quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Pôr a boca no trombone!

             Sentimos isso. Quando o maestro Nikolay Lalov aponta para o fundo da Orquestra Sinfónica, para os metais, sai de lá um som forte, qual grito de alerta ou enorme explosão de alegria, a abafar por instantes a sussurrante melopeia dos violinos.
            Vem daí a expressão popular «pôr a boca no trombone». Como num trecho musical, o trombone só aparece para dar forte, assim, quando alguém se decide a pôr a boca no trombone é porque se cansou de ciciar, de cantar ao ouvido, de mexer os cordelinhos à puridade.
            Muitos exemplos há, recentes, de atitudes dessas.
            Puseram a boca no trombone as mulheres (e, agora, também os homens) vítimas de assédio sexual. Houve já quem, mui judiciosamente, pôs água na fervura, nem tanto ao mar nem tanto à terra. A verdade não terá sempre exactamente as cores com que a pintam e ainda outro dia, ao jantar, um amigo meu fez uma carícia terna no rosto da esposa de um amigo comum, que estava presente, e todos, à uma, em risota:
            ‒ Cuidado, que isso é assédio!...
            Acho, porém, que, por exemplo, no domínio da chamada «violência doméstica», muito haverá ainda por fazer, porque não é só a pancadaria que conta, a violência psicológica será muito mais frequente do que se pensa, aos mais variados níveis. A necessidade absoluta, custe o que custar, de atingir objectivos previamente determinados, sem olhar a parâmetros circunstanciais que os poderão dificultar, não será violência psicológica que deixa de rastos, quotidianamente, tantos e tantos funcionários?
            Quando exerci funções de responsabilidade no Jornal da Costa do Sol, repetiam-se cenas – que são comuns no quadro da Comunicação Social, sobretudo local – de ‘má disposição’ por parte de autarcas, por se ter posto o dedo na ferida de uma situação há muito por resolver. Aqui d’el-rei, «vocês podiam ter-me contactado, que eu esclarecia!». Pois. Fizéramos diversas diligências e não havia alguém disponível para esclarecer: pespegou-se a mazela no jornal e… os senhores ficaram ofendidos!
            Apeteceria recordar o que estipula o artigo 39º do Código do Procedimento Administrativo:
            «1. Toda a correspondência, designadamente sugestões, críticas ou pedidos de informação cujos autores se identifiquem, dirigida a qualquer serviço será objecto de análise e decisão, devendo ser objecto de resposta com a maior brevidade possível».
            E reza o ponto 2: «Sem prejuízo do disposto na lei, no prazo de 15 dias deve ser dada resposta na qual seja comunicada»: a decisão final tomada, a informação intercalar ou «a rejeição liminar da comunicação apresentada».
            Exemplo bem recente é o da Escola Superior de Dança. Fartaram-se os responsáveis de enviar ofícios, e-mails… Fartaram-se os alunos, fizeram greve, convocaram a Comunicação Social e… multiplicaram-se depois as reuniões, agora já havia tempo, para se atamancar uma solução.
            E estoutra questão: o da iminente degradação do espólio arqueológico subaquático. Multiplicaram-se as chamadas de atenção e… nada! Numa reunião de arqueólogos, uma técnica da Direcção-Geral do Património Cultural apresentou moção de censura, que foi aprovada por larga maioria. Resposta da Direcção-geral: processo disciplinar! E o mais interessante é a Direcção-geral, perante a acusação de ter tomado uma atitude claramente antidemocrática, ter vindo a terreiro afirmar que era mentira, que não levantara o processo por isso, quando eu isso claramente lera no auto. Fui publicamente chamado de mentiroso, mas não me ralei nada com isso, porque as acções ficam com quem as pratica.
            Estou a redigir esta crónica em Londres, onde, nos transportes públicos – e cá toda a gente privilegia o transporte público –, se lê, em grandes letras, nos painéis digitais: «Se verificar que algo não está bem, não hesite em contactar-nos». Recordo que, mesmo no Brasil, também nos transportes públicos e por toda a parte, se apela à participação do cidadão na denúncia de situações atentatórias da dignidade do Povo.     Portanto, bem faz o maestro em chamar, de vez em quando, os metais. Bem faz, no dia-a-dia, quem, corajosamente, no cumprimento do seu dever de cidadania… põe a boca no trombone!
                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal [Cascais], nº 219, 31-01-2018, p. 6.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

O pessoal do Zambujeiro não quer ficar atrás!

