quarta-feira, 29 de abril de 2020

«Está um lindo dia pra sorrir!»


       Duas secções reúnem as preferências dos leitores, sobretudo da imprensa local e regional: a necrologia e uma outra, que nunca a ser mesmo secção porque, amiúde, quase serve para tapar um buraco na paginação. Essoutra poderia chamar-se prosaicamente «anedotas» ou, de preferência, «Rir é o melhor remédio». Prefiro este título porque, dizem os entendidos, rir ou, simplesmente, sorrir é atitude que faz trabalhar todos os músculos da cara e, desta forma, se mantém um rosto livre de desgostoso encarquilhamento. Recordo-me de um conferencista que incitou a assistência a abrir a janela pela manhã e proclamar «Está um lindo dia pra sorrir!». Desde esse dia, o despertador do meu telemóvel tem mesmo essa frase! E dá resultado!
            Com isto tudo, perdi a necrologia pelo caminho; mas não interessa, porque toda a gente sabe porque é que gosta de ler a necrologia!...
            Dizem que o Português é danado para anedotas. As picantes, as menos picantes, as de humor negro (estas, umas das preferidas)... Sempre ouvi afirmar que, no decorrer da II Grande Guerra, corria uma observação: «Se queres ouvir uma boa anedota sobre a guerra, vai a Portugal!».
            Portanto, guerra é guerra, Covid-19 dá-nos luta e nós já lhe declarámos guerra cerrada. Esse, o motivo porque recebemos diariamente uma catrefada de anedotas acerca do malandro. Sim, malandro é e não tem graça nenhuma. Entra, sorrateiro, goelas adentro, instala-se, nem sequer atira um piropo às células, o que ele quer é comê-las e leva tudo de vencida. Poderia ainda fazer uma pausa, encantar-se com uma ou outra das celulazinhas que tão sossegadas estavam no seu labor e ficar enamorado, quietinho. Nada! É para matar, é para matar e pronto! Violência doméstica ao mais alto grau! E pobres dos leucócitos que nem tempo lhes dá para entrarem em acção.
            De violência se queixou também o canito:
            – Raios o partam, esse tal de covid! Toda a vizinhança me quer levar a passear. Estou que nem posso!
            Do vírus não escapou a Última Ceia, de Leonardo da Vinci, que, como se sabe, se mostra no Convento de S. Maria delle Grazie, em Milão, um dos epicentros da peste. Primeiro, Cristo e os Apóstolos fugiram com medo; depois, voltaram, mas houve logo quem deles fizesse queixinha e entrou a guarda:
            – Andor!... O que é?... Quero lá saber quem é o teu pai!... Isto é um ajuntamento, tá proibido, tudo prá esquadra já!

                                                                  José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 775, 01-05-2020, p. 12.

sábado, 18 de abril de 2020

Os vizinhos


            D. Lurdes morava paredes-meias com o professor.
            Quando se encontravam, era habitual o «Olá, vizinha, como vai?», «Olá, vizinho, bom dia!».
            Um dia, porém, o professor tomou posse como Presidente da República. Dias depois, ao reencontrá-lo, D. Lurdes ficou atrapalhada, porque não sabia como falar-lhe. O professor apercebeu-se da atrapalhação e saudou:
            – Olá, vizinha!
            E ela respondeu como dantes:
            – Olá, vizinho, como vai?
            E riram-se, num cumprimento amigável.
            A história é real, como facilmente se compreende.
            E conto-a em pleno auge da pandemia do coronavírus, quando imagino – como todos, decerto – que a História futura, caso a Humanidade consiga sobreviver, terá a partir de 2020 uma nova cronologia a. C. e d. C., em que o C. significará não Cristo mas Corona. Vamos, não há dúvida, alterar por completo o nosso paradigma de vida, dar muito menos importância a pormenores que ora vemos serem de nenhum interesse e dar muito maior importância a outros, como este da vizinhança.
            Um amigo meu, por sinal poeta com obra publicada, já com a provecta idade de mais de 80 anos, «desapareceu do mapa». Perguntei por ele aos vizinhos e amigos mais chegados, porque não atendia telefone nem telemóvel nem respondia ao correio electrónico. Sabia-se que ele tinha um filho, que por sinal nunca se vira. Perguntei na Junta de Freguesia com a qual ele amiúde colaborara. Ninguém sabe do senhor! Vagamente, que foi para um lar. Desconhece-se qual, desconhece-se o contacto do filho… E todos estamos com pena de não lhe poder falar, dar-lhe quiçá uma palavra de alento. Se calhar, até já faleceu e ninguém disse nada!
            No tempo dos Romanos, os habitantes de um «vicus», a aldeia, eram os «vicini», os vizinhos. De «vicus» veio «beco», passagem estreita. Não são becos as nossas aldeias e bairros, mas essa prístina ideia de proximidade deve continuar a prevalecer. Não apenas na saudação matinal «olá, vizinha!» mas no facto de termos de todos os vizinhos e eles terem de nós os necessários contactos, para mantermos estreitas as relações em tempo de… pandemias! E não só!

