quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

O encanto das fotografias antigas

             Recordo, com frequência, o telefonema de uma senhora: «Tenho aqui uma gaveta cheia de fotografias antigas, que não sei que hei-de fazer delas, não conheço parte das pessoas que lá estão… quere-as?». Claro que quis! E, nas aulas que dou a futuros técnicos culturais autárquicos, nunca me esqueço de lhes chamar a atenção para esse espólio que importa preservar, mormente quando se suspeita que alguém dele se vai desfazer. Se se pensar que preciosas fotografias do espólio de Michel Giacometti foram, in extremis, salvas da lixeira!...
            Felizmente, a mensagem vai passando. Inúmeros municípios incluíram essa preocupação nos objectivos do seu departamento cultural; fizeram exposições; editaram álbuns…
            Nesse aspecto, o nosso núcleo museológico de Alportel foi pioneiro – e eu tive ocasião de o ver a 26 de Setembro de 2008 – ao dedicar um mês, se não erro, a uma família ou a uma pessoa e isso era pretexto para se recolherem fotos… Aliás, não vem na agenda São Brás Acontece de Janeiro, na pág. 34, o convite a que todos os são-brasenses, no âmbito das comemorações do centenário, que se aproxima, partilhem «as suas fotografias, vídeos, memorias e histórias destas 10 décadas», enviando tudo para centenario@cm-sbras.pt?
            Não me admirei, portanto, e muito me regozijei por a Associação Portuguesa de Museologia ter dado, em 2012, uma menção honrosa ao nosso Museu do Trajo, na modalidade «Criatividade e Inovação», justamente devido ao projecto «Fotografia e Memória» que briosamente está a ser levado a cabo pelo chamado «Grupo das Quintas». Já têm mais de 20 000 imagens, referentes a cerca de 200 famílias. É obra! O processo pode ser consultado no endereço da Internet http://www.museu-sbras.com/grupo-fotos.html
            Parabéns!

Publicado em Noticias de S. Braz, nº 195, 20-02-2013, p. 15.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

«Eles ‘andem’ aí!» – uma crítica aos costumes e à governação

             Encheu-se o Teatro Gil Vicente, de Cascais, na noite de sábado, 23, para assistir à reposição da revista «Eles ‘andem’ aí!», levada à cena pelo Grupo Cénico da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Cascais.
            A reposição constituiu também ensejo para – na presença dos presidentes da Câmara e da Junta de Freguesia – ser entregue ao Grupo, no intervalo entre os dois actos, o crachá de ouro da Liga dos Bombeiros Portugueses, como preito de homenagem no âmbito das comemorações do seu centenário.

A crítica oportuna
            Ainda que o cunho local seja dado, primordialmente, pelos cenários – figuras da sociedade ou da política cascalense não têm sido suficientemente ‘vistosas’ para inspirar quadros de revista… –, o mote inicial é um dos desenhos de Rafael Bordalo Pinheiro de crítica à opressão nos primórdios republicanos. Os eles que, na altura, andavem aí eram bem diferentes dos de hoje, mas o medo que instilam na população e, sobretudo, os danos que lhe causam são, porventura, ainda maiores que cacetadas ou alguma cena de tiroteio… O quadro final, a evocar palácio de vampiros, é, nesse aspecto, deveras significativo e o guarda-roupa dos actores revela-se, na circunstância, bem explícito, a revelar os agentes económicos que, superiormente, quais sanguinários vampiros, nos sugam até ao tutano!...
            Crítica, pois, da governação e crítica de costumes, como não podia deixar de ser, com momentos sérios (como aquele em que se verberam os que arrastam os jovens para a droga) e, sobretudo, momentos de grande ironia, em que o trocadilho sugere, não explicita, e faz rir, na senda da sábia máxima «castigat ridendo mores»: é a rir que se castigam os costumes! E, nesse aspecto, como é natural, cenas ligadas à prostituição, à dita infidelidade conjugal, à homossexualidade detêm êxito garantido, servidas, de resto, por actores que, com à-vontade, se mexem no palco e sabem meter oportunas «buchas» quando os espectadores menos esperam.

Cascais
            Do que mais se prende com a vida cascalense, ressaltaria os momentos de fado, não porque revista sem fado não é revista, sabe-se bem, mas pelo que isso significa no ^âmbito da nossa tradição, que urge reabilitar (e há zunzuns de que se está seriamente a pensar nisso): Cascais foi sempre e, de modo especial, na década de 60, alfobre de fadistas, uma das terras do «fado fora de portas» depois de o Campo Grande, por exemplo, já ter deixado de o ser, porque englobado no crescimento urbano. Temos hoje uma nova geração de fadistas que vive em Cascais, que se ‘fazem’ e’em Cascais e as revistas do Grupo Cénico nunca deixaram morrer essa tradição.
            Eloquente ainda, nesse aspecto, embora possa referir-se ao País, a evocação do trabalho dos calceteiros: a calçada portuguesa que, em Cascais, se inspira nos motivos piscatórios. Bonito, o quadro; sugestivo, mais uma vez, o guarda-roupa – aliás, uma das grandes mais-valias, devida ao engenho do Quim Carvalho, responsável também, ao que suponho, pela quase totalidade das coreografias, se não de todas.

Uma sugestão
            E esta última frase leva-me a uma sugestão.
            Eu sei que há todo um trabalho de equipa e que ninguém se quer pôr em bicos de pés. Assim se há-de continuar a trabalhar. Contudo, quiçá não onerasse muito as despesas do espectáculo a elaboração de um programa, embora singelo, onde se discriminasse não apenas a sequência dos quadros, mas os actores, os autores dos textos e – porque não? – se transcrevessem também alguns dos textos cantados, porque assim se captaria melhor a malícia e a subtileza da crítica «ao estado a que isto chegou»! Creio que poderia ser também um bom veículo de publicidade a alguns mecenas.
            Trata-se, não o esqueçamos, e a determinado momento do espectáculo isso bem se sublinha, trata-se de uma manifestação cultural e tanto a Câmara como a Junta de Freguesia não desdenharão, decerto, em dar o seu apoio nesse sentido.
            O Grupo Cénico tem página no facebook: http://www.facebook.com/#!/gcenicoahbvc?fref=ts . Há que consultá-la não apenas para lá se colocar o «gosto!», mas também para se saber quando a peça vai à cena. Dessa página retirámos, com a devida vénia, as imagens que ilustram esta crónica, no caloroso voto de renovados êxitos para tão briosa equipa!

Publicado em Cyberjornal, 24-02-2013:

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Centro de Interpretação Ambiental da Pedra do Sal, onde o olhar se espraia e se deleita…

           Inaugurado a 7 de Setembro de 2005, o Centro de Interpretação Ambiental da Pedra do Sal (CIAPS), em S. Pedro do Estoril, constitui um daqueles recantos onde o olhar se espraia e o espírito se deleita na aprendizagem de múltiplas ciências, desde a Arqueologia à Geologia, passando até pela estratégia militar… Vale a pena ir lá – uma e outra vez!

