quarta-feira, 26 de maio de 2021

Verde, verde, verde!

            Não, não escolhi este título por o Sporting Clube de Portugal – cuja cor é o verde dos lagartos – ter logrado sagrar-se campeão nacional de futebol. Respeito o clube e os seus adeptos, como sei que me respeita a mim, benfiquista desde que me conheço e até os nossos cães, em casa de meus pais, sempre se chamaram Benfica!

            A razão prende-se por ser cor que está na moda e cronista que se preze deve, uma vez por outra, obedecer aos parâmetros em voga. De facto, ele é o combustível verde, a onda verde (essa já existe há muito tempo, para regalo dos automobilistas em Lisboa)… ‘Minuto verde’ é nome de programa televisivo e radiofónico onde se explica tintim por tintim como, no dia-a-dia, uma pessoa pode contribuir para o planeta se tornar mais verde, na convicção de que «grão a grão» até seremos capazes de pôr isto melhor do que está. Ilusões, claro, porque o verde que mais ordena é outro, o das notas graúdas!... Assim como assim, vamos adormecendo de consciência mais tranquila.

            Para mim, o verde tem uma raiz mais profunda e essa nunca esmoreceu, vem dos bancos da Primária e tinha outro nome: fotossíntese. Claro, na altura, eu ainda não sabia que «foto» é palavra grega que significar «luz» nem que ‘síntese’ é assim a modos de uma mistura íntima, como aquele abraço quentinho de que tão precisados andamos;  mas a senhora professora explicou direitinho que as folhas verdes das plantas, por acção da luz solar, faziam a fotossíntese, ou seja, agarravam no anidrido carbónico do ar, um gás mau, roubavam-lhe o carbono e soltavam o oxigénio, que lá ia alegremente dar alento aos passarinhos e aos homens também. Abençoado esse verde! Por isso devíamos respeitar as árvores e ter plantas para o oxigénio nunca faltar e a gente não morrer asfixiada.

            Eu cá penso que foi por isso, tantas décadas passadas, que achei piada aqui ao município vizinho agora se chamar Oeiras Valley! Oeiras (só) era nome sem graça nenhuma, embora os eruditos saibam que pode vir de aurarias, um qualificativo latino das areias do Tejo, porque elas traziam pepitas de ouro. Quem é que ia lá esmiuçar isso das origens romanas! E viraram-se, pois, para os ingleses – sim, esses que abandonaram a União Europeia e até nem arrebanharam um votinho só que fosse, no Festival Eurovisão da Canção, os desgraçadinhos… Portanto: o «vale de Oeiras», se esta é a tradução correcta. Certo é, todavia, que a palavra não remete, de certeza, para o «vale de lágrimas» da Salve-rainha nem para o «Vale dos Reis», que é local do Antigo Egipto onde magnificamente se sepultavam faraós.


Por isso, para que não houvesse dúvidas nenhumas,  editou o município o número «Especial Espaços Verdes» (92 500 exemplares!).
 
Título em maiúsculas
OEIRAS,
VIDA COM MAIS VERDE.
«770 hectares de áreas verdes: 43 m2/habitante»!
 
Palavras-chave: «qualidade de vida, lazer, biodiversidade, natureza, bem-estar, saúde» – e, em fundo, as águas límpidas e remansadas duma ribeira, sem casa nenhuma por perto… Idílico! – aqui ao lado!

                                 José d’Encarnação

            Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 334, 2021-05-26, p. 6.

 

sábado, 22 de maio de 2021

Ah, barrocalense duma figa!...