             Novamente se fez sentir o dinamismo imparável do Grupo de Teatro Amador do Zambujeiro.
            Povoação recatada, ali plantada como que num requebro da serra de Sintra, com Janes a espreitá-la de norte e Murches a guardá-la pelo sul, e, em volta, os matos que ecológica e mui saudavelmente persistem para lhe emprestar bem sadios ares, poder-se-ia não dar nada por ela. Mas tem que se dar! E lá está o pessoal do Grupo Desportivo e, de modo especial, o seu Grupo de Teatro Amador, que, sob a incansável batuta de António Chapirrau (este homem não pára!...), de vez em quando nos brinda com mui excelente ar da sua graça.
O cartaz
            Está em cena desde o dia 20, aos sábados, a revista «Não consigo enfiar!...». Logo o título, pleno de ambiguidade, sugere derrapagem para a malandrice. Afinal, porém, a conversa é entre duas senhoras já de alguma idade que se entretêm a costurar, até que uma, distraída, deixa escapar a linha e… quem é que a ajuda a enfiá-la no buraco da agulha? É o cabo dos trabalhos!...
            São onze quadros em cada parte, sempre eivados de crítica saborosa aos costumes e onde se retratam as situações picarescas do dia-a-dia: o marido que só quer ver futebol e nem repara como, de um momento para o outro, a mulher se alindara a rigor; a bem sedutora vendedeira, de porta em porta, de sofisticado detector de mentiras; a moçoila que se aventura a namorar com o idoso rico (sabe-se lá porquê tanta paixão!...); a gaguez a propiciar inoportuno corte de sílabas em palavras traiçoeiras… Tempo também para se ouvirem canções de todos os tempos: a Maria Papoila, Os Marinheiros… E a criança que sabe mostrar ao político que, se calhar, ainda há muito para fazer na defesa dos direitos alheios, das crianças nomeadamente.
            E terminamos em coro a proclamar, em marcha, que a revista do Zambujeiro faz «do feio menos feito», «do bonito mais bonito» e, assim, «esta aldeia fica só bonita, só bonita!».
            Avelino Cupido, Beatriz Santos, Carlos Reboca, Inês Ramos, Isabel Silva, Joana Lopes, Laura Sobral, Margarida Silva, Maria João Baleia, Rosa Rodrigues, Susana Cupido e Filipe Santos são os actores. José Sobral encarregou-se da luz e do som; Carlos Rodrigues é o contra-regra; Paulo Silva, o carpinteiro de cena; Carlos Reboca e Avelino Cupido são também assistentes de palco. A caracterização deve-se a Sílvia Silva. Cenários gentilmente cedidos pela colectividade de Murches.
            No final, o autor e ensaiador louvou o entusiasmo de todos e agradeceu a casa cheia. No fundo, porém, somos nós que lhe agradecemos a sua enorme dedicação, porque o teatro amador constitui, na aldeia, não há dúvida, um motor de progresso cultural e social incalculável.

                                                                       José d’Encarnação

Fragmento de um molde para doces identificado na villa romana de Freiria, em Cascais.

         Guilherme Cardoso, um dos arqueólogos responsáveis pelas escavações levadas a efeito na villa romana de Freiria, em Cascais, acaba de publicar, na revista Al-madan Online (tomo I do volume 22, disponível na Internet a partir de sábado, 27 de Janeiro) a identificação de uma peça cerâmica encontrada na campanha de 1988.
A parte externa do molde
            Trata-se do fragmento de molde de cerâmica «de pasta siliciosa vermelha, manchada exteriormente de branco, características que remetem para uma origem do molde em olarias do Norte de África».
            Apresenta internamente uma curiosa decoração: «o negativo da parte posterior esquerda de um leão, com cauda ligeiramente enrolada», uma perna de «músculos salientes devido ao esforço, como se estivesse a saltar em corrida». Na parte da frente, «a representação das almofadas dos dedos da pata anterior esquerda. Por cima da anca, uma lança de ponta afiada. Por baixo, outra lança, paralela ao corpo do leão, de cabo torneado e com ponta de aletas aguçadas a trespassar-lhe a pata traseira».
Reconstituição hipotética do molde
completo.
            Acrescenta o investigador que estamos perante uma «forma para fabricar pão doce, que era usado habitualmente para oferecer aos espectadores que assistiam aos jogos nos circos, anfiteatros e teatros». E se as representações podem aludir a cenas de circo, de anfiteatro, teatrais, eróticas ou de naturezas mortas, um outro molde para pão doce achado em Mérida, capital da Lusitânia, tem também um leão deitado, «revelando a importância que este animal tinha na cultura romana».
            Assinala ainda Guilherme Cardoso que «até ao momento, este é o primeiro exemplar do qual existe referência» no território actualmente português, o que mostra, mais uma vez, a singularidade da villa romana de Freiria.
            O texto completo pode ser lido em:
  
                                                                       José d’Encarnação
 

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Será que as feiras têm magia?