Uma visita
            E fui lá de novo aqui há uns tempos, precisamente a 11 de Junho de 2011.
           O painel de boas-vindas ainda tem o nome primeiro (de Ponta do Sal) e anuncia o que há: cafetaria, sanitários, zona de estada (esplanada, praça exterior, miradouro – algumas letras foram roubadas…), anfiteatro, património... Indica o horário (encerra às segundas) e informa que nasceu da iniciativa do Instituto da Água em colaboração com a Câmara Municipal de Cascais.
            Passei junto do que resta da gruta pré-histórica; apreciei o piso de gravilha consolidada, em quadriculado de paralelepípedos em calçada à portuguesa; achei bonitos os moroiços de lioz em lascas e de fragmentos do lapiás, por onde espreita alegre vegetação xerófila.
            Para oriente, a praia de S. Pedro, nesse dia pejada de gente; mais além, o folheado da falésia até à Parede. Ao fundo, o dorso preguiçoso da Arrábida, a desafiar o oceano do alto do seu Cabo Espichel. Em frente, o mar sem fim – o «caminho do Atlântico»… – , ponteado de cargueiros à espera de vez para entrar na barra...
           Desce-se para o miradouro virtual, bem publicitado, mas… inoperacional e sem qualquer informação por perto. E é, à frente, a imensa placa do lapiás, com uma idade entre os 90 e os 120 milhares de anos, «extensa e horizontal plataforma de abrasão resultante da grande exposição aos agentes erosivos», onde a água, retida na vazante, acabava por se evaporar e deixar nas concavidades o precioso sal, que os pescadores aproveitavam – daí a razão do nome: Pedra do Sal. Pesca-se à cana, aqui e além…
           E apetece regalar-nos na esplanada. Sim, poder-se-ia ir para poente, que há motivos de sobejo encanto: o anfiteatro, a paisagem, a vegetação autóctone, o ar puro…

As grutas pré-históricas
            É importante, do ponto de vista histórico, o espólio encontrado nessas grutas aquando das escavações ali levadas a efeito, em 1944, por Leonel Ribeiro, que – juntamente com dois outros arqueólogos, Vera Leisner e Leonel Ribeiro – haveria de publicar a monografia Grutas Artificiais de S. Pedro do Estoril (Lisboa, 1964), a dar conta dos resultados obtidos.
           Dentre esse espólio – como, aliás, reza a folhinha desbotada e com 20 linhas de letra miúda que está junto à arriba – as taças de pé, de cerâmica, e os anéis espiralados de ouro são, sem dúvida, os mais conhecidos. E os cilindros de calcário, «objectos rituais relacionados com pequenos santuários», escreve-se. Linguagem difícil de entender para o visitante médio, quiçá…
          Podem ver-se esses materiais na Sala de Arqueologia do Museu dos Condes de Castro Guimarães; mas, se calhar, não ficaria mal maior atenção e realce a esse invulgar vestígio arqueológico, nomeadamente procedendo a periódicas limpezas do local (propício a vazadouro de lixo) e erradicando as piteiras que lá crescem. Uma das fotos de Danilo Pavone que ilustram a folhinha mostra a arriba à noite, com três pontos de luz. Adequada iluminação do espaço que subsiste da câmara funerária dessa gruta de há 5000 anos atrás não seria, de facto, despicienda.

Artilharia de costa
           Dois dos edifícios de pedra que se encontram a caminho da plataforma do miradouro virtual estão directamente ligados à bateria da Parede. Abriga um deles um projector com a seguinte identificação em placa que lhe está afixada:
 
PROJECTOR FORTRESS 90 C/M MKVI
CLARKE CHAPMAN
Nº 8136
1940

            É imponente, o mecanismo oleado, o pavimento limpo. Sobre ele (deve ser adorno!...) uma embalagem vazia de cones de gelado. Na vidraça envolvente, grafitos vários a roxo e verde…
            Anote-se, como curiosidade, que a empresa fabricante foi criada pelo engenheiro inglês William Clarke, em 1864; a designação Clarke Chapman deriva do facto de, em 1893, se ter associado ao capitão William Chapman. Da sua actividade realce-se o fabrico, a partir de 1886, de projectores para uso a bordo de navios e, a partir do ano seguinte, de geradores portáteis e de faróis de busca destinados aos navios que passavam pelo Canal de Suez.
            A explicação do significado da implantação do projector ali está mais acima, perto da outra casinha – essa, hermética, de janela com grades e impenetrável, abriga o gerador. Uma folha de 14 linhas, em corpo 12, quase completamente indecifrável. Fala-se em II Guerra Mundial, em Plano Barron, em forças alemãs… É referência à reorganização da artilharia antiaérea e de costa, feita no final da década de 40 (os projectores foram instalados em 1948) para melhor defesa da barra de Lisboa. «Cada bateria de Artilharia de Costa estava equipada com três projectores que tinham por função cooperar na defesa nocturna». Neste caso, a bateria estava lá no Alto da Parede e o projector acendia-se cá em baixo, quase ao nível do mar, para identificar os navios.

Uma lição de geologia
            Atenção muito especial merece o opúsculo Guia de Campo da Geologia do Litoral da Pedra do Sal, da autoria de Miguel Magalhães Ramalho.
            Ilustrados com magníficas fotografias, de extraordinária beleza e muito elucidativas da riqueza geológica do local, são explicados tintim por tintim quatro percursos, onde se ensina a ler as rochas e a apreciar a sua rara beleza. A história da Terra escrita no solo…

«Ponto de encontro com o ambiente»
            E, na verdade, o CIAPS representa, de modo muito especial, esse ponto de encontro com o ambiente, especialmente vocacionado para apoiar actividades escolares e outras (ainda no dia 15 lá se foi ver o eclipse da Lua!...). «Há biodiversidade na Pedra do Sal», «Encontra o tesouro do Capitão Concha», «Vem construir um herbário», «Os caminhos da gotinha», «Sábados divertidos»… são algumas das dez actividades que ora ali se propõem, com horários próprios e inscrição prévia, para crianças dos 3 aos 10 anos.
           Apoio fundamental é o Espaço Multiusos, de traça bem integrada na paisagem, sala de exposições e de atendimento, auditório com 36 lugares. Alimentam-no 5 microturbinas eólicas (um projecto classificado em 1º lugar, a 27 de Janeiro de 2010, na área de «gestão de energia – parceiros para a inovação»).
           Dois atenciosos jovens, ali colocados no âmbito do programa camarário de Ocupação dos Jovens, amavelmente me proporcionaram todas as explicações, mormente as que se prendiam com a exposição de trabalhos de escolas básicas do concelho feitos à base de materiais reaproveitados; patente de 30 de Maio a 27 de Junho, incitava o público a premiar o que considerasse o trabalho mais bem conseguido nessa tónica de alertar para a biodiversidade e a defesa do ambiente.
           Para além dos painéis explicativos, registe-se a instalação de um “Touch Tank”, «pequeno aquário, que pretende reproduzir à escala o ecossistema da “poças de maré” existente na ZIBA – Zona de Interesse Biofísico das Avencas».
           S. Pedro do Estoril merecia, de facto, um lugar assim!

Publicado no Cyberjornal, edição de 23-02-2013:

 

