiu os seus intentos, mas a ideia das colónias manteve-se. Assim, em Cascais, mais tarde e por iniciativa do benemérito Conde de Monte Real, inauguraram-se, a 12 de Março de 1933, as primeiras 12 casas do Bairro Operário José Luís (Monte Real). Orgulhava-se a Comissão Administrativa municipal de terem «todas elas dois pequenos quintais, água encanada e casa de banho, devidamente apetrechada com W. C., tina e chuveiro». E escreve-se «as primeiras», porque o empreendimento – que se estenderia por todo o espaço hoje ocupado pela Pampilheira oriental (2160 x 100 metros) – previa mais de 200 fogos, com amplo largo a meio, uma escola, duas lavandarias, dois parques infantis, edifício de caldeiras, biblioteca e cooperativa. Desse bairro restam hoje 9 casas, à espera de demolição, entre o Hospital CUF Cascais e o Largo dos Bombeiros Voluntários.
            Completamente demolido foi o Bairro de S. José da Bicuda, construído em 1944 por iniciativa do benemérito Joaquim Nunes Ereira («Ereira» porque viera da Ereira, aldeia do concelho do Cartaxo). Destinou-o aos trabalhadores da quinta, mas, para além dos requisitos próprios de uma habitação condigna e de estruturas comunitárias (a igreja, a escola, a casa da malta, o poço), cada família dispunha, de um jardim, à frente; no pinhal próximo, um espaço para capoeiras; e de um talhão de terreno para horta.
            Compreendia-se quão importante era cada família poder gerir a sua auto-subsistência e continuar agarrada à produção agrícola, não apenas por uma questão meramente económica, mas porque se encarava a vida no seu todo e sabia-se que o contacto com a terra, a ocupação da mente com as culturas era uma forma de se viver melhor. ¿Não foi também esse o objectivo fixado quando, nos primórdios da década de 80, se pensou, um pouco por toda a Europa e também em Lisboa e arredores, na criação de «hortas comunitárias»? ¿Não foi essa, mais recentemente, a aspiração dos moradores do Bairro Chesol, na Aldeia de Juzo, ao pugnarem por esse espaço comunitário inaugurado, com pompa e circunstância, a 9 de Abril de 2016?
            Confesso que o incentivo para trocarmos impressões sobre este tema me surgiu da humanitária intenção da Iniciativa Patriótica e também porque um colega teve a gentileza de me enviar o postal que ilustra esta crónica. Integra uma colecção de postais turísticos editada pela conhecida Casa Tomaz, Lda. A minha admiração prende-se com a escolha: ¿poderíamos lá hoje pensar em considerar ‘turístico’, digno de ser plasmado em bilhete postal, o panorama que, seguramente do alto do Hospital dos Condes de Castro Guimarães, se via para norte, a mostrar o Bairro dos Pescadores e o Bairro das Caixas de Previdência, tendo, ao fundo, a Serra de Sintra com o seu habitual barrão estival?
            Não estarei longe da verdade se apontar como razão o orgulho que a população tivera, nessa década de 50 – salvo o erro, me dirão se errei na data –, ao ver construído um bairro de casas térreas, especificamente destinado para as gentes ligadas à tradicional faina piscatória e, mais acima, lotes (estes já em altura) para os trabalhadores abrangidos pela Previdência!
            Um bilhete postal que é um documento no que respeita à evolução urbanística da vila e, sobretudo, um documento do generalizado sentir da população. E estes dois bairros, ao contrário do do sonho do Conde de Monte Real, foram levados a bom termo e continuam firmes, de pé, mau grado os vendavais. Não aquele vento forte de final da tarde que o barrão prenuncia, mas outros (muitos!...) a que, mui corajosamente, se continuará a resistir!...