             Criou el-rei D. Dinis, reza a História, as feiras francas. Francas, porque nelas se não pagava para expor os produtos e os vender ou trocar. Pretendia o monarca incrementar o comércio e, além disso, fomentar o convívio entre as gentes, que, vindo à feira, sabiam das novidades, trocavam impressões, aumentavam os seus conhecimentos, até porque, de vez em quando, lá aparecia um produto novo a atrair as atenções.
            Lembro-me que minha mãe reservava a quarta-feira para ir à praça na vila. Apanhava a carreira e por lá passava a manhã. Chegava quase à hora de almoço, de alcova carregada de legumes e peixe fresco. Não me parece que lá comprasse mais barato, regatear ela sabia, mormente com as vendedeiras já suas conhecidas, a menina Sara, por exemplo, a quem ela e meu pai compravam peixe desde que se haviam instalado na aldeia. Creio, porém, que o mais importante para minha mãe não eram tanto as compras, era o ambiente, as vizinhas e as amigas que por lá encontrava e sabia de parentes e conhecidos, a enxaqueca de um, a operação do outro, a Felisberta que ia casar, a Joquina que pró mês que vem teria criança… Da praça se desprendia, pois, uma certa magia, que a reconfortava e lhe dava ânimo para mais uma semana de azáfama.
            Viseu teve feira franca, dizem, que viria a dar lugar, séculos mais tarde, à tradicional Feira de S. Mateus. E Alberto Correia, com o livro infantil «Matilde e o Chapéu de Chuva Azul», em boa hora nos proporcionou a nós e, de modo especial, aos mais pequenos, uma viagem mágica a esse mundo inesperado e buliçoso. Já é edição de 2012, patrocinada pela Expovis, Promoção e Eventos, Lda., a entidade organizadora do certame; mantém, contudo, toda a sua actualidade, pela forma esbelta como, através de uma narrativa singela, bem ilustrada pelas fotografias de Rowan Shcelten, sabiamente emolduradas pela maquetização de Sónia Ferreira, retrata uma realidade feliz: o carrossel, o algodão doce, os balões… Matilde não reparou noutros vendedores nem noutros produtos – bons apenas para os adultos. Saída do sótão das coisas velhas levada pelos ares pendurada num velho guarda-chuva azul, só o Tio Chico, que os demais chamavam tolo, a vira e se deu conta dessa viagem. E, no final, quedamo-nos a pensar quanto é importante o sonho. Como sabiamente nos ajuda a compreender melhor a realidade!...
                                                                                  José d’Encarnação

Publicado no Renascimento (Mangualde), nº 723, 15 de Janeiro de 2018, p. 11.

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Os palcos de manifestações culturais