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

O Roteiro do Museu Condes de Castro Guimarães

            Foi apresentado na tarde de  4 de Abril de 2009 o livro Museu-Biblioteca Condes de Castro Guimarães – Roteiro, realizado com coordenação científica e apresentando editorial da responsabilidade da Dra. Carla Varela Fernandes, que superintendia então aos museus municipais, como Coordenadora da Divisão de Museus.
            Trata-se de mais uma edição da Câmara Municipal de Cascais, datada desse ano de 2009: 189 páginas, ilustradas, a cores, ISBN: 978-972-537-186.1, versões em português e em inglês.
            Foi salientado ser o primeiro roteiro concebido nestes moldes em mais de 75 anos de existência do museu, «com base em estudos realizados por especialistas de cada uma das matérias abordadas». Não é, contudo, o primeiro roteiro do museu: houve um, dos primeiros tempos, e João Alfredo Donas de Sá Pessoa, que aí foi conservador de 1974 a 1976, elaborou um novo roteiro, ainda que de apenas 24 páginas.
            O palácio, primeiramente designado Torre de S. Sebastião, legado pelos Condes de Castro Guimarães ao Município de Cascais, é, no fundo, uma casa-museu, pois 'vive' do espólio por eles deixado, de que se destaca a preciosa biblioteca, com volumes raros, de grande interesse histórico-documental, entre os quais a Crónica do Mui Esclarecido Príncipe D. Afonso Henriques, de Duarte Galvão, com a mui conhecida iluminura a retratar Lisboa e o seu porto no séc. XVI. Contudo, para além disso, há as pinturas e outras obras de arte, há mobiliário (notável a sala do indo-português), faianças e, sobretudo, o «deleite espiritual» que a «casa» pode proporcionar a quem a visita, como preconizava o grande museólogo João Couto.
            Constitui, pois, o Roteiro síntese substancial acerca da importância do acervo ali exposto, pois que houve o cuidado de chamar, como se disse, especialistas para escreverem sobre os diferentes tipos de espólio nele existentes
            Assim, traça Sandra Leandro uma panorâmica da maravilha que é, do ponto de vista arquitectónico, este edifício ‘revivalista’ de primórdios do século XX, devido ao génio do arquitecto Jorge O’Neill (1849-1925), inspirado na cenográfica fantasia de Manini (o arquitecto da Quinta da Regaleira), debruçado sobre um dos recantos mais bonitos da vila de Cascais, a enseada de Santa Marta (p. 11-41). Vítor Silva traz a sua interpretação, em termos assaz esotéricos, do jardim que o Conde encomendou para enquadramento do edifício e, sobretudo, do local onde, com a esposa, queria vir a ser sepultado (p. 43-51). Coube a Miguel Soromenho a descrição da ermida de S. Sebastião, precioso templo, ricamente decorado de azulejaria, datável do século XVI (p. 53-61). Maria Assunção Júdice refere-se (p. 63-67) às preciosidades bibliográficas que o Conde foi adquirindo, entre as quais edições raras datadas dos séculos XVII e XVIII e, como atrás se disse, a magnífica Crónica, da autoria de Duarte Galvão, a cuja importância histórico-documental Paulo Pereira dedica as p. 69-73 do Roteiro. A colecção de pintura – quer os quadros que foram pertença do Conde quer os que, ao longo dos anos, o Município foi adquirindo, para a enriquecer, nomeadamente no que respeita a obras cuja temática tivesse a ver com Cascais – é analisada por Isabel Falcão (p. 75-99), cabendo-lhe também o capítulo da escultura (p. 101-111). José António Proença chama a atenção para as peças do mobiliário, tanto o português como, sobretudo, indo-português, de que o museu detém singular colecção. Leonor d’Orey – que em 2005 estudara, em monografia, A Colecção de Ourivesaria do Museu Condes de Castro Guimarães, luxuosa edição do Município local – apresenta aqui uma síntese dessa pesquisa, mostrando a originalidade e riqueza das baixelas daquela casa condal.
            Mas não nos ficamos por aqui, pois Maria Antónia Pinto de Matos dá conta do que de admirável há na colecção de porcelana chinesa (p. 147-155); Luís Manuel de Araújo, com a competência que lhe é reconhecida, mostra-nos o «núcleo egípcio» formado por “dois pequenos escaravelhos inscritos na base, um disco solar com um ofídio em posição frontal, uma estatueta da deusa Taueret (protectora das mulheres grávidas) e outra do deus Bês (protector da intimidade do lar), além de uma conta de faiança»; além destas seis peças, há ainda «três imitações algo frustres» de peças egípcias (p. 157). Victor S. Gonçalves, dá conta, por seu turno, do espólio arqueológico que no museu se foi guardando, resultante das campanhas de escavação efectuadas em sítios do concelho desde finais do século XIX: o que há da gruta do Poço Velho, das grutas de Alapraia e de S. Pedro do Estoril, as cerâmicas campaniformes, os artefactos votivos de calcário, dando, a concluir, informação acerca do interesse de dois povoados do 3º milénio, sitos em Parede e no Estoril (p.165-171). Aliás, nesse mesmo dia 4 de Abril, se abriu a nova sala destinada a apresentar essa notável colecção arqueológica.
             Termina o roteiro – que, pode dizer-se, é também quase um verdadeiro catálogo – por um texto de José António Proença acerca de outros objectos, não enquadráveis em nenhuma das categorias anteriores, mas que assumem, no contexto, real valor: realça a colcha da Índia em seda natural, bordada, do século XVII, que se expõe no quarto dos condes; o órgão de tubos, fabricado em Braga, por Augusto Joaquim Claro, que se mostra na Sala de Música do museu – seguramente um dos seus recantos mais acolhedores – e que ainda hoje, de vez em quando, funciona; era, aliás, a música um dos passatempos preferidos do Conde, sendo ele proprio exímio organista...
            A bibliografia (p. 181-189) arrola as principais obras citadas, onde falta, naturalmente, por a quase totalidade dos autores não ser de Cascais, a referência ao muito que, por exemplo na imprensa local, ao longo dos tempos se tem escrito sobre o edifício e sobre o museu. Também não seria, quiçá, esse o sítio adequado para essa ‘excursão’; no entanto, cremos que nenhum dos autores terá tido a percepção do interesse da imprensa para ajuizar de como a população sente um monumento e, nesse caso, um museu, que foi, até há pouco tempo, o único museu de Cascais.
            Nele se desenrolaram, na verdade, algumas experiências pioneiras, dada a sua proximidade de Lisboa e o facto de o palácio ter sido legado ao povo de Cascais no final da década de 20 do século passado, por disposição testamentária e com cláusulas precisas acerca do seu funcionamento e do seu ‘relacionamento’ com a população cascalense. Recorde-se que João Couto, figura ímpar da Museologia portuguesa, foi seu conservador; recorde-se que o nome oficial do museu é Museu-Biblioteca, devido à relevância enorme que nele tem o acervo bibliográfico que o Conde fez questão em pôr ao dispor de todos. Aliás, outro dos conservadores que por ali passou foi Branquinho da Fonseca que ensaiou, por isso mesmo, a iniciativa de uma biblioteca itinerante (que, aos domingos, tinha um percurso definido pelas terras do interior do concelho, a fim de levar livros à população, que os mantinha sob empréstimo durante um mês), iniciativa que Branquinho da Fonseca levaria depois para a Fundação Calouste Gulbenkian, implantando a orgânica das bibliotecas itinerantes por todo o País. Relevo especial merece também a conservadora Dra. Alice Beaumont – que mais tarde viria a dirigir o Museu Nacional de Arte Antiga – pelo empenho posto na criação dos Serviços Educativos para as crianças, quando essa actividade ainda dava os primeiros passos quer no Museu da Gulbenkian quer no Museu Nacional de Arte Antiga.
            De excelente apresentação gráfica, o presente Roteiro constitui, pois, aliciante e irrecusável proposta para uma demorada visita.

 
Publicado no Cyberjornal, edição de 20 de Fevereiro de 2013:
Divulgado através da lista museum, a 21 de Fevereiro de 2013:

 

 
                                  

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

A nau Nossa Senhora dos Mártires vai ser evocada em Oeiras

             Organizada pela Ordem de Cavalaria do Sagrado Portugal, com a colaboração da Câmara Municipal de Oeiras e o patrocínio do Arsenal do Alfeite, vai realizar-se na Marina de Oeiras, no próximo fim-de-semana, dias 23 e 24, uma recriação histórica relativa à Nau Nossa Senhora dos Mártires, que, vinda da carreira das Índias, ali defronte naufragou em Setembro de 1606.
            Recorde-se que, por ocasião da Expo’98, no leito do Tejo se realizaram escavações subaquáticas, tendo parte dos materiais exumados sido expostos no Pavilhão de Portugal.
            Superintenderam à recriação histórica elementos do Instituto Superior Técnico e os Voluntários Reais da Associação Portuguesa de Recriação Histórica.
            O que se pretende é mostrar algumas das actividades, nomeadamente bélicas (haverá um canhão, bestas, um pique, um mosqueteiro vestido à século XVII…), que certamente se desenvolveram a bordo da nau, de que já uma réplica ali se encontra exposta. Aliás, o projecto dos promotores é mesmo acabarem por fazer, daqui até 2014, uma outra réplica em tamanho real!
            Horário previsto: sábado, 23, das 15 às 22 horas; domingo, das 10 às 16.