                                                                       José d´Encarnação

Publicado em Duas Linhas, 28-06-2020: https://duaslinhas.pt/?p=1561

quarta-feira, 24 de junho de 2020

À (re)descoberta

               O confinamento tem aspectos positivos. Amiúde se ouve que deu para se arrumarem gavetas, prateleiras, se deitar fora quanto se acumulara e se verificara, agora, não ter qualquer interesse guardar. Partilham-se – além de centenas de mensagens, vídeos, fotografias, cartoons, um nunca mais acabar! – objectos, roupas que já não servem... E, sobretudo, os que podem partilham alimentos, que a fome bate à porta de muito mais gente do que se poderia supor, mormente da chamada «classe média» que vive apenas do seu ordenado e tem encargos financeiros apreciáveis.
            Quem os tem – garagem ou sótão – decerto por lá passa algum tempo, nessas arrumações. E isso me faz sempre lembrar uma passagem da 4ª carta de D. José Policarpo a Eduardo Prado Coelho, no Diário de Notícias (2003):
            «Muitos de nós fizemos já a experiência de tentar arrumar os sótãos das velhas casas de família, onde as memórias se acumulam, significando que alguém se recusou a deitá-las fora. Um dia meti-me nisso, a arrumar o sótão da nossa casa de família. Numa atitude um pouco iconoclasta, resolvi excluir daquela tradição um conjunto de elementos que amontoei, à espera de as conduzir para o lixo. Nessa tarde chegaram outros dos meus irmãos e, sobretudo, os meus sobrinhos, então crianças e adolescentes. Ficaram indignados, vasculharam minuciosamente o meu amontoado de «lixo» e recuperaram a maior parte das peças rejeitadas.»
            Decerto, houve essa experiência nossa também.
            E redescobrimos o que está à nossa volta. Os vizinhos, que passámos a cumprimentar, pois o vírus nos ensinou a sentirmo-nos mais próximos uns dos outros, ainda que mantendo o distanciamento prescrito. As ciclovias. Os passeios pedonais. Os espaços verdes.
            Um destes dias, fui de abalada pela orla de Cascais ao Guincho. Um mar de gente, a andar de bicicleta, a caminhar, a sentar-se nos bancos estrategicamente colocados ao longo desse percurso.
            Não saí muito, como era de lei; mas penso que as várias zonas do concelho onde se criaram espaços de lazer acabaram por ser bem frequentadas, não apenas para passear o cão (ou passear com ele) mas para apreciar tudo aquilo com que esta magnífica Primavera despoluída nos quis brindar.
            Confinado e obediente, apenas me desloquei pelos arredores de casa: um trecho do vale do Rio dos Mochos, o vale do Ribeiro do Cobre, o Parque da Pampilheira (que é para carros, mas que ora mui poucos tem e regurgita de passarada logo pela manhãzinha) e, de modo especial, todo o espaço ajardinado entre a Rotunda dos Bombeiros e a Rua de Santana. Desse troço final da Av. Raul Solnado (o nome ainda não foi posto na placa, mas será esse, decerto, em continuação da Avenida que vem do Bairro do Rosário, 2ª circular), as bermas encheram-se de flores (papoilas vermelhas e brancas, cardos de filamentosas pétalas lilases, malmequeres…), em colorida sinfonia.
O espaço verde que substituiu prédios abandonados...
A madressilva, que viceja airosa e perfumada!...
O rosmaninho, que nunca pensou estar tão florido e bem cuidado!...
E o alecrim, bem cheiroso também, pronto para alegrar o ambiente!...
            Por outro lado, aquela entrada na Avenida Amaro da Costa, um mimo! Bendita topiaria (essa arte!) que se lembrou de bancos de pedra, de rosmaninho, alecrim, madressilvas, oliveiras, ciprestes, pinheiros mansos… E foram dezenas por dia, garanto, os vizinhos que por ali se passearam e até pararam para uns exercícios de ginástica, respirando um ar que os escapes dos escassos automóveis não lograram contaminar.

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 323, 2020-06-24, p. 6.

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Pedaços da história, pão da nossa identidade

