sábado, 4 de abril de 2020

O gigante com os pés de barro

               Inevitável que a crónica de hoje seja a propósito do que, a nível planetário, estamos a viver, o clima de guerra biológica total.
            E ocorreu-me, necessariamente, como de certeza ocorreu a muitos, a imagem da grande estátua com os pés de barro, imagem amiúde usada para mostrar que, para ser grande em todos os pontos de vista, importa sê-lo da cabeça até aos pés! E os gigantes de pés de barro, afinal, ostentam ser deslumbrantes, mas faltam-lhes as bases – e leve enxurrada basta para que toda a sua prosápia caia por terra.
Grande era, até ao aparecimento do coronavírus, quem detinha enormes empresas ou inabalável potencial bélico!... E um viruzinho malandro, surgido não se sabe bem donde, às escondidas, veio mostrar que isso das grandes empresas, do poder político e económico imperturbável, do potencial bélico constituía, afinal, presa fácil de um bichinho minúsculo, invisível a olho nu, que até nem se sabe como se propaga nem que cara tem, ainda que, nos ecrãs das televisões, nos aparecer a sua imagem esférica, cheia de pólipos ameaçadores. A imagem até nem é desengraçada de todo e vai, decerto, servir de modelo para peluches, quando a pandemia passar…
            Outras imagens nos surgem também: as da guerra no Médio Oriente. E não só. As intermináveis filas de refugiados a caminho de fronteiras, para além das quais (pensam!) as condições de sobrevivência serão melhores. E nós, os que, felizmente, nascemos num pais pequenino e minimamente sossegado, nós, que não temos a menor ideia do que seja isso de andar com os parcos pertences às costas, fugindo às balas e às armadilhas, nós ouvimos falar da imagem «a vida é como um carrossel, ora estamos em cima, ora em baixo», como em montanha russa, mas não consciencializamos exactamente o que é mesmo essa história da precariedade da vida. Sim, o treinador de futebol, mesmo que o clube tenha vendido os melhores jogadores, é obrigado a ganhar sempre, sob pena de ser despedido. Hoje está nos píncaros, amanhã, se a equipa perder, é ele que perde e vai para o mais profundo dos infernos. Há um dito latino que o retrata bem «sic transit gloria mundi!», «assim passa a glória do mundo!»…
            Passa, passagem, transitoriedade, caminhada…
            Nestes dias de quarentena, fomos obrigados a parar. E é bom parar. David Kundtz escreveu mesmo um livro a que, na tradução portuguesa, se deu o título de «Parar (Como parar quando temos de continuar)». E esta paragem forçada despertou-nos, na verdade, para um novo paradigma. Depois do coronavírus, nada nas nossas vidas vai ser como dantes!

                                                      José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 774, 01-04-2020, p. 11.

2 comentários:

  1. A crónica, muito bem escrita como só o meu Amigo sabe, é uma análise reflexiva sobre a nossa existência precária e a efemeridade da glória. Mas a qualidade humana de quem ficar é que vai determinar quão profunda será a inevitável mudança. Seria tão bom que não assistíssemos a mais diásporas, a tanta humilhação de seres humanos que sentem como todos os outros, a tanta exploração infantil...

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