Publicado em Cyberjornal, edição de 19 de Fevereiro de 2013:
http://www.cyberjornal.net/index.php?option=com_content&task=view&id=17887&Itemid=67

Autarquias e património arqueológico

            Tem-se comentado ultimamente o relacionamento das autarquias com o seu património arqueológico. Se os autarcas – presidentes de Câmara e de juntas de freguesia, vereadores da Cultura (e não só) – visitavam os sítios arqueológicos, nomeadamente aquando da realização de campanhas de sondagem ou de escavação.
            Creio não andar longe da verdade se, vistos os depoimentos que vieram a lume, afirmarmos que, de um modo geral, os autarcas estão conscientes da importância que o património arqueológico detém como ‘ícone’ de uma memória e de uma identidade a valorizar. Nem sempre disporão das verbas necessárias para o efeito; nem sempre agirão com a força necessária para suster determinado investimento imobiliário que não preserva esses vestígios; mas o balanço é positivo.
            Nas câmaras da Grande Lisboa, por exemplo, esse apoio é bem evidente, ainda que nem todas vejam com bons olhos alguma ‘superintendência’, nesse domínio, da Assembleia Distrital de Lisboa e se hajam negado – como foi o caso da de Cascais – a contribuir para esse fim. No entanto, se podemos falar da Amadora, de Torres Vedras, de Vila Franca de Xira ou, mesmo, da Câmara Municipal de Lisboa, nesse aspecto pensamos não exagerar quando se afirma que Oeiras bem cedo compreendeu esse superior interesse da Arqueologia.
            O apoio incondicional dado ao estudo e valorização do povoado de Leceia é disso exemplo deveras sintomático. Mas há, no complexo da Fábrica da Pólvora de Barcarena, um pólo museológico dedicado expressamente à arqueologia oeirense. E há, de modo muito especial, o apoio incondicional dado à continuação de publicação da revista Estudos Arqueológicos de Oeiras, ainda que – de quando em vez – eles não digam respeito em exclusivo ao território oeirense. Claro que, nesse aspecto, tem valido a intercessão do Doutor João Luís Cardoso, que vem superintendendo com saber e toda a diplomacia, a essa actividade – e merece, por isso, o maior encómio.
            Vêm estas considerações também a propósito da recente publicação do volume 19 (2012) dos Estudos Arqueológicos de Oeiras, correspondendo à edição – por parte da Câmara, através do Centro de Estudos Arqueológicos do Concelho de Oeiras - das Actas do IX Congresso Ibérico de Arqueometria, cujos editores científicos foram a Doutora M. Isabel Dias (Instituto Superior Técnico/Instituto tecnológico e Nuclear) e o referido Doutor João Luís Cardoso.
            Esta reunião, de carácter bianual, realizou-se pela primeira vez entre nós (Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 26 a 28 de Outubro 2011), numa organização do Grupo de Geoquímica Aplicada & Luminescência no Património Cultural (GeoLuC) do Instituto Tecnológico e Nuclear (ITN) e da Sociedade de Arqueometria Aplicada ao Património Cultural (SAPaC). E o volume de actas dá conta do elevado interesse das comunicações ali apresentadas e em boa hora vindas a lume e postas à disposição da comunidade científica.

Publicado em Cyberjornal, edição de 19 de Fevereiro de 2013:
http://www.cyberjornal.net/index.php?option=com_content&task=view&id=17888&Itemid=30

Um sonho a abraçar

           «A novidade mais interessante é que Carlos e eu estamos a pôr a hipótese de ter um bebé. Eu não sou muito de crianças; quer dizer, se vier a morrer sem ter filhos, pois ‘no me va a pasar nada’. Como a Carlos, ao invés, o encantam, parece-me algo egoísta da minha parte privá-lo dessa experiência. Quem me verá de mamã, se o sonho se concretiza! Ou, então, ainda descubro que sou uma mãe-galinha e me dedico de corpo e alma a tratar dos filhos. Como foi a tua experiência como pai? Eu o que creio é que os filhos não beneficiam nada o casal».
            Recordei o Hugo, nascido a 1 de Janeiro, ao receber este e-mail. Soubera que Rosa fora também responsável:
– Matilde, conta connosco! Leva-me essa gravidez prá frente, claro! Quero abraçar essa criança. Vais senti-la crescer dentro de ti. E eu estou contigo – para o que der e vier.
            O Hugo nasceu.
            À Raquel não resisti, portanto; respondi no minuto seguinte, quase sem olhar para as teclas do computador:
– É, sem dúvida, uma experiência aliciante! Diferente a atitude da mãe da do pai, como é evidente. A mãe jura que não vai querer mais filhos; o pai fica todo embevecido com o seu herdeiro. Os avós, esses, doidos de alegria, nem imaginas!... Quase vale a pena ter um filho só para poder dar essa alegria aos avós! Os filhos podem ajudar a criar conflitos entre o casal, mas, no fundo, são também um enorme elo de união. O que interessa mesmo é que o filho seja querido por ambos, o resultado de uma grande ternura que se tem a dois.
Também este sonho da Raquel eu quero, um dia, poder abraçar!…
           
                                             José d'Encarnação

«O que Fizeste da Vida, José?»

            A pergunta – tive essa sensação bem clara – caiu inesperada que nem tiro à queima-roupa vindo não se sabe donde:
– Tenho um amigo que já ronda os 80, mantém uma jovialidade inigualável e escreveu livro de memórias, de capa marota: «O que Fizeste  da Vida, José?». E agora pergunto eu: «Que querem fazer da vida vocês? Tu aí, Sandra, que queres fazer? E tu, Dário?…».
Silêncio sepulcral a tombar, pesado, na suavidade da manhã.
– Sonhos, meninos! Quero agarrá-los também! Que já tens 23 anos, namoras decerto, o curso vai acabar dentro de quatro meses, num ápice… E depois? Contem-me dos sonhos!
Não os havia. Assim, conscientes, definidos, agarrados, na corda que se prende firme à falésia para se alcançar o cimo… Ou não mos quiseram confiar.
Tive, porém, a sensação de que a pergunta fora mesmo inesperada. O Zé do livro de capa marota, dias depois, foi da mesma opinião que eu.
E senti responsabilidade imensa!
Lembrei-me daquele jovem padre, dos arredores de Turim, 2º quartel do século XIX, revolução industrial em pleno, crianças maltrapilhas sem saberem que fazer. Arranjou-lhes bolas de trapos, um nó na batina à ilharga e deu em jogar com eles. E passou a marcar encontro todos os domingos de manhã. E, durante a semana, os putos iam sonhando com a bola de trapos e o padre e as conversas que ele tinha e os sonhos que lhes contava – como a raposa do «Principezinho», que alvitrou hora marcada de encontro para que o sonho melhor se corporizasse… D. Bosco (era ele esse padre…) tem colégios por todo o mundo – a ensinar como sonhos podem tornar-se realidade. O Principezinho regressou, uma tarde, para o seu misterioso asteróide, lá onde plantara uma flor para que, à noite, todas as estrelas lhe parecessem floridas… – e nós continuamos a sonhar com ele, que nos ensinou sonhos bons:
«Importa que os homens se metam nos comboios e saibam para onde vão!…».
 
                                                  José d'Encarnação
 
Post-scriptum: O livro citado é da autoria do Prof. José Esteves e foi publicado pela Multinova, em 2001, com o ISBN 972-0035-78-4.