             Rodrigo Aleixo, de 11 anos, no programa Got Talent Portugal de 25 de Abril
– «Ê sou muito vergonhoso, mas quando canto…».
Tem o professor, mormente o universitário, o privilégio de lidar com estudantes de várias zonas do País. Apanha, por isso, o jeito de falar de cada uma. Aliás, essas diferentes entoações de voz e uso de palavras específicas de cada região acaba por determinar a alcunha pela qual vêm alguns a ser conhecidos: é o Alentejano, o Alvito, o Viseu, o Galafura…
            Há muito ano que eu não ouvia o termo «vergonhoso», próprio do nosso Sul e extremamente adequado, sobretudo quando aplicado a uma criança, que se diz envergonhada, como foi o caso do Rodrigo, que, nesse programa, a todos encantou pela simplicidade e enorme talento na interpretação, com os grandes, do cante alentejano.
            As palavras, os gestos, a maneira de ser caracterizam, de facto, as gentes daqui e dacolá. O Homem do Barrocal, por exemplo, tem, a meu ver, um pouco como o alentejano, a resposta na ponta da língua, não para ser ‘engraçadinho’ – como, amiúde, outros acham – mas porque isso lhe está no sangue.
            Tu dizes um piropo. Arriscas-te a ouvir resposta airosa – tu ris e a menina ou a senhora ri também. Maldade nenhuma! E vamos andando!
            Deixas cair uma coisa: «Do chão não passas!» – e vamos andando. Sem afeleação.
         «Não botes qu’ê nam bebo!» – a garrafinha do medronho estava mesmo no fim e… vamos andando!
            – Então, menino, como é que tu te chamas?
            – Ê nam me chamo, chamam-me!
            Ora toma! E o catraio ainda não tem três anos!...
            O garoto caiu, magoou-se, ficou choroso:
            – Deixa lá, môce, isso com o andar disfarça e, parado, não se nota!
            Ah, barrocalense duma figa!...

                                                                       José d’Encarnação

 

quarta-feira, 19 de maio de 2021

Em prol da língua portuguesa

            Celebrou-se, a 5 de Maio, o Dia Mundial da Língua Portuguesa, na sequência de uma decisão da UNESCO em Novembro de 2019.
A língua mais falada no hemisfério sul e a quinta no Mundo merece, pois, essa honra e que nós, os seus falantes, nos habituemos a logo verter para português os termos ingleses que enxameiam textos, anúncios, programas… Que ponhamos a mão na consciência e saibamos rapidamente escolher as palavras mais adequadas – nossas! – para baptizar as novas realidades.
E, por falar em baptizar, lembrei-me de dois casos, por ser no baptismo que se escolhem os nomes para os neófitos.
O menino nasceu no ano em que o cometa Halley nos visitou (1986). O pai quis perpetuar a ocorrência dando ao filho o nome do astro, na perspectiva de ele o poder ver daí a 76 anos. No registo brasileiro, porém, era proibido, na altura, escolher nome com consoantes duplas. Então, o pai mudou para Harley, por sinal, sem o querer, o nome da famosa marca de motas. Por isso, quando lhe perguntam o nome, Harley, pintor da construção civil, responde sempre:
– Harley, como o nome da mota!
E lá se foi a evocação do cometa!...
       Um outro colaborador nosso, electricista, tem cafuso no endereço electrónico. Cafuzo? – perguntei-lhe. E a situação fora esta: quando moço pequeno, ao ver os mascarados do Carnaval, homens vestidos de mulher, outros mascarados de bichos… tudo isso, dizia ele para os amigos, «tudo isso me deixa muito cafuzo». Confuso queria ele dizer. E Cafuzo ficou a ser o seu nome artístico: Nuno Cafuzo!...
            Não soubéssemos nós a história dum e doutro, bem andaríamos às aranhas à procura de bem estranhas etimologias!
 

José d’Encarnação

 
Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 799, 15-05-2021, p. 11.
 
 Post-scriptum: Pela Cartilha Maternal se aprendia a ler, a escrever e a pugnar pela Língua Portuguesa. Obra notável de um pedagogo singular. Aqui se reproduz, com a devida vénia, a capa de uma das edições, que ilustrou o artigo de José Belchior sobre João de Deus na SBA Revista de Cultura, 2, Maio de 2021, p. 14-21.











quinta-feira, 13 de maio de 2021

Que queriam os bracarenses da Beja romana?


Texto José d’Encarnação, arqueólogo

Ilustração Zé Luís Madeira

Não há fumo sem fogo e se eles, aí pelos finais do século II, se organizaram em sodalício, é porque alguma intenção teriam! E qual seria? Secreta ou à vista de todos? Essa é a questão que se levanta depois de lermos uma das inscrições romanas mais enigmáticas da Beja romana. Enigmática porque lhe falta uma das letras mais significativas e porque o tempo se encarregou de delir a superfície epigrafada, impedindo-nos, pois, de ter certezas.