             Os museus cascalenses e o Centro Cultural geridos pela Fundação D. Luís I constituem habitual palco de mui variadas manifestações culturais, desde reuniões científicas a exposições de arte e a concertos. Rara será a semana em que o Centro Cultural não apresente novidades e a Casa Verdades de Faria, vocacionada para a divulgação do nosso património musical tradicional não lhe fica atrás, honrando amiúde a memória de Fernando Lopes-Graça, cujo espólio, assim como o de Michel Giacometti, em boa hora lhe foi confiado.
            Também as salas das juntas de freguesia rivalizam pela apresentação de exposições, habitualmente não divulgadas, privilegiando artistas seus fregueses, o que é de muito louvar.
            Mantém-se, porém, o Casino Estoril como o grande espaço em que, a par do jogo, à Cultura vem sendo dado lugar de relevo.
            Não falo já do espectáculo da passagem de ano, abrilhantado pelos irmãos Feist e por Susana Félix, a que, a dado momento, vieram juntar-se José Cid e Paulo de Carvalho. Música para começar na dança o novo ano, ainda que tenha sido mínimo o espaço para quem desejasse desentorpecer as pernas.
            Ao jantar, degustaram-se acepipes a que os dizeres da ementa aliciavam: «tornedó de novilho perfumado com foie gras» e «molho de morilles com cepes secos», na carne, «esfera de chocolate negro com recheio de pistácio e morango», na sobremesa. «Cepes» é um galicismo que designa os boletos, uma espécie de cogumelos; morilles são cogumelos também, do género morchella, silvestres, raros e muito apreciados por renomados chefes de cozinha. Dir-se-ia, pela amostra, que estávamos a voltar aos finais do século XIX e princípios do XX, em que a culinária francesa dava cartas, as ementas eram «menus» e, nos hotéis, havia o «scenseur… Também nesse domínio a França perdeu o pé!
            Voltando ao Salão Preto e Prata, importa referir que, mais uma vez, foi cenário, na tarde do domingo, 7, do Concerto de Ano Novo, pela Orquestra Sinfónica de Cascais, dirigida pelo maestro Nikolay Lalov, o grande dinamizador das artes musicais no concelho.
O momento inicial: a primeira violino dá o tom; cada naipe vai respondendo
e, pouco depois, durante segundos, é a algaraviada de sons...
            Desta feita, o mote foi o Amor, a Paixão; e o maestro procurou explicar nesse âmbito a escolha do reportório que fizera, consoante os amorosos enleios, desde a primeira abordagem – e aí ouvimos o «Convite para a Dança», de Carl Maria von Weber (1819), na orquestração de Hector Berlioz (1841). A soprano portuguesa Rita Marques (natural das Caldas da Rainha) deliciou-nos a cantar «Eu quero viver», de Charles Gounod, de que neste ano se celebra o bicentenário do nascimento. E os enleios prosseguiram, na brincadeira da polca «Tik-Tak», de Johann Strauss (filho), que também divertiram os músicos; até que o casamento se consumou e ouviu-se, por conseguinte, a Marcha Nupcial, do «Sonho de uma Noite de Verão», de Félix Mendelsohn.
            Na 2ª parte, já na vida a dois, embora o maestro tenha falado de que o autor de um livro lido na sua juventude escrevera «E depois casei e a minha biografia acabou!», o certo é que fomos imaginando amorosas peripécias: no ‘intermezzo’ das 1001 noites (novamente J. Strauss); na valsa sentimental de Tchaikosky; na jovial canção de Adele (Adele’s Laughing Song), de J. Strauss, com que Rita Marques superiormente nos brindou e a orquestra se esmerou deveras. E terminou-se pelo imprescindível passeio romântico pelo Danúbio Azul… E os aplausos, de pé, do público que encheu o salão ‘obrigaram’ o maestro a três números mais.
            Houvera, porém, surpreendente aperitivo no átrio do Casino: a bonita exposição das fotografias (de 120 fotógrafos) seleccionadas no concurso Bussaco das Quatro Estações. Um elegante convite a que, embevecidos pelas belezas que essas objectivas tão oportunamente souberam captar – do património paisagístico, da fauna e da flora, do património arquitectónico e histórico –, os passantes parassem uns minutos e, quiçá, se deixassem maravilhar por uma serra plena de sedução.
            E não se ficou por aqui o palco cultural do Casino, dado que, na quarta-feira, 10, no Salão Preto e Prata se apresentou o musical Simone de Oliveira, em que intervieram a própria Simone, o FF, José Raposo, Maria João Abreu, Marta Andrino, Pedro Pernas, Ruben Madureira, Salvador Nery, Sissi Martins e Soraia Tavares. O tributo a uma Artista!

                                                                                  José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal [Cascais], nº 216, 17-01-2018, p. 6.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Animais de companhia