 

Ele não vinha pescar

           Por um carreiro insuspeitado, eu já ouvira falar, mas não sabia que era por ali… Degraus a descer com cuidado, o mar azul hoje, mansinho, ondulação leve ao fundo, bem no fundo. No voo sereno das gaivotas, compassado, imagino, naquele pio suave e alegre, «eles não saibam que o sonho…»! – cântico emblemático, a transportar-me ao sol-pôr… Hoje, o Sol, de certeza, vai estar aqui bem alaranjado, disco enorme e lento, a levar sonhos, a despertar sonhos, na certeza de que, amanhã, redondo e quente, aparecerá do lado do Tejo, «ó Sol, sabes que me apetece aninhar-me em ti?»… São a pique as rochas. Um casal de pombos bravos esvoaça numa perseguição de beijos, no sonho de um ovo galado e de um novo piar de plumagem feia no refego escuso da falésia.
Era ali.
Junto de uma escarpa lisa, dois homens de maior idade haviam estendido as cordas, amarrado bem as ilhargas, olhando para o cimo (25 metros seriam, lisos)… Conseguiriam escalar. Era o seu sonho para este sábado de Inverno primaveril.
A poente, outra rocha a pique, magote de jovens. A Escola de Escalada da Guia em actividade plena, a explicar que chegar ao topo, pé aqui, pé acolá, na tenacidade, na autoconfiança… Um sonho atingível aquele cimo. Reluziam as argolas onde se deveriam amarrar… Escola de Escalada da Guia. Era ali!
Pouco antes de nós, pelos mesmos degraus a esconderem-se nas anfractuosidades da rocha, descera um jovem, mochila aos ombros. Sentara-se no bico dum dos blocos para ali tombados há muitas décadas. Poisara a mochila, olhara o mar, cruzara as pernas. Vai meditar – pensei. Que o ambiente se presta a um encontro consigo, no fim de uma semana frenética, a pesar os sonhos, agarrando uns, afastando outros – que há joio a separar do trigo… Ná!… Ali, afinal, o sonho dele era outro, chamava-se evasão… Vivia num palácio e sonhava com a choupana ou vivia na choupana e queria viver em palácio…
Rosa ficara para trás, a dado passo, numa intuição feminina:
– Eu bem me parecia – comentou. – Ele não vinha pescar, nem ler, nem deliciar-se com as escaladas… Que pena!…
Evolava-se fumo cinzento de um pedaço de papel prateado. Brilho de prata a desfazer-se em fumo. Viagem quiçá sem retorno; ou com mais retornos, mais retornos, a sonhos inacessíveis, desesperados – sem ninho de pombos bravos na anfractuosidade aconchegada da fraga...

                                               José d’Encarnação

Pelo escurecer da jornada...

            Olhos azuis muito vivos, de insuspeitável viço naquele mar encarquilhado de rugas. Todas as manhãs, ainda, uma azáfama: que lenço ficará melhor com esta blusa? «A saia lavaram-ma na máquina e não podia ser, roupa desta tem de ser lavada à mão! Como a camisola, que é de lã, a lã não pode ir à máquina!»
– Ó filho, quantos anos tem a mãe?
– 89, Mami. 89!
– E eu pensava que já tinha 90!… 90 anos é muito ano, não é?…
No pequeno guarda-roupa do quarto de lar, há roupa pendurada, mas outra, muita, na parte de baixo, a monte, resultado da busca matinal do casaco a condizer com a saia.
– Fui eu que fiz, filhote. Com trapinhos. Ia juntando… As velhas aqui do lar não acreditam. «Feito de trapinhos!…» – troçam elas. Mas é verdade! A mãe tinha muito jeito para estas coisas. E de trapinhos fiz este casaco. Fica bem, não fica?… Ó filho, que idade tem a mãe?
– 89, Mami. Vais fazer 90 em Outubro.
– 90! É muita idade, não é? Graças a Deus, que ainda me mexo bem! Elas estão sempre a dizer: «Lá está a velha a fazer ginástica!». E eu faço, queres ver? Ainda vou lá abaixo com os braços!                   
                                                              …
 
Pára de repente, olha-me com uma lágrima inesperada a bailar-lhe no azul lindo dos olhos:
– Esta semana, filho, aconteceu-me uma desgraça. Aquele malandro chamou-me. E fez-me mal. Malvado!…
Bate com ambas as mãos, fechadas, na cabeça. Abana-a:
– Com esta idade, filho! Que vergonha!
– Não aconteceu nada, mãe. A médica já viu. Não aconteceu nada! Também isso sucede connosco, que temos muito menos idade: sonhamos à noite uma coisa e aquilo é tão real que, ao acordarmos, chegamos a pensar: «Mas eu sonhei ou foi mesmo verdade?». Há sonhos, mãe, que a gente até gostava que tivessem sido realidade. Assim aqueles que metem garotas giras…
Rimo-nos. Espairecemos.
– Dá cá o braço, vamos almoçar!

         José d'Encarnação

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

"Eles andem aí!" volta à cena, a 23

            A revista Eles Andem Aí, do Grupo Cénico da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Cascais vai voltar à cena no próximo dia 23, sábado, pelas 21.30 horas, no Teatro Gil Vicente.
            Estarão presentes os presidentes da Câmara e da Junta Freguesia de Cascais, porquanto será entregue, na circunstância, a Medalha de Mérito da Liga dos Bombeiros Portugueses, a assinalar o centenário do Grupo Cénico.
            Recorde-se que o vetusto Teatro Gil Vicente está intimamente às representações teatrais na vila desde os tempos em que, na época de veraneio, a nobreza e a burguesia lisboetas afluíam a Cascais, onde a Família Real estanciava. Havia companhias de fora mas desde cedo também os artistas locais deram um ar da sua graça.
            E é essa graça que o actual Grupo Cénico faz questão em não deixar esmorecer.

Publicado no Cyberjornal, edição de 18-02-2013:

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Caminhos da Água – Paisagens e Usos na Longa Duração

            Coordenado por Manuela Martins, Isabel Vaz de Freitas e Mª Isabel del Val Valdivieso, veio a lume o livro Caminhos da Água – Paisagens e Usos na Longa Duração, edição do CITCEM (Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória», Universidade do Minho, Braga, datado de Maio de 2012. ISBN: 978-989-975558-8-8, 293 páginas, ilustradas.
            Reúne o volume as contribuições apresentadas no I Seminário «Água. Abastecimento, Construções, Gestão e Sociabilidade», realizado na Universidade do Minho a 6 de Novembro de 2009. Pertencem as coordenadoras às três Universidades (Minho, Portucalense e Valladolid), cujos investigadores estão empenhados no projecto com esse nome
            A estruturação do volume obedece a uma perspectiva cronológica (épocas romana, medieval, moderna e contemporânea), partindo das informações colhidas quer mediante a investigação arqueológica quer através de cuidadosa consulta a fundos arquivísticos e minuciosa análise às fontes iconográficas, nem sempre tidas em consideração neste tipo de estudos.
            Assim, Manuela Martins e Maria do Carmo Ribeiro fazem uma primeira abordagem da gestão e do uso da água na Braga romana (p. 9-52).
            Frédéric Trément estuda o que se passou de finais da Idade do Ferro aos primórdios da época romana «entre campos e pântanos» na grande planície francesa da Limagne, sita no Maciço Central, cuja fertilidade é, desde longa data, reconhecida (p. 53-75).
            No que concerne à Península Itálica, coube a Pier Luigi Dall’Aglio e a Carlotta Franceschelli darem conta do que puderam observar acerca das intervenções levadas a cabo na planície do Pó, tendo em conta um bom aproveitamento dos recursos hídricos, no tempo dos romanos (a centuriação) e na época subsequente, em que coube às comunas essa gestão territorial (p. 77-104).
            A presença da água nas explorações mineiras determinou sempre especiais cuidados de segurança, por exemplo; esse o objectivo da análise feita por Carla Maria Braz Martins em minas romanas do Noroeste peninsular: Covas (Vila Nova da Cerveira), Serra de Santa Justa e Pias (Valongo), Três Minas (Vila Pouca de Aguiar) e Barca de Alva (p. 105-123).
            Olatz Villanueva Zubizarreta e Juan Carlos Martín Cea, ambos da Universidade de Valladolid, escolheram para estudo a «cultura da água» como património imaterial, nas cidades medievais da bacia hidrográfica do Douro, em Castela (p. 125-141).
            María Isabel del Val Valdivieso e Juan Antonio Bonachía Hernando analisaram, por seu turno, as manifestações, na sociedade castelhana da Baixa Idade Média, de uma visível consciencialização em relação à necessidade de bem gerir os recursos hídricos (p. 143-161).
            «A água no Livro das Fortalezas de Duarte d’Armas» foi o tema escolhido por Isabel Vaz de Freitas (p. 163-177).
            Maria do Carmo Ribeiro e Manuela Martins observaram o livro da cidade de Braga, datado de 1737, na perspectiva do abastecimento de água à cidade, com especial referência às fontes aí citadas (p. 179-222).
            Também os mosteiros cistercienses do Minho tiveram, no Antigo Regime, uma «política de recursos hídricos»: sobre isso escreve Salvador Magalhães Mota (p. 223-235).
            E, afinal, aí pelas últimas décadas de Setecentos», o Douro era, ainda, «um rio selvagem», conta António Barros Cardoso (p. 237-251).
            Um Douro cuja «barra» já nesse século XVIII merecia a maior atenção, dada a necessidade de se manter navegável e de ser bom porto de abrigo, numa época de comércio intenso: dessas preocupações, bem patentes na documentação da época, nos fala Ana Sílvia Albuquerque Nunes (p. 253-265).
            Finalmente, Francisco da Silva Costa esclarece-nos como é que devemos lidar inteligentemente com o Arquivo da Administração da Região Hidrográfica do Norte, para dele podermos retirar o maior número de informações, apresentando como estudo de caso a bacia hidrográfica do Ave e os processos de licenciamento em domínio público hídrico (p. 267-293).
            Adequada maquetização e a inserção de resumos na língua em que foi redigido o texto e em inglês, no final de cada contribuição, constituem, para além dos enunciados conteúdos, complementar convite à leitura e à reflexão sobre uma temática, que está presente, ficamos a saber melhor, na gestão pública de todos os tempos.
 