Essa inscrição foi gravada numa placa que está no Museu Regional Rainha D. Leonor, com o n.° de inventário B-36, incrustada numa das paredes do claustro. De mármore cinzento de Trigaches, mede 29 cm de altura, 38 de largura e oito de espessura. A sua existência só foi revelada, quanto se sabe, por Abel Viana, quando procedeu à elaboração do catálogo da Secção Lapidar do Museu, publicado logo nos números I e II do seu “O Arquivo de Beja”.

Dada a importância do espólio aí estudado, mandou fazer separata com o título “Museu Regional de Beja – Secção Lapidar”, vinda a lume em 1946. É na página 11 desse livrinho que vem reproduzido o que o sábio antes escrevera, tendo dado à inscrição o n.º 8. O espólio lapidar do museu foi crescendo, haveria, por outro lado, algumas correções a fazer ao que fora dado a conhecer e, por isso, Abel Viana voltou ao tema no n.º IV da revista.

Tem uma razão este esmiuçamento de publicações. É que, de 1944 a 1947, vão três anos e Abel Viana não terá reparado que nada dissera acerca das circunstâncias do achado dessa inscrição. Quiçá também se não tenha apercebido logo do seu elevado alcance histórico. A placa dera entrada no museu, integrada naturalmente no abundante número de achados que, na altura, se faziam no perímetro urbano da cidade e nada mais haveria a acrescentar. Por conseguinte, uma primeira conclusão se poderá retirar desta ausência informativa: a placa foi recolhida na cidade, porque estamos certos de que, vinda doutro local, Abel Viana não deixaria de o referir.

UMA INSCRIÇÃO… MISTERIOSA!

Mas, afinal, que é que essa epígrafe tem de especial?

Para já, um motivo de arrelia: “tem quebrados os ângulos superior esquerdo e inferior direito”, como Abel Viana anotou. E, embora apresente a leitura que logrou fazer e comente algumas das suas especificidades, comenta: “As três últimas linhas têm falta de muitas letras, devido aos tratos sofridos pela lápide”. E por aqui se fica.

Acontece, porém, que há nesse texto em latim – no que se consegue apurar bem – algumas expressões fora do comum: ‘Deo invicto, sodalicium Bracarorum, sua impensa fecerunt e magister’.

‘Deo invicto’ significa que a inscrição foi dedicada a um “deus invencível”. A sua identificação mais precisa estaria no tal pedaço de lápide que desapareceu. No tempo dos romanos, “invencíveis” costumavam designar-se dois deuses, que – aqui para nós – são praticamente equivalentes nas suas funções e características, de tal modo que, por vezes, aparecem identificados: o Sol e Mitra! Divindades muito veneradas sobretudo na parte oriental do Império e cujo culto se revestia de um certo secretismo. Nem todos poderiam participar nas cerimónias, só depois de terem sido aceites pela comunidade dos crentes... Ambos com sua luz resplandecente iluminariam os seus fiéis em todas as circunstâncias da vida!

Portanto, de acordo com os especialistas, a rotura teria levado o M de Mitra ou o S de Sol. ‘Sodalicium Bracarorum’, por seu turno, tem ainda mais que se lhe diga! O sodalício era o que poderíamos designar de “corporação”, por comparação com a tonalidade económica que o termo detém em português e com a função que também tinha na época romana; se preferíssemos “confraria”, a tónica seria acentuadamente religiosa e também não andaríamos longe da verdade, porque amiúde os ‘sodales’ (assim se designavam os seus membros) se constituíam em grupo em torno da devoção específica a determinada divindade. Aqui, seria um “deus invicto”!

A palavra ‘Bracarorum’ significa “dos Brácaros”, ou seja, dos naturais da cidade de Bracara Augusta, a atual Braga. Hoje, preferiríamos chamar-lhes bracarenses. E não deixará de ser curioso verificar, a esse propósito, que se conhece desde pelo menos o século XVIII uma inscrição dessa cidade, achada “junto ao monte de Penas” (a colina de Maximinos, fertilíssima em achados romanos),em que se fala de um “sodalício dos urbanos”, isto é, dos que habitavam a cidade, o que prova que o termo era aí usado comummente.