            Enterneceu-me, como certamente a muitos dos nossos leitores, a circunstanciada crónica que, ao seu jeito habitual, Vítor Barros dedicou, na passada edição (pág. 4), ao seu cão Pantufa, que «se foi embora».
            Conta miudamente o que foi a sua longa vida, mormente a dos últimos tempos, em que «ficou coxo, quase cego, quase surdo». Ternura é o halo que da sua prosa mui delicadamente se evola. Ternura sua pelo Pantufa, ternura do Pantufa para com toda a família, sobretudo para a mãe do Vítor após a morte do marido.
            E ia eu pôr, como título desta minha crónica, «Animais, nossos amigos» ou, como no título do livro de Alan Devoe, «Our animals neighbors» (McGraw-Hill, Nova Iorque, 1953), que requisitei, quando estudante, na Biblioteca Americana, «Os nossos vizinhos, os animais». Na verdade, só quem partilhar a vida com um cão ou outro animal de estimação compreende bem o que Vítor Barros descreveu.
            Passeávamos, no passado dia 18 de Dezembro, nas Ramblas, em Barcelona, quando a Ana me chamou a atenção para um sem-abrigo, que dormia abraçado a um cão como o nosso labrador, singela manta a cobri-los. Também essa cena nos enterneceu. E ficámos a pensar nas vezes em que o sem-abrigo até era capaz de passar fome para que o seu amigo a não passasse.
            Foram dados alguns passos já, a nível político, para ajudar quem tem no seu animal a presença diária, a única presença diária, nomeadamente na velhice. Mais importaria fazer, atendendo ao insubstituível papel que o cão ou o gato desempenham no lar, inclusive do ponto de vista psicológico, como elemento apaziguador de emoções. Já não falo nas CERCIs, onde, cada vez mais, a presença de um cão devidamente educado exerce ímpar função pedagógica. Os políticos – também eles têm cães e/ou gatos, aposto! – deveriam pensar nisso.
            Não apresento condolências a Vítor Barros, porque o Pantufa cumpriu a sua missão. Felicito-o, mais uma vez, por – com um exemplo vivo e sentido – ter chamado a atenção para uma indesmentível realidade.
                                                           José d’Encarnação

 
Publicado em Noticias de S. Braz [S. Brás de Alportel] nº 254, 20-01-2018, p. 17.
 