               Não dispõe o nosso Município de uma revista ou boletim cultural. Compreende-se, de certo modo, essa ausência, não apenas devido aos encargos financeiros que poderia acarretar, mas também porque a existência – quase ímpar a nível nacional – duma agenda cultural mensal em papel, a São Brás Acontece, supre adequadamente, com as habituais rubricas nela incluídas, essa necessidade de olharmos para tudo aquilo que acalenta a nossa identidade.
            Acontece, porém, que outra razão se poderia aduzir: é que o nosso mensário Noticias de S. Braz, com o seu vasto leque de colaboradores, continua a preencher eficazmente o que poderia ser considerado uma lacuna.
            Em primeiro lugar, o espaço com que privilegia a poesia popular – e os poetas são aqueles que, bem à sua maneira, nos comunicam os sentimentos que a vida e os acontecimentos do dia-a-dia lhes despertam.
         Depois, porque sobre a história local e regional não falta quem, com saber e bases documentais, nos vai mimando com textos que devem ser religiosamente guardados e tidos em consideração. Aliás, decerto os responsáveis pela Biblioteca Municipal e pelas bibliotecas de associações e entidades disso se devem ter já apercebido e, antes de arrumarem cada exemplar na colecção, terão o cuidado de registar o que ele detém digno de realce para constar nos ficheiros.
           Veja-se, a título de exemplo, a edição de Maio (32 páginas em plena pandemia é obra, quando, um pouco por toda a parte, a imprensa local suspendeu a publicação, à espera de melhores dias!...):
           – Com o seu habitual saber, José do Carmo Corria Martins brindou-nos (p. 25) com o texto nº 10 da série «Há 100 anos», abordando, com muita oportunidade, a pneumónica de 1918, no âmbito das adversidades por que S. Brás de Alportel passou para se afirmar como concelho. Uma página a guardar. Religiosamente, repito!
            – Adérito Vaz é outro dos autores a ter em conta. Desta vez, iniciou uma série que promete, sobre «As carroças no Algarve que o tempo eliminou» (p. 13). Presta-se o título a duas interpretações: o tempo eliminou as carroças ou o tempo eliminou esse Algarve típico? Natural, pois, o apelo a que lutemos contra essas duas possíveis eliminações. Assim, o Museu do Traje já guardou algumas carroças; importa que se faça o inventário das que porventura por aí ainda existam e se procure forma de as reabilitar, porque serão sempre apreciadas em desfiles históricos, por exemplo. E que bonitas que elas são! Não há uma igual a outra!
            – António Cabral continua a olhar a toponímia (p. 4) e faz muito bem, porque as andanças da toponímia mostram as andanças do poder!...
            – Lina Vedes, que evocou «Costureiras e Modistas» (p. 18); João Leal, com a sua simpática rubrica «Livros que ao Algarve importam» (p. 99; Maria José Aresta, em «Memórias que o tempo não apaga» (p. 20); e também João Romero Chagas Aleixo, que iniciou agora uma evocação do Aleixo (p. 24) – constituem alguns dos outros autores que dão cartas no âmbito da preservação da nossa identidade cultural.
            Amigo e Senhor Director, que não lhe doam as mãos nesta orientação tão sábia!
                       
                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Noticias de S. Braz [S. Brás de Alportel] nº 283, 20-06-2020, p. 13.



quinta-feira, 18 de junho de 2020

«O Menino Jesus parecia uma trouxa de ovos»

             Como historiador – ensinaram-me os Mestres – devo respeitar as mentalidades e procurar identificar, em cada época, quais os usos e costumes, compreendê-los e explicá-los.
            No tempo dos Romanos, o escravo até podia exercer funções importantes como a de villicus (o caseiro da herdade, diríamos hoje), médico, professor… E com o pecúlio que angariasse podia facilmente comprar a sua liberdade. Aquando dos Descobrimentos, houve a mão-de-obra escrava, nas condições que se conhecem. A escravatura do século XXI tem outras versatilidades – oh! se tem!... Compra-se e vende-se por milhões! Paga o escravo para ser metido num escaler, na esperança de que a Sorte o proteja!...
            Assim, a Arte. Carece de ser integrada no tempo que a viu nascer, eco – como é – de íntimas pulsões, mensagens de ternura e de revolta, de intervenção crítica ou de apaziguamento…
            Daí que eu tenha puxado a título a opinião exarada pelo conceituado Miguel Torga, quando visitou, a 30 de Maio de 1949, uma exposição no Museu Nacional de Arte Antiga:
            «Visita à Josefa de Óbidos, que recebe durante alguns dias numa das salas das Janelas Verdes. Grande e penosa desilusão! A senhora fazia crochet com os pincéis. Que falta de imaginação, que miséria de desenho, que geleia, tudo aquilo! […] Enquanto um baboso se extasiava diante dum menino Jesus rechonchudo, que parecia uma trouxa de ovos, raspei-me.
            Raça de portugueses que não dá um pintor que se aproveite!» (Diário V, Coimbra, 1951, p. 23-24).
            Compreende-se a frase de Miguel Torga, na época em que a escreveu, de acordo com a sua mentalidade na altura. Perante a obra de arte, a primeira reacção é sempre emotiva: gosta-se ou não se gosta; transmite-nos uma mensagem de beleza ou não. Vem depois a repulsa ou a tentativa de compreensão, de enquadramento na época. A Beleza é eterna; a sua apreensão, subjectiva – não fora verdadeiro o adágio «quem o feio ama bonito lhe parece»!