 
 

 
                                                                                 

Monumentos a Norte

            Numa edição conjunta do Turismo Porto e Norte de Portugal - www.portoenorte.pt - e da Delegação de Touring Cultural & Paisagístico e dos Patrimónios, datada de Fevereiro de 2012, o guia Monumentos a Norte dá conta, nas suas 61 páginas, dos monumentos mais significativos de 41 concelhos nortenhos, a começar em Amarante e a acabar em Vimioso (seguiu-se, e bem neste tipo de guia manuseável e de folhas de cartolina rija, a ordem alfabética).
            Orlando Sousa, da Direcção Regional de Cultura do Norte, e Sofia Ferreira, da Delegação de Touring Cultural foram os coordenadores gerais, cabendo a Mafalda Pizarro, do Touring, a coordenação técnica. Abre com um mapa desdobrável, na escala de 1:500 000, da região envolvida. Os textos são da lavra de 32 colaboradores. Um CD preso no interior da segunda capa é o complemento sonoro de cada ficha, onde, com boa dicção, é dito o texto de cada monumento. Uma ideia assaz prática e interessante.
            Assim, é-nos possível saber o essencial sobre a domus municipalis de Bragança, a torre do relógio de Caminha, o castelo velho de Freixo de Numão, o Mosteiro de Santa Maria de Salzedas, o Castro do Monte Padrão (Santo Tirso) e tantos outros monumentos que pontuam este itinerário de turismo cultural.
            Em cada ficha, breve informação sobre o concelho e apontamentos sobre: gastronomia e vinhos; festas, feiras, romarias; património (o texto maior e mais eloquente); saúde e bem-estar (termas, por exemplo); informação turística.
            Com mui oportunas fotografias a cores e excelente apresentação gráfica, é um guia que honra os seus promotores.

Publicado em Cyberjornal, edição de 16-02-2013:

«Ravinas», de António Salvado – A arte de burilar as palavras


            Ainda que editado em Março de 2004, na Ulmeiro, não nos ficará mal revisitar o livro de António Salvado, Ravinas (ISBN: 972-706-370-5).
            Em primeiro lugar, porque há escritores – e o poeta albicastrense António Salvado é um deles – que mantêm uma actualidade flagrante, pois os pensamentos que as suas frases veiculam nos servem diariamente, nos incitam a melhor saborear a existência.
            Depois, porque Ravinas é um conjunto de 20 textos, de página e meia cada (excepto um, que tem duas e meia), em que nos delicia a arte de burilar as palavras. Ecos de uma África? Sim. A capa a tal nos induz. E é da guerra de África que, indirectamente, nos fala precisamente esse texto mais longo, do homem de «vestuário sujo e moído» que se senta em frente do stor, numa conversa fiada:
            «Já ouviu falar da guerra em que estamos? Somos todos, toda a gente anda na guerra, toda a gente está na guerra! Quem manda fazer a guerra dá cabo de nós; mata toda a gente como eu mato esta mosca».
            E o stor ouve tudo, dá cigarro, paga cerveja, «até que uma ternura súbita e pungente amendoou as lágrimas que» os seus olhos «começaram a verter» (p. 13).
            Não há datas. Não há identificados lugares. Apenas um existir por aí, sentindo nós que, de facto, o autor convoca aqui os trigais e o rubro das papoulas em que mergulhou; os olores das giestas e dos rosmaninhos em que, recreando-se, se deixou submergir; a «decoração natural e apaixonada de cada estação do ano» em que lhe aprouve sitiar-se (p. 18). Ou seja, Ravinas é, no fundo, essa comunhão íntima com a Natureza, com os seres que a povoam, ciente da efemeridade da vida, sim, mas também acalentando a esperança de que há sempre uma «estrela da tarde que não teme o crepúsculo» e a certeza de que, por mais que outrem o queira, «as estações do ano não aprisionam o tempo»! (p. 34).
            Um hino, pois, à Vida, estendido numa prosa poética que nos enleva e seduz.
            Daí, o não ser descabido revisitá-lo agora, quase nove anos passados…

Publicado em Cyberjornal, edição de 16-02-2013:
http://www.cyberjornal.net/index.php?option=com_content&task=view&id=17871&Itemid=30

Violência na Escola - O luto da comunidade educativa

             Facilmente se encontrará na Internet – por exemplo, em http://educar.wordpress.com/2013/01/31/carta-aberta-morreu-um-de-nos-e-b-23-professor-oscar-lopes/ – a carta aberta assinada por docentes e funcionários da Escola Professor Óscar Lopes, de Matosinhos, em que se dá conta da enorme consternação que se apoderou de toda a Comunidade Educativa, devido à morte, por colapso cardíaco, de um dos vigilantes, quando tentava dominar um aluno desordeiro.
Começa assim:
«Morreu um de nós: um daqueles que zelava pela segurança de todos (alunos, funcionários e professores); o nosso elo mais forte, em pleno exercício das suas funções.
            […] Já na Direção Executiva, e perante o continuado comportamento violento, o vigilante Correia, manietando o aluno, manteve-se como pilar determinante na segurança física de outros elementos da Comunidade Educativa, que tentavam também intervir. Mais de dez pessoas tentaram, sem sucesso, conter o aluno!
Assim, perante uma violência física e emocional tão demorada e brutal, o vigilante Correia colapsou».
E assim termina, depois de circunstanciadamente se narrarem os factos e as reacções da Direcção Regional de Educação do Norte:
«Morreu o Sr. Correia, dizemos. Já tinha problemas de saúde, dirão. Nos olhos uns dos outros lemos: “Mataram o Sr. Correia!”».
A carta tem como finalidade não remediar o que já não tem remédio, mas gerar uma corrente que leve as entidades e, designadamente, os Serviços Tutelares de Menores a terem uma acção mais acutilante. E – que me seja permitido acrescentar – sei do que falo, porque fui, no ano lectivo de 1963-1964, professor na Escola Profissional de Santo António, em Izeda, nessa altura dependente dos Serviços Tutelares de Menores, e tive a meu cargo jovens delinquentes de idades entre os 12 e os 15 anos.