domingo, 14 de janeiro de 2018

Acerca de «As Pessoas de Minha Casa», de Júlio Conrado

             Há sempre a tendência de se catalogar um livro. De um modo geral, porém, a classificação aponta num sentido e, amiúde, o livro é mais do que isso, por o autor nele fazer reflectir muito da sua personalidade e da sua experiência de vida. Autobiografia? De certo modo, sim. Mesmo que o homem fora uma ilha – contrariando a peremptória afirmação em contrário, de John Donne – ou até mais ainda nessa circunstância, parte significativa de si estaria lá.
            Não é autobiografia, no sentido próprio do termo, o romance As Pessoas de Minha Casa, que Júlio Conrado publicou (Âncora Editora, Lisboa, 3ª edição, Junho de 2017); mas muitas das páginas hão de ser entendidas como tal. Inclinar-me-ia a catalogá-lo – mania de leitor, já se vê! – como romance de costumes.
            Nascido em Olhão, a 26 de Novembro de 1936, Júlio Conrado acompanhou os pais, ainda criança, para Carcavelos, numa época em que o Algarve não oferecia risonhas condições de vida e a Costa do Sol, bem vizinha da capital, se imaginava, para alentejanos e algarvios, como recheio de boas oportunidades. Tinha, pois, oito anos quando acabou a II Guerra Mundial e foi em Carcavelos que passou meninice e juventude e o mundo dos anos 50, em que prestou serviço militar e começou a encarar a vida profissional. A loucura dos anos 60 apanhou-o já homem feito e, pela Revolução de Abril e anos subsequentes, era já o escritor, o crítico literário, revelando a sua larga propensão para a escrita, que nunca haveria de largar, independentemente da ocupação profissional.
            É As Pessoas de Minha Casa a história da sua família? Não. «Casa» entendo eu como «ambiente», «horizonte em que me fui embrenhando». Estamos, todavia, perante uma 3ª edição. E um dos aspectos que mais pode intrigar o leitor á a circunstância de haver nessa edição «palavras somadas e suprimidas». As suprimidas visaram dar maior fluidez e propriedade ao discurso; as somadas derivam do facto de uma das personagens que se supôs retratada nas anteriores edições se ter rebelado num manuscrito a que o autor, por bom preço, acabou por ter acesso em leilão e, devido a isso, forçado se viu a incluir pormenores olvidados ou voluntariamente omitidos, nomeadamente da vida íntima.
            A «parte primeira» (p. 11-86) tem por título «Guerra, caça e amores, por um prazer cem dores»; a «parte segunda» (p. 87-151) agarra o título do livro todo e chama-lhe o Autor «romance intercalar». Há uma «parte terceira» (p. 153-228), de mui significativa temática, «Oração aos restos». E os restos são o necessário «regresso à Vila das Quintas» (Carcavelos), a paisagem da infância e da juventude, com «paragem no Bairro de Alcântara». No «Epílogo» (p. 229-230), retomamos o contacto com o Eurico, a Judite, o Alfredo, o Aurélio e a Vanda, de que nós já nos esquecêramos, por estarem seus nomes consignados nas intrigas amorosas, políticas e interesseiras vividas na parte primeira, nos conturbados meses que se sucedem à Revolução de Abril. O «Verão quente» de 1975 e suas sequelas na vida familiar e afectiva - é neste aspecto pessoal que se insiste, mais do que em considerações político-partidárias, apenas afloradas aqui e além.
Rapazes em Carcavelos, na década de 40
do século passado. O mais alto é o autor.
            Os capítulos têm nome. Resistiu o Autor a essa tendência, dir-se-ia surrealista, eu chamo-lhe de preguiçosa, de os identificar com números, sem palavras, como quem tem medo de se expor ou pensa que o leitor deve entender por si o que está escrito sem necessidade de antolhos. Sou contra. Há que sugerir, arriscando mesmo, eventualmente, a recriminação do leitor. E Júlio Conrado não hesitou e deu nomes bem sugestivos.
            Adequa-se cabalmente a linguagem a cada um dos cenários. E essa constitui, sem dúvida, a grande virtude do escritor, a demonstrar uma maturidade invejável. Dificilmente haverá quem não se deixe levar pela narrativa, surpreendido com o rigor vocabular, que representa, a meu ver, um dos grandes aliciantes formais do romance.
            Transcrevo uma das passagens iniciais do capítulo «Olhe, botão»:
            «Noutro tempo, ao garanhões davam às chantras um xis de gorja para ouvirem delas a história de como se tinham metido no putedo. Agora andavam elas ao avio dessa mercadoria. Preocupadas com as melancolias dos clientes» (p. 14).
            Ousadia minha será; estas linhas poderão, no entanto, prenunciar o que se encontrará ao longo do livro:
            ‒ Em primeiro lugar, a crueza realista com que abertamente se abordam as questões da sexualidade, desde as secretas manifestações do seu despertar, ainda na meninice e na adolescência (namoricos, apalpões, descobertas físicas, clandestinas espreitadelas…) até à desbragada conversa de caserna, sem tabus.