Sua ‘impensa fecerunt’ quer dizer “fizeram a expensas suas”. O facto de a expressão vir por extenso é sintoma de que faziam gala em que tal constasse sem dúvidas. Por outro lado, isso indicava que era um grupo de posses. ‘Magister’ significa, neste caso, “presidente”. O sodalício estava, pois, organizado como devia ser e consta no texto que foi o presidente, um tal Méssio Artemidoro que, para que tudo constasse, diligenciou no sentido de ser gravada a inscrição.

E QUE FARIAM AQUI OS DE BRAGA?

A pergunta tem toda a razão de ser, porque não é sem mais nem menos que, numa cidade estranha, com a categoria de capital administrativa de todo o Sul da Lusitânia romana, um grupo de forasteiros se organiza. E lembramo-nos, os de hoje, das Casas do Benfica ou do Sporting, ou, em Lisboa, das Casas do Alentejo ou do Algarve, com a sua organização e os seus objetivos claramente de defesa, estas últimas, dos interesses regionais. Será que em Pax Iulia havia interesses bracarenses a defender? E que motivo teria levado os naturais de Braga a instalarem-se na Beja romana?

Importa, antes de responder à pergunta, explicar que, entre as hipóteses de interpretação do facto concreto que poderia ter levado à gravação da inscrição, se aventa a de se tratar da inauguração da sua sede, um ‘studium’, equivalente à nossa palavra “estúdio”, como local de reunião e de reflexão. E nesse estúdio se teria colocado uma ‘crátera’, vaso que se usava nas libações em honra das divindades, como, hoje, há o cálice e também, em cerimónias mais solenes, o turíbulo para o incenso.

Por conseguinte, função religiosa, de culto, teria de haver; mas… seria a única? Não poderia funcionar tal sodalício como lóbi? Creio bem que sim, sobretudo tendo em conta a estratégica posição de Pax Iulia, capital político-administrativa, em relação aos campos derredor e no estreito relacionamento com o Norte de África romano.

Dir-se-á: elucubrações! Talvez não. Não temos no catálogo das inscrições romanas de Beja aquela em que Gaio Blóssio Saturnino, cidadão a que os pacenses deram o estatuto de “residente” (‘incola’, em latim), o equivalente ao nosso “cidadão honorário”, sendo ele Napolitanus Afer, isto é, natural da Colonia Iulia Neapolis, cidade que ficava perto da atual Nabeul, na Tunísia?

Não se falará da riqueza agrícola, dos férteis campos – que já o seriam há dois mil anos. Acentuar-se-á, de modo especial, o facto de a cidade ficar muito perto de Vipasca, o couto mineiro de Aljustrel, explorado pelos romanos. Aliás, não será despropositado referir que uma inscrição romana achada em Garvão, no concelho de Ourique, constitui o epitáfio de Ladrono, cujos familiares não hesitaram em aí mencionar que ele era ‘Bracarus’! Daí se poderá induzir que essa comunidade fazia questão em se manifestar para, naturalmente, melhor se evidenciar entre os demais.

Fica assim justificado o elevado interesse histórico que singela placa, meio delida pelo tempo, detém para o estudo das migrações de outrora. Já em 1970, o historiador Georges Fabre, ao estudar o tecido urbano do Noroeste peninsular; sublinhava: “Recordemos também que estes migrantes não se movimentam num meio hostil. Podem, desde logo, estabelecer relações com compatriotas já instalados: existem verdadeiros agrupamentos organizados, como em Pax Iulia, onde se faz menção dum ‘sodalicium Bracarorum’, uma confraria, uma tertúlia que devia permitir às gentes originárias de Bracara que fossem aconselhadas e defendessem, se fosse caso disso, os seus interesses”.

             Publicado em Diário do Alentejo [Beja], 04 de maio 2021.

 

quinta-feira, 6 de maio de 2021

Um alqueire de cevada – para quê?

            A João Roiz de Castelo Branco, regressado do Norte de África, onde pelejara, atribuiu el-rei a pensão de 1300 reais e um alqueire de cevada por dia. Esse alqueire foi, entre outros temas, abordado por António Salvado, na carta aberta que escreveu a esse incomparável poeta do século XVI: para que quereria ele a cevada? 
      
