quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Pôr a boca no trombone!

             Sentimos isso. Quando o maestro Nikolay Lalov aponta para o fundo da Orquestra Sinfónica, para os metais, sai de lá um som forte, qual grito de alerta ou enorme explosão de alegria, a abafar por instantes a sussurrante melopeia dos violinos.
            Vem daí a expressão popular «pôr a boca no trombone». Como num trecho musical, o trombone só aparece para dar forte, assim, quando alguém se decide a pôr a boca no trombone é porque se cansou de ciciar, de cantar ao ouvido, de mexer os cordelinhos à puridade.
            Muitos exemplos há, recentes, de atitudes dessas.
            Puseram a boca no trombone as mulheres (e, agora, também os homens) vítimas de assédio sexual. Houve já quem, mui judiciosamente, pôs água na fervura, nem tanto ao mar nem tanto à terra. A verdade não terá sempre exactamente as cores com que a pintam e ainda outro dia, ao jantar, um amigo meu fez uma carícia terna no rosto da esposa de um amigo comum, que estava presente, e todos, à uma, em risota:
            ‒ Cuidado, que isso é assédio!...
            Acho, porém, que, por exemplo, no domínio da chamada «violência doméstica», muito haverá ainda por fazer, porque não é só a pancadaria que conta, a violência psicológica será muito mais frequente do que se pensa, aos mais variados níveis. A necessidade absoluta, custe o que custar, de atingir objectivos previamente determinados, sem olhar a parâmetros circunstanciais que os poderão dificultar, não será violência psicológica que deixa de rastos, quotidianamente, tantos e tantos funcionários?
            Quando exerci funções de responsabilidade no Jornal da Costa do Sol, repetiam-se cenas – que são comuns no quadro da Comunicação Social, sobretudo local – de ‘má disposição’ por parte de autarcas, por se ter posto o dedo na ferida de uma situação há muito por resolver. Aqui d’el-rei, «vocês podiam ter-me contactado, que eu esclarecia!». Pois. Fizéramos diversas diligências e não havia alguém disponível para esclarecer: pespegou-se a mazela no jornal e… os senhores ficaram ofendidos!
            Apeteceria recordar o que estipula o artigo 39º do Código do Procedimento Administrativo:
            «1. Toda a correspondência, designadamente sugestões, críticas ou pedidos de informação cujos autores se identifiquem, dirigida a qualquer serviço será objecto de análise e decisão, devendo ser objecto de resposta com a maior brevidade possível».
            E reza o ponto 2: «Sem prejuízo do disposto na lei, no prazo de 15 dias deve ser dada resposta na qual seja comunicada»: a decisão final tomada, a informação intercalar ou «a rejeição liminar da comunicação apresentada».
            Exemplo bem recente é o da Escola Superior de Dança. Fartaram-se os responsáveis de enviar ofícios, e-mails… Fartaram-se os alunos, fizeram greve, convocaram a Comunicação Social e… multiplicaram-se depois as reuniões, agora já havia tempo, para se atamancar uma solução.
            E estoutra questão: o da iminente degradação do espólio arqueológico subaquático. Multiplicaram-se as chamadas de atenção e… nada! Numa reunião de arqueólogos, uma técnica da Direcção-Geral do Património Cultural apresentou moção de censura, que foi aprovada por larga maioria. Resposta da Direcção-geral: processo disciplinar! E o mais interessante é a Direcção-geral, perante a acusação de ter tomado uma atitude claramente antidemocrática, ter vindo a terreiro afirmar que era mentira, que não levantara o processo por isso, quando eu isso claramente lera no auto. Fui publicamente chamado de mentiroso, mas não me ralei nada com isso, porque as acções ficam com quem as pratica.
            Estou a redigir esta crónica em Londres, onde, nos transportes públicos – e cá toda a gente privilegia o transporte público –, se lê, em grandes letras, nos painéis digitais: «Se verificar que algo não está bem, não hesite em contactar-nos». Recordo que, mesmo no Brasil, também nos transportes públicos e por toda a parte, se apela à participação do cidadão na denúncia de situações atentatórias da dignidade do Povo.     Portanto, bem faz o maestro em chamar, de vez em quando, os metais. Bem faz, no dia-a-dia, quem, corajosamente, no cumprimento do seu dever de cidadania… põe a boca no trombone!
                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal [Cascais], nº 219, 31-01-2018, p. 6.

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