            ‒ Depois, o referido perfeito domínio da terminologia adequada a cada momento; neste caso, a gíria do que se poderia designar de submundo – os garanhões, as chantras, a gorja, o putedo…
            ‒ O sintomático aproveitamento do instante para lançar luz, discreta mas certeira, sem alardes filosóficos, a um generalizado estado de espírito: «as melancolias dos clientes»…
            ‒ Por fim, como mais adiante se verá, a ancestral reminiscência do vocabulário algarvio, patente aqui no uso espontâneo de «avio».
            Não resisto, por isso, a não transcrever o início do primeiro capítulo da parte terceira, intitulado «zona anterior/interior»:
            «Recolho as vitualhas da mesa da experiência. Restos que valem o esforço de uma oração final em seu louvor. Um remorso de ponta de navalha em riste leva ao balanço dos horrores e dos cromos da era juvenil. Nesta hora frágil. Enquanto aguardo o momento da grande explicação entre os deuses e os demónios sobre o meu destino» (p. 155).
            Quem há que não reconheça aqui, no curto martelar dos períodos, a frase meditada, a palavra prenhe de sentido, na mescla entre a imagem seleccionada e o apontar claro de um sentimento expresso?
            Ecoam-me na primeira frase, sem querer ou não, os versos, salvo o erro, de Guerra Junqueiro: «Pois quem come as vitualhas leve também as migalhas que sobram da nossa mesa!».
            Aqui, a mesa é a experiência, um vocábulo que o Autor usa, nesse instante, quiçá pela primeira vez, avesso, como se proclama, a elucubrações metafísicas. Mas de experiência trata o livro. Da vida. Por isso a quer louvar. E vem-lhe à mente um outro termo com o qual não está familiarizado, creio. Saiu-lhe. Oração. Pode ser prece, pode ser discurso. Ambiguidade propositada. E a palavra ‘final’ deu o mote. Tempo de balanço. Da era juvenil ocorrem-lhe apenas (parece) os horrores e os cromos. Suspeitamos que ‘cromos’ terá duplo significado: o da gíria, o figurado, personagens estereotipadas, estáticas, vazias; e o concreto, dos álbuns de colecções – jogadores de futebol, raças humanas, artistas de cinema… “Horrores” é, por seu turno, palavra forte, a denunciar o que foram, na verdade, os anos da guerra e as amarguras por que então se passou.
            Outra palavra lhe surgiu, também ela incomum na sua prosa: remorso. Não terá, decerto, o sentido moral, de contrição por acções menos éticas praticadas; igualmente não o vejo num lamento, porque, em circunstâncias idênticas, o mesmo todos nós voltaríamos a fazer o que se fez, porque assim era preciso. Será, pois, um aguilhão que dói, a tal «ponta de navalha em riste»…
            Não perpassam pelos escritos de Júlio Conrado sentimentos religiosos. Transposta, porém, a fronteira dos oitenta, o de trinta e seis é capaz de sentir, agora, a perspectiva de uma «hora frágil», enquanto aguarda «o momento da grande explicação entre os deuses e os demónios» sobre o seu destino. Bem saboroso, o voluntário eufemismo; indisfarçada ironia, a embrulhar sentimentos. Aliás, desse tom se reveste o que vem a seguir:
            «Quero ir decente desta para melhor, de espírito enxuto, alma polida, aspecto apresentável. E com a crónica intacta, sem rasuras, do que fui enquanto por cá andei. Os deuses incitam-me ao asseio, à elegância e à boa escrita, sempre é cerimónia única na vida de uma pessoa, ir de camisa engomada e vestir o fato dos domingos é obrigatório para que nela, a cerimónia, haja um mínimo de classe» (p. 156).
            E é nesse momento – dizem – que o regresso às origens se antoja inevitável também:
            «Havia na família gestos de a-ver-o-sol, o lastro da paisagem nevada das salinas, lembranças de caíques ao sul, de aragens de ria, a par desse falar em canto que tombava, estrangeiro, onde a palavra tinha diferente melodia. Módulos perfeitamente perfeitos, agarrados uns aos outros por pátios, açoteias, labirintos de paredes caiadas, ladrilhagem moura, cântaros a imitarem os trazidos pelo invasor berbere, selhas para todas as lavagens, da roupa, do corpo, dos pratos e talheres, versos de Loulé e zangas de Tavira casados na comunista Olhão» (p. 157).
            Vêm, portanto, ao de cima as «oralidades velhas que definhavam sem remédio na caldeirada étnica da Vila das Quintas» (Carcavelos): o biqueirão alimado, a sopa de abóbora, o xarém, a sobremesa de figos de pita, «estamos xarengados», «tem avondo», marafado, almariado… O falar algarvio no seu melhor!...
            Romance de escritor bem maduro, de saber acrisolado numa vida cheia, que As Pessoas de Minha Vida – queira-se ou não – superiormente retrata.
            Romance a reler com a atenção que a primeira leitura apenas suscitou e ora importa consolidar.
                                                                       José d’Encarnação