            Caso a pandemia não nos houvesse atacado, estaríamos hoje a admirar em Cascais a obra religiosa de Josefa de Óbidos (1630-1684), porque a Fundação D. Luís I programara essa exposição para Junho. Fica adiada para inaugurar a 8 de Dezembro; mas valerá a pena dedicar-lhe desde já algumas linhas, mais não fosse porque quem vai à matriz de Cascais lá pode admirar oito dos quadros mais famosos da artista: Seis evocam cenas da vida de Santa Teresa d’Ávila, «A transverberação de Santa Teresa», de 1673, por exemplo; os outros dois são: «A Sagrada Família», de 1672, e «O Menino Jesus Salvador do Mundo».
            Segundo Vítor Serrão, as telas da matriz cascalense terão procedido do extinto Convento dos Frades Carmelitas de Santa Teresa de Jesus; segundo outros, poderão ter sido pintadas para o vizinho Convento dos Carmelitas Descalços de Nossa Senhora da Piedade (actual Centro Cultural de Cascais)! Seja como for, para um ambiente religioso, sereno, de reencontro com imagens envoltas num halo sagrado. Veja-se esta Nossa Senhora de Menino ao colo. Atente-se no gracioso pormenor do jorro de leite do úbere seio nu de Maria para a boca do Menino!...
            Podem discutir-se a técnica pictórica usada; os cânones artísticos que a pintora seguiu; o concreto realismo da figuração ou o seu carácter simbólico… Mas, no fundo, o mais importante não é pararmos uns instantes a admirar uma obra de arte?
            Fica a admiração aprazada para Dezembro na Casa das Histórias Paula Rego!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em https://duaslinhas.pt/?p=1225, a 17-06-2020.

terça-feira, 16 de junho de 2020

Lua Cheia!

            Antes de fechar a porta da rua, não resisti e chamei a Ana:
            – Anda ver como está bonita a lua cheia esta noite!
            Viu, não ligou grande importância; eu quedei-me mais uns largos segundos. Não fui apenas eu que mudei com o forte escaldão que o vírus nos está a dar, foi também o firmamento, que mais se libertou de poluições e, assim, melhor nos permite ver este luar, que, contava minha avó, atraía lobisomens e fazia almariar os humanos. E o homem que levava eterno molho de silvas às costas, por não ter guardado o domingo, dia do Senhor. Eu sabia agora serem sombras das montanhas lunares; mas, em miúdo, acabava por ter pena do condenado.
            E esta atenção maior ao que nos rodeia é jeito que ora se pega. Meu amigo Zé Rocha deu em mostrar, no Facebook, recantos do seu jardim. «Adoro as flores do campo», escreveu-me ele, «apanho as sementes e lanço-as no meu jardim». A muitos quilómetros daqui, em Saragoça, Manolo, septuagenário como nós, também outro dia se deixou fotografar, de barba patriarcal, junto de mui viçoso canteiro de… alfaces!...
            Para que nos havia de dar!...
            Ia eu nestes pensamentos quando, antes de aconchegar a cabeça na almofada, peguei no livro de cabeceira «Parar», de David Kundtz (Sinais de Fogo, Lisboa, 2004). E li:
            «Os cidadãos da viragem do século não têm tempo para parar e cheirar as rosas» (p. 49).
            «Distraídos, perdemos momentos importantes. Passam por nós e nem sequer damos por eles: o telefonema de um velho amigo, a visão momentânea de uma lua cheia através das árvores sombrias, a observação ou pergunta de uma criança, a luz e a cor de um fim de dia outonal – tudo nos passa ao lado, sem intercepção, sem registo, sem utilização, e finalmente perdido. Nem sequer reparamos que não reparámos» (p. 137).
            Parece-me que estou a compreender porque é que, neste últimos tempos, há tanta fotografia de pôr-do-sol e tanto novo olhar para as flores e porque é que eu parei diante do bem vistoso e brilhante plenilúnio… Consciencializamo-nos de que, afinal, vale a pena saborear o momento, não reclamar contra a aparente lentidão do computador quando não obedece de imediato ao comando que lhe demos… Segundos que, pouco a pouco, vão deixar de ser eternidades... 