Publicado em Cyberjornal, edição de 16-02-2013:

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

«De Igaedo à Senhora do Almotão» - um livro ingénuo e bem intencionado

            Foi apresentado em Lisboa, no passado dia 26 de Janeiro, o livro De Igaedo à Senhora do Almotão, da autoria de Joaquina Salgueiro da Silva Celestino, edição da Câmara Municipal de Idanha-a-Nova, com data de 2012 e ISBN 978-972-8285-68-5 [Fig. 1].
            Em «Aos leitores», texto datado de Julho de 2009, explica a Autora como lhe surgiu a ideia de escrever este livro. Aluna de D. Fernando de Almeida na Faculdade de Letras de Lisboa na década de 60, sendo natural de Idanha (nasceu em 1946), cedo se deixou entusiasmar por esta sequência cultual que radica na veneração romana pela divindade indígena Igaedus, cujo ex-voto [Fig. 2], dedicado por Caetronia Vitalis¸ fora identificado pelo seu professor, justamente perto do santuário à Senhora do Almortão, o que, de resto, motivara de imediato, por parte de D. Fernando de Almeida, essa aproximação de cultos, explicável, naturalmente, por o próprio lugar ter em si algo que se poderia considerar fora do habitual, aquilo a que os Romanos chamariam o Genius loci, o «Génio do Lugar». Aquele «sempre foi, desde o princípio dos tempos, “um lugar sagrado”», conclui.
            De 176 páginas, tem o livro «introdução» do Padre Adelino Américo Lourenço, prior de Idanha-a-Nova, que salienta como o culto à Senhora do Almortão está visceralmente entranhado na «alma do Povo da Idanha».
Divide-se a obra em duas partes mui distintas. Demonstra-se, na primeira, «Água Murta – um lugar sagrado», a sacralidade do lugar (p. 11-63); dá-se conta, na segunda, de todo um repertório poético – que facilmente integraríamos na esfera do património imaterial – relativo à Senhora do Almortão.
Formada em História, docente de História e de Português ao longo da vida, Joaquina Celestino dedica, pois, essa primeira parte a amplas considerações de ordem histórica, linguística e etnológica para mostrar a originalidade não apenas das gentes de Idanha mas de tudo o que sobremaneira as caracteriza, como é esse culto mariano, elemento agregador, por excelência, ao longo dos tempos e desde as mais remotas eras, e o próprio adufe, instrumento musical que, de certo modo, lhes pauta o viver quotidiano.

Um livro ingénuo
            «Ingénuo» foi uma das primeiras palavras que me ocorreu para caracterizar o volume, dando à palavra o seu significado concreto, sem qualquer laivo depreciativo. Por a Autora ter aproveitado a circunstância para publicar as suas pinturas a pastel plenas de ingenuidade, totalmente integráveis no que vulgarmente se designa por pintura «naïve»? Não duvido que também isso pesou na minha classificação. Aliás, perpassa por toda a maquetização essa ingenuidade, a denunciar a inexistência por perto de um gráfico, de um revisor (escreve-se, na p. 163, que Igaeditanorum equivale a dizer «da tribo lusitana dos Igaedus»!...) ou de uma pessoa com alguns conhecimentos de edição: os mapas, de tão pequenos, resultam ilegíveis; em contrapartida, a título de exemplo, o desenho do jarro (que, com a devida vénia, reproduzo – Fig. 3) identificado como «objecto egípcio» ocupa toda a pág. 29. Houve grande preocupação em tudo ilustrar quer por meio de desenhos – os tais desenhos a pastel, naïfs – quer, sobretudo, com fotografias, que são dezenas, umas claramente da autora, outras retiradas de livros, mas sem indicação de proveniência.
            Integra-se Igaedus no rol das divindades que temos designado de indígenas, por somente estar atestado o seu culto em local determinado e ostentarem designação nitidamente pré-romana. Ora aqui reside toda a problemática em torno da qual Joaquina Celestino se situa na I parte do seu livro, tomando como base da argumentação autores que apontam, por exemplo, para a existência de uma língua lusitana (sem aspas), mui provavelmente derivada de um idioma proveniente do Médio Oriente.
Essa eventual ‘proximidade’ com o Médio Oriente leva-a, designadamente, a salientar a existência de um culto à Deusa-Mãe e, de modo muito especial, à deusa egípcia Ísis.
Como se sabe, a fonte primordial para o conhecimento desses cultos durante o período romano são as epígrafes, os ex-votos que os fiéis mandavam fazer em reconhecimento por um favor recebido. Que se conheça, não há, na epigrafia da civitas Igaeditanorum, um testemunho do culto a essa divindade, que, a nível do Império Romano e na Lusitânia, era divindade especialmente querida por gentes urbanas, ligadas aos negócios. Encontramo-la atestada em Bracara Augusta, em Alcácer do Sal (Salacia), em Beja (Pax Iulia), em ambientes assaz cosmopolitas, como acontece, de resto, com esses cultos mistéricos. A Grande Mãe dos Deuses era Cíbele, também de origem oriental – e desta igualmente se não têm testemunhos na Idanha romana.
            Compreende-se, pois, que, não estando muito à vontade nestas temáticas, a Autora facilmente se deixe levar pelo seu sentimento e lhe saiam, ao correr da pena, frases como esta:
            «Por todo o decadente Império Romano se assistiu ao «êxito histórico» da transformação dos cultos a Cíbele, a Afrodite, a Vénus, a Múrcia e outras deusas pagãs que mais não eram do que diferentes faces de Ísis, no culto a Maria, Nossa Senhora e Nossa Mãe» (p. 35).
            Deixemos de lado o facto de Vénus e Afrodite serem a mesma divindade, Vénus o nome latino, Afrodite o nome grego; e Múrcia, uma das designações sob que Vénus foi invocada, relacionada com o facto de a murta ser planta a ela consagrada, como o fora a Afrodite. Juntar todos esses cultos sob a «capa» de Ísis e partir desta para o culto a Nossa Senhora torna-se deveras aliciante, mas… não carecerá de comprovação? Não se poderá ver aqui o eco de pregações antigas em que se procurava demonstrar como, afinal, os rostos podem mudar mas a essência não muda? Como interpretar a afirmação «A Grande deusa dos egípcios esteve por muito tempo em nosso solo» (p. 32)? Mormente se levarmos em linha de conta que, logo de seguida, se cita Jean-Paul Bourre, autor do Dicionário Templário: «Os Templários a reverenciavam sob o nome de Mãe Natureza e, depois, sob o nome de Nossa Senhora»…
            Debruça-se Joaquina Celestino sobre a etimologia do topónimo Almortão, que também escreve Almotão e Almurtão. Considera que «parece aceitar-se ter origem em murtão, a moitão ou moutão ou, ainda, moita de murta» (p. 38). Dá impressão que aceita essa derivação a partir do nome da planta, quiçá abundante no local e à qual, por tradição, se atribuem propriedades terapêuticas e não desprovidas também de um certo halo esotérico; contudo, adverte logo a seguir: «Espero por último que não optem pela velha tese de “começa por AL, é de origem árabe” mesmo quando referenciam nomes muito anteriores às influências desse povo no nosso território. Ousem olhar mais além…» (p. 42). De facto, na página anterior, faz referência ao termo «muttam», da língua tamul do Sul da Índia, um idioma da família do indo-europeu (afirma), vocábulo que teria sido «transposto para o português como “moutão” (lugar onde há moitas, isto é, tufos de vegetação)»; e alude ao termo «mottam» do germânico antigo, com o significado de «lugar alto, monte de terra»; e, ainda, ao provençal «moutton». Uma incursão, reconheça-se, deveras sinuosa, quando se nos afigura normal que, tal como moitão é um lugar de moitas, murtão seja um lugar de murtas. Quanto ao prefixo al-, equivalente ao artigo definido ‘o’, ele foi aplicado pelos árabes a tudo o que era nome concreto, quer de objectos, quer de topónimos, independentemente da etimologia da palavra e da sua filiação neste ou naquele ‘estrato linguístico’. Por conseguinte, em meu entender, não carecemos de vaguear pelo Médio Oriente nem seguir pelo Malabar para se compreender que a designação de Almortão (com o ou com u) detém um significado físico relacionado com o específico revestimento vegetal do lugar – sacralizado ou não que ele seja.
            Parece desconhecer a Autora o que nesse domínio da religiosidade pré-romana se tem investigado, um domínio, aliás, controverso e eriçado de não poucas dificuldades. Embrenhar-se assim ligeiramente por elucubrações de ordem filológica, num terreno hoje basto palmilhado pelos investigadores, que, inclusive, periodicamente se reúnem nos colóquios sobre línguas e culturas páleo-hispânicas (em Valência, decorreu, no passado mês de Outubro de 2012, o XI da série, iniciada em Salamanca, em Maio de 1974), perdoar-me-á a Autora, mas é, no modo como discreteia, ingenuidade que, todavia, se compreende, atendendo à bibliografia a que teve acesso.