            Publicado em Cyberjornal, 14-01-2018:

sábado, 6 de janeiro de 2018

O eucalipto é meu; o sobreiro do neto será!

            Quando estive de professor na Escola Profissional de Santo António em Izeda, no ano lectivo de 1963-64, levava os meus ‘correços’ ao rabisco da castanha e da uva e, na aula, em jeito de lição por essas andanças nos soutos e nas vinhas já vindimadas, falava-lhes de um provérbio que por lá aprendi: «Oliveira do meu avô, castanheiro do meu pai e vinha minha».
            Olhavam para mim com ar de espanto e eu explicava que a frase queria dizer o seguinte: se eles plantassem vinha, ainda delas viriam a comer as uvas e a fazer bom vinho; se preferissem castanheiros, mui provavelmente só os filhos deles comeriam as castanhas; e se, ao invés, se dessem ao trabalho de plantar oliveiras, só os netos lhes saboreariam as azeitonas.
            O provérbio poderia ter hoje outra formulação, do género de «O eucalipto é meu; o sobreiro do neto será!» – que é como diz: se eu me dedicar aos eucaliptos, meninos, é atar e pôr ao fumeiro, ganho dinheiro num abrir e fechar de olhos; se, pelo contrário, atender a essas ‘histórias’ da vegetação autóctone, do que é bom para o solo e optar pelos sobreiros e azinheiras, amigo, só meus netos delas tirarão cortiça e lograrão alimentar saudavelmente os seus porquitos com bolota.
            Essa, a lição que, mais uma vez, o Prof. Jorge Paiva, botânico da Universidade de Coimbra, nos dá no seu postal de Natal deste ano. É o sobreiro a sua «árvore de Natal especial» – e ilustra a frase com um sobreiro da Malhadoura (Parque Nacional da Peneda-Gerês), «cuja idade avançada se revela com a semelhança da base do tronco e a rocha circundante».
            Como, «devido ao actual “Aquecimento Global”, Portugal está a ter verões mais quentes, mais secos e de maior amplitude» e «as únicas árvores que temos, capazes de suportarem estas novas condições, são, precisamente, os sobreiros e as azinheiras», «é necessário repensar a floresta de produção e ordenar o país».
            «Sobreiros e azinheiras são árvores de crescimento lento e o ordenamento do território é muito trabalhoso e demorado», ainda que «isso já tenha sido feito no Ribatejo e no Alentejo», onde «os montados de sobro e de azinho demoraram dezenas de anos a formarem-se, mas hoje são rendíveis e sempre com o mesmo número de árvores, pois, conforme vão morrendo, vão sendo substituídas por outras».
            Daí o seu voto – que, evidentemente, partilho:
            «Que a época festiva do final do ano ilumine a consciência dos governantes e políticos de Portugal de modo a não continuarmos a ter “piroverões”».
 
José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 722, 1 de Janeiro de 2018, p. 11.
As fotos reproduzem o que o Professor Jorge Paiva incluiu no seu postal de Natal.


 

 

quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

A doutora Maria José Azevedo Santos assessora da Xunta do Governo Galego

            Membro do Centro de História da Sociedade e da Cultura desde a sua criação, a Doutora Maria José Azevedo Santos, professora catedrática, foi nomeada para integrar o Comité Internacional de Expertos del Camino de Santiago.
            É função deste grupo de «sábios» assessorar a Xunta do Governo Galego, emitindo parecer sobre itinerários, publicações, centros de estudo, congressos ou exposições.
            A notícia foi amplamente divulgada no jornal espanhol ABC, na sua edição de 1 de Fevereiro de 2015 (pág. 88), na medida em que também se nomearam outros dois membros: Simon Barton, professor da Universidade de Exeter (Reino Unido) e Segundo Pérez, deão de Santiago.
            Posta a questão de, cada vez mais, o Caminho de Santiago estar na moda, enriquecida a sua inicial vertente religiosa de uma componente turística crescentemente valorizada, o jornal salienta, de Simon Barton, a frase «Deveríamos celebrar a sua popularidade e não lamentá-lo». De Segundo Pérez, optou-se por sublinhar a ideia de que «a Europa precisa de recursos como este para afirmar a sua identidade». Por seu turno, em relação à Doutora Maria José Azevedo Santos, a opinião que é chamada a título acentua a necessidade de a Igreja manter a espiritualidade do Caminho
            Habituada a saber, desde pequena, da importância que a peregrinação a Santiago de Compostela detém na tradição espiritual cristã da Península Ibérica, a Doutora Maria José não deixou de comentar que a sua devoção infantil depressa encontrou um outro motivo de apreço:
            «O conhecimento do Caminho de Santiago foi decisivo para melhor se compreender a introdução de correntes culturais e religiosas no seio do Portugal do século XII».
            Dado que o Caminho de Santiago ocupa, indiscutivelmente, lugar cimeiro no quadro dos símbolos religiosos europeus, a Confraria de Santa Isabel assinou, recentemente, por ocasião da inauguração de um albergue no Convento de Santa Clara-a-Nova, um protocolo com o Centro de Estudos Jacobeus – Caminhos Portugueses a Santiago de Compostela, no sentido de mais facilmente se concretizarem os objectivos em vista.
         Nesse sentido, uma vez que a investigação histórica desempenha, naturalmente, papel relevante neste âmbito, a nomeação da Doutora Maria José, especialista em História Medieval, constitui, sem dúvida, uma honra para si e para a sua Faculdade – nomeação com que muito nos congratulamos, augurando-lhe o maior êxito nestas funções.
                                                                                   José d'Encarnação

Publicado em Revista de História da Sociedade e da Cultura, 17, 2017, p. 431.