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 778, 15-06-2020, p. 12.


quinta-feira, 4 de junho de 2020

A malva

            – Temos de cortar aquela malva, não achas?
            – Porquê?
          – Está grande de mais, abafa a roseira pequena. E, depois, para que serve? Não nos apetece lavar ninguém com água de malvas nem para curar infecções; já não estamos em maré de atirar inimigo às malvas; não carecemos de lhes secar as folhas para chá, porque Malveira, a povoação a que deram nome, não é aqui!
            – Sim. Vou apará-la, mas não a arranco. Gosto das flores dela, sabes?
            Observei melhor. Quem diria? Cada uma das suas cinco pétalas, de raios violáceos, tinha na ponta uma chanfradura! À vista normal, apressada, tal seria resultado – diríamos – de roedela de bicho daninho, lagarta nociva. Não era! Requinte estético duma Natureza a surpreender-nos sem cessar!
            E o gracioso recorte das folhas palmadas? Sim, lembro-me de ter aprendido em Botânica que folhas assim, em jeito de palma da mão e com cinco dedos eram palmadas e palminérveas.
            Só o vírus e a quietude por ele proporcionada, a exigir agendamento de ritmo me permitiram, parar, sem pressa, na admiração de singela malva, doutra forma despercebida por completo. As flores feneceriam sem que eu nelas reparasse; as folhas – que deslumbrante desenho o das nervuras!... – acabariam por perder este verde forte, amareleceriam, tombariam murchas e finar-se-iam, incógnitas, no meio de bem desagradável lixo de jardim.
            Podem estar descansadas, amigas! Aí completarão o ciclo de vida. “Resto inorgânico indiferenciado”, sim; mas, se lhes for possível ter consciência, poderão ufanar-se perante as demais:
            – Sabes? Um dia, o senhor do jardim onde eu vivi, reparou em mim, achou-me bonita e até fez uma crónica a chamar a atenção para o invulgar recorte das minhas pétalas, imagina!...
            Sinto-me de missão cumprida!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 777, 01-06-2020, p. 13.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

O revoltoso que era de Alcabideche!

            Desafiou-me Carlos Narciso para com ele colaborar neste seu espaço de Duas Linhas, a de Cascais e a de Sintra.
            Aceitei de bom grado, na medida em que me será possível partilhar, desta sorte, informações e despretensiosos comentários acerca da História, das Artes e do Património Cultural, referentes sobretudo ao território cascalense.
            Há sempre surpresas, outros olhares, novidades ou antiguidades que porventura haviam escapado e nos ajudam a fomentar comunidade, a revitalizar memórias e identidade.

            Desta feita, a inesperada surpresa veio do Brasil. O professor Luciano Figueiredo, do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (Niterói), escreveu à Junta de Freguesia de Alcabideche a tentar saber da genealogia e eventuais laços familiares conhecidos de Filipe dos Santos Freire (1678-1720).
            Tivera acesso ao seu registo de nascimento, a que também acedemos depois, que reza assim (actualizo a grafia):
            «Aos quinze dias do mês de Janeiro de 1678 baptizei e pus os Santos Óleos a Filipe, filho de João Vicente e de Maria Ferreira de Alapraia. Foram padrinhos o Pe. Sebastião Alves [e Isabel (?) Costa] de Alapraia».
            Assina o Padre Cura Duarte Pinheiro.
            E que interesse haveria neste alcabidechense?
           É que estão a ser programadas para o corrente ano as comemorações dos 300 anos da chamada «Sedição de Vila Rica» (Vila Rica era, então, o nome da actual Ouro Preto, em Minas Gerais), de que Filipe dos Santos Freire foi um dos cabecilhas.
            Havia sido, naturalmente, mal vista pelos potentados locais a lei segundo a qual aí vinham a ser oficialmente criadas casas de fundição do ouro em pó. Minerador, Filipe dos Santos Freire assumiu-se como o principal cabeça dos amotinados e acabou por ser condenado à pena capital. Enforcaram-no, arrastaram-lhe o corpo pelas ruas da vila e esquartejaram-no, após julgamento sumário perpetrado por uma junta formada pelo governador D. Pedro Miguel de Almeida Portugal, Conde de Assumar, e pelo ouvidor local.
            Ora aqui está um herói a cuja naturalidade ainda se não dera a atenção devida!

                                                           José d’Encarnação

Publicado em https://duaslinhas.pt/?p=856, a 31-05-2020.