                                                                       José d’Encarnação
Publicado em Noticias de S. Braz [S. Brás de Alportel] nº 281, 20-04-2020, p. 15.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

A força do poder autárquico

            Mandar pôr a bandeira a meia haste em sinal de luto pela primeira vítima cascalense do vírus que nos assola e, também, por todos os que têm sucumbido poderá parecer um acto menor.
            Não creio.
          Simboliza, para além do mais, a presença do poder autárquico e constitui a prova do que amiúde se proclamava mas nunca deveras se sentira: são os executivos das câmaras municipais e das juntas de freguesia que estão mais perto da população, que sentem os seus anseios, que – se lhes derem meios – melhor e mais eficazmente os podem satisfazer.
            Mais uma vez, Cascais está na linha da frente desse combate e soube ocupar a posição que o Governo central não poderia. A comunicação diária do Presidente aos munícipes a dar conta do que se está a fazer, e como, mostra bem o que deve ser essa imprescindível política de proximidade.
            Nunca como nestes dias se viram nas televisões tantos nomes de presidentes de Câmara ou de Juntas de Freguesia a pugnar pelos seus munícipes e fregueses. Nunca como nestes dias se arvorou bem alto o que Cascais há muito arvora: as pessoas em primeiro lugar!
            Muito há, pois, para nos congratularmos.
            Todos estamos plenamente conscientes que vai haver um d. c., «depois do corona».
            Mudará seguramente o nosso modo de vida, porque já é um encanto olhar para além do mar e ver, nítido, a sul, o Cabo Espichel, porque drasticamente diminuiu a poluição atmosférica.
            Já começamos a ter noção mais clara do que é ser vizinho e da necessidade de haver os contactos de uns e outros, não para andarmos metidos em casa alheia, mas para sabermos se está tudo bem e comunicar no momento em que se dá conta de alguma anomalia.
            Já começamos a saber responder ao «bom dia!», à «boa tarde!».
            Quanto estranhava, até há pouco, quando, no passeio pelo bairro com o Spike, eu saudava quem se cruzava comigo e nenhuma resposta eu recebia. Agora, não! Até o condutor do autocarro se saúda, por se reconhecer o seu labor social, o seu espírito de serviço. Justamente isso me chamou a atenção em Londres: saudava-se o motorista ao entrar no autocarro, ele respondia num sorriso, e agradecia-se-lhe ao sair e ele correspondia!
            Uma palavra ainda para a Comunicação Social local e regional.
            É nestas ocasiões que o seu papel se mostra imprescindível. Uma rádio local que nos mantenha informados, um jornal que supra as mil e uma mensagens que nos atafulham o telemóvel e nós queremos é saber do nosso concelho, da nossa terra!
            O director de um dos jornais a que mui gostosamente dou colaboração pensou em suspender a publicação, devido a não existirem eventos a noticiar nem publicidade que o mantivesse. E o executivo camarário impôs-se: «Não, senhor! Publica, pois! Nós ajudamos!».
            Vamos tendo máscaras, centros de diagnóstico, alojamento em hotéis e alimentação para o pessoal da linha da frente, graças à forte colaboração de todos. Rapidamente, os técnicos alteraram as linhas de produção para satisfazerem as necessidades prementes…
            Vamos levar a embarcação a bom porto!

                                               José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 321, 2020-04-08, p. 6.

sábado, 4 de abril de 2020

O gigante com os pés de barro

               Inevitável que a crónica de hoje seja a propósito do que, a nível planetário, estamos a viver, o clima de guerra biológica total.
            E ocorreu-me, necessariamente, como de certeza ocorreu a muitos, a imagem da grande estátua com os pés de barro, imagem amiúde usada para mostrar que, para ser grande em todos os pontos de vista, importa sê-lo da cabeça até aos pés! E os gigantes de pés de barro, afinal, ostentam ser deslumbrantes, mas faltam-lhes as bases – e leve enxurrada basta para que toda a sua prosápia caia por terra.
Grande era, até ao aparecimento do coronavírus, quem detinha enormes empresas ou inabalável potencial bélico!... E um viruzinho malandro, surgido não se sabe bem donde, às escondidas, veio mostrar que isso das grandes empresas, do poder político e económico imperturbável, do potencial bélico constituía, afinal, presa fácil de um bichinho minúsculo, invisível a olho nu, que até nem se sabe como se propaga nem que cara tem, ainda que, nos ecrãs das televisões, nos aparecer a sua imagem esférica, cheia de pólipos ameaçadores. A imagem até nem é desengraçada de todo e vai, decerto, servir de modelo para peluches, quando a pandemia passar…
            Outras imagens nos surgem também: as da guerra no Médio Oriente. E não só. As intermináveis filas de refugiados a caminho de fronteiras, para além das quais (pensam!) as condições de sobrevivência serão melhores. E nós, os que, felizmente, nascemos num pais pequenino e minimamente sossegado, nós, que não temos a menor ideia do que seja isso de andar com os parcos pertences às costas, fugindo às balas e às armadilhas, nós ouvimos falar da imagem «a vida é como um carrossel, ora estamos em cima, ora em baixo», como em montanha russa, mas não consciencializamos exactamente o que é mesmo essa história da precariedade da vida. Sim, o treinador de futebol, mesmo que o clube tenha vendido os melhores jogadores, é obrigado a ganhar sempre, sob pena de ser despedido. Hoje está nos píncaros, amanhã, se a equipa perder, é ele que perde e vai para o mais profundo dos infernos. Há um dito latino que o retrata bem «sic transit gloria mundi!», «assim passa a glória do mundo!»…
            Passa, passagem, transitoriedade, caminhada…
            Nestes dias de quarentena, fomos obrigados a parar. E é bom parar. David Kundtz escreveu mesmo um livro a que, na tradução portuguesa, se deu o título de «Parar (Como parar quando temos de continuar)». E esta paragem forçada despertou-nos, na verdade, para um novo paradigma. Depois do coronavírus, nada nas nossas vidas vai ser como dantes!

                                                      José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 774, 01-04-2020, p. 11.