Um livro bem intencionado
A obra detém, no entanto, um interesse e uma actualidade flagrantes quando a encaramos como repositório do que se denomina «património imaterial»: as crenças, as festividades, a poesia popular… enfim, a alma de um povo nessas manifestações bem retratada.
Foi, pois, intenção da Autora dar a conhecer não apenas o que era hábito fazer-se em louvor da Senhora do Almortão, práticas prenhes de tradição e de religiosidade, mas também as «novas quadras» que a devoção à Senhora lhe inspiraram a ela e a outros também, verdadeiros «cantares de romaria», na peugada da ancestral inspiração enraizada nas trovas medievais, eco, quiçá, das Cantigas de Santa Maria, de Afonso X, de Castela. Um cancioneiro que, desta forma, aqui se deixa impresso em letra de forma, para que se não perca: «os louvores à Virgem, a Jesus e aos Santos; as preces, os agradecimentos, mas também os namoros, as flores, as árvores, os animais, as fontes, o ambiente que rodeia a ermida e até o próprio tempo que fazia. Quem as canta são, de acordo com a tradição, as mulheres» (p. 72-73).
Quadras bem ao jeito popular, numa sequência a que não falta o refrão (qual coro de vetustas representações teatrais!...), que, curiosamente, «na maior parte dos casos, nada tem a ver com as quadras cantadas» (p. 73), mas se retira de uma cantiga popular em voga e que bem presente está no ouvido das cantadeiras. E sempre, sempre, a presença indispensável do adufe, instrumento sobre que a Autora tece igualmente amplas considerações, não se esquecendo de citar, na p. 60, passagens bíblicas em que esse instrumento é referido: «Maria, a profetisa, irmã de Aarão, tomou um adufe, e todas as mulheres a seguiram, com as mesmas atitudes, cânticos e danças», lê-se logo no Êxodo (15, 20), o primeiro livro do Antigo Testamento.
Para além do cancioneiro, um outro contributo deveras importante nos traz este De Igaedo à Senhora do Alçmotão: as ilustrações! Quer sejam as já referidas pinturas naïves da Autora quer, de modo especial, o acervo imenso de fotografias, a documentarem todos os aspectos do lugar, as tábuas de milagres (pena que de reduzida dimensão…) e todos os passos das manifestações religiosas que em torno da Senhora se desenvolvem, uma Senhora cuja imagem é «de vestir» e que, por conseguinte, faz questão em envergar os mais requintados e magnificentes e valiosos mantos criados pelo desprendimento dos seus devotos (Fig. 4). Bem andou, por isso, a Câmara Municipal de Idanha-a-Nova em patrocinar a edição.

Um grito de alerta
            Não poderia, contudo, terminar esta apreciação crítica do livro de Joaquina Celestino sem me fazer eco, mais uma vez, do que já se sabia, do que se sabe, mas que… parece que continua a desconhecer-se! E há que recordá-lo, para que depressa se tomem as medidas urgentes que se impõem. Não vale a pena pensar-se na preservação do património imaterial se se esquece um outro, bem mais palpável, que é o património arqueológico.
Conta Joaquina Celestino o que sempre ouviu: «as vozes dos que trabalharam na construção do canal mestre que distribui a água da Barragem pela campina» (p. 30). Refere-se à Barragem Marechal Carmona, no rio Ponsul, inaugurada em 1946. E que contavam os trabalhadores? «Que pedaços de mosaicos e cerâmica de variegadas cores apareciam, constantemente, à frente das escavadoras; que também apareceram moedas e pequenas estatuetas; que tal sucedia, já mais recentemente, quando se lavrava a terra fosse com arados ou com tractores; que surgiam grandes potes de cerâmica…».
Trata-se de uma descrição do passado, dir-se-á, em que ainda não havia a consciencialização (nem a lei!) de que «grandes empreendimentos públicos ou privados que envolvam significativa transformação da topografia ou paisagem» (cito uma passagem da Lei de Bases do Património Cultural, a Lei nº 107-2001, de 8 de Setembro) têm forçosamente de se fazer com o devido acompanhamento arqueológico. Sim, é do passado! No entanto, o importante, o grave é o que a Autora escreve depois (p. 30), enterrando bem os dedos na ferida:
«Sei também que, ainda hoje, se apanha cerâmica pela campina fora; que continua a aparecer mosaico romano à frente dos tractores que lavram as terras e que há tambores de colunas em paredes, muitas, já em ruínas…».
E então? Vamos continuar assim?
Igaedus – divindade indígena, que deu nome aos Igaeditani, povo que teve cidade fundada, possivelmente no ano de 34 a. C., pelo procônsul Gaio Norbano Flaco, a civitas Igaeditanorum, que jaz sob o casario de Idanha-a-Velha cedeu seu lugar à Senhora do Almortão, padroeira também ela da fertilidade agrícola da campina e da riqueza das suas apetecidas minas de ouro. Requer-se hoje que, além da protecção espiritual, uma efectiva protecção político-administrativa venha a concretizar-se.
Gostaríamos que Joaquina Celestino, que até foi orientadora de estágios (daí a sua preocupação em apresentar, no final, explicações das fotos, uma cronologia e um glossário), nos houvesse proporcionado obra com maior rigor histórico, inclusive na forma de citar os autores consultados. Não teria sido despropositado que houvesse incluído na bibliografia não só o livro clássico do seu (e meu!) Mestre, D. Fernando de Almeida, Egitânia, História e Arqueologia (Lisboa, 1956), mas também um artigo dele que esteve, decerto, na origem do seu entusiasmo – «Igaedus, divindade lusitana, e a Senhora do Almortão» Revista da Faculdade de Letras de Lisboa, 3ª série, 8, 1964, p. 65-73 – artigo que motiva um dos seus desenhos naïfs (Fig. 5), mas que, incompreensivelmente, não inclui na bibliografia da p. 165. Igualmente não se acredita que, idanhense de gema, não haja tido conhecimento da obra de Ana Marques de Sá, Civitas Igaeditanorum: Os Deuses e os Homens, editada precisamente pelo Município de Idanha-a-Nova, em 2007.
É, pois, uma obra que importava fazer, para desbravar terreno, para levantar questões e, sobretudo, para registar um património imaterial sempre em risco de se perder na época de matriz materialista em que estamos sobrevivendo.

Publicado em Cyberjornal, edição de 14 de Fevereiro de 2013:
http://www.cyberjornal.net/index.php?option=com_content&task=view&id=17858&Itemid=30