            Creio poder jurar que não haverá ninguém minimamente apreciador da literatura portuguesa que não conheça e, porventura, não tenha aprendido de cor o que é, para mim (e penso que para muitos outros) o mais sentido poema lírico alguma vez vertido na língua de Camões: «Senhora, partem tão tristes / meus olhos por vós, mee bem, / que nunca tão tristes vistes / Outros nenhuns por ninguém». A enorme tristeza de quem abala, na certeza de que não voltará a encontrar por perto os olhos da sua amada…
          Quis António Salvado voltar a debruçar-se sobre a vida e a obra deste poeta albicastrense. Escreveu-lhe uma carta aberta e reeditou, amplamente comentada, a escassa obra conhecida de João Roiz Trata-se do livrinho Leituras XIII, editado, em 2020, pela Universidade Sénior Albicastrense (48 páginas).

            A 2ª parte do volume, a referida reedição, merece o maior encómio, na medida em que as mais de 80 notas de rodapé ajudam a compreender cabalmente não apenas a citada cantiga, mas a resposta em verso dada por João Roiz, na sua qualidade de contador da Guarda, ao vedor da moeda de Lisboa, António Pacheco, assim como as trovas enviadas a Antão da Fonseca, que estava em Alcácer-Ceguer. António Salvado recuperou também, traduzindo-os do castelhano,  o vilancete e respectiva glosa, dirigidos por um fictício João Colhado ao «negligente pastor», que, por andar perdido de amores, descuidara o seu labor: «Que o amor me tem roubado / a força com seu poder, / tem-me o repouso tirado / e tem-me todo afastado / de tudo o que dá prazer».
Louve-se a beleza da tradução, aplauda-se a reedição da obra completa, mas regozijo haja também por, assim neste jeito de despretensiosa missiva, António Salvado ter aproveitado para comentar e realçar alguns dos aspectos maiores da vida e obra de João Roiz de Castelo Branco, no pouco que dele se conhece.
E é aí que se insere a pergunta: por que carga de água se estipulou como tença para João Roiz um alqueire de cevada? «Eras dono de alguma cavalgadura que alimentarias diariamente?», pergunta-lhe António Salvado, que, de resto, se interroga também acerca da razão por que ao poeta fora atribuída uma pensão: «Em virtude das tuas acções como militar no Norte de África?». Talvez.
Perpassa, afinal, por toda a obra de Joaão Roiz uma crítica bem clara ao Portugal do seu tempo – e esse aspecto, quiçá, tenha estado obnubilado pela excepcional beleza do seu poema «Senhora, partem tão tristes…». Sim, ele partiu – mas para onde? De Lisboa para a Beira, fica-se a saber. E é todo o encanto dessa sua nova vida que surge, por exemplo, na carta ao amigo Pacheco, em contraste com o ambiente lisboeta. ¿Um novo «Velho do Restelo» plasmado nestes versos «Armadas idas d’além, / já sabeis como se fazem, / quantos cativos lá jazem, / quantos lá vão que não vêm!»?
E porque não?
Vivera mal em Lisboa, as mantas cheias de pulgas («onde era a pulga tanta / quantas sabeis que matei»; na província, «gastamos nossas vidas em capas, gibões e saias…».
O ‘regresso à terra’ constitui, como se sabe, tema recorrente desde os tempos dos poetas clássicos Horácio e Virgílio, no contraste entre o fátuo frenesim urbano e o sereno bucolismo campestre. Não deixa, porém, de vir a propósito, a meu ver, a comparação entre a atitude de João Roiz de Castelo Branco e a que tivera, 400 anos antes, Ibne Mucana, o poeta árabe de Alcabideche:

«Deixei os reis cobertos com os seus mantos, deixei de ir em seus cortejos. Converti-me, em Alcabideche, em colhedor de espinhos com uma foice guarnecida e afiada. E se me perguntam: Gostas? Respondo-lhes: “O amor à liberdade faz parte do coração nobre”»

Ibne Mucana andara a versejar pelas cortes dos reinos de taifas; cansou-se e regressou à terra natal. Assim, João Roiz.

Desta sorte, em Leituras XIII – mais uma vez, o eco reflexivo de uma leitura feita (e que leitura essa foi!) – Antonio Salvado nos presenteia com uma reflexão. A dele consubstanciada na de João Roiz. Ambos albicastrenses que de longe vêem Lisboa…

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Gazeta do Interior [Castelo Branco] nº 1689, 05-05-2021, p. 6.