terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Quero ronronar no teu colo!

           Cativa-nos e ficamos mui solidários, ao ouvirmos, nas notícias, que um punhado de voluntários e mesmo soldados não descansou enquanto não conseguiram retirar do 3º andar daquela casa semidestruída por um míssil o gatinho da família ora completamente desalojada.

Sensibiliza-nos – e bem o compreendemos – que o sem-abrigo haja escolhido para companhia aquele cão que dorme serenamente a seu lado e nunca o larga; com ele partilhe, em primeiro lugar, o magro naco de pão que o passante lhe deu.
Sorrimos, satisfeitos, ao ver que o urso, um dia salvo da morte, salte de júbilo para os braços de quem dele cuidou.
Continuamos a emocionar-nos com o cão que, diariamente, vai deitar-se junto à campa onde sabe que lhe sepultaram o dono. Aí, longos meses passados, também ele acabou por morrer.
Agrada-nos ver os biquinhos amarelos bem abertos das crias daquele casal de melros, no ninho, cabecinhas no ar, ao sentirem a aproximação da mãe ou do pai que lhes trazem o apetitoso cibo.
Encanta-nos saber que, pela manhãzinha, aquele casal de rolas bate à janela da Fernanda e não descansa enquanto ela lhe não deita umas migalhas. E o gato, mal a sente levantar-se, corre para a casa-de-banho, porque não dispensa, ronronando, a sua terna escovadela matinal.

           Aconchegamo-nos perto da lareira, à noite; vem ter connosco o cão e deita-se-nos ao pés, não sem antes nos solicitar uma carícia na cabeça; e o gato olha-nos, em ar interrogativo: «Quero ronronar no teu colo; posso?».
Quando regressa ao grupo, após uma ida em busca de alimento ou simplesmente para vadiar, o macaco chega-se ao patriarca, deita-se-lhe ao pé e ali fica sossegado, enquanto é espiolhado, a ver se traz bichinho perigoso agarrado à pelagem.
Não é raro ouvir-se da boca de alguém, mesmo já entrado na idade:
– De que mais me lembro da minha infância? De quando a minha mãe, o meu pai ou algum dos meus avós me pegavam ao colo, me acariciavam os cabelos e eu assim ficava enlevado; por vezes, adormecia. Assim como agora, mal comparado, o meu cão adora descansar a cabeça na minha mão…

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 315, 20-02-2023, p. 13.

 

 

sábado, 18 de fevereiro de 2023

A idade, ai a idade!

           Recebi, há dias, enviado por um amigo, o recorte da notícia em anexo: «Ónibus entrou na casa humilde e foi apanhar a velhinha de 42 anos».


Data o jornal de 1904 e se, a princípio, a local me surpreendeu («velhinha de 42 anos»?...), depressa caí em mim e regozijei, porque, apesar de ter a certeza de que já sou quase octogenário, amiúde me vem à cabeça (e eu acaricio-a!...), a possibilidade de não ser chamado velhinho.
Claro, prefiro ‘idoso’, ‘ancião’, ‘jovem há mais tempo’ (como diz o meu autarca) ou mesmo ‘septuagenário’, concedo. Acho que septuagenário dá mais a ideia de que já se viveu bastante tempo, anos carregados de experiência adquirida.
Depois, outras ideias se atropelam.
A primeira: «Bolas! Os meus filhos já têm mais de 50 anos!».
‘Cumprimentei’, na semana passada, o busto do Sr. Almeida Garrett. Tinha as datas de nascimento e morte. Fiz as contas e verifiquei, espantado, que o autor de Viagens na Minha Terra, que tanto me deliciou com a história da Joaninha dos olhos verdes, morrera aos… 55 anos! Velhíssimo, portanto, na concepção do jornalista de 1904; quase na flor da idade, ousaríamos dizer nós hoje! E explique-se lá se os qualificativos têm valor absoluto! Uma ova! Relativíssimo é o que é!...
Recebemos amiúde – todos e não só os anciãos! – vídeos com bonitas e encorajadoras mensagens a mostrar o que é isso de velhice; porque é que uma pessoa não se deve consciencializar que está velha, incapaz, mesmo que se esqueça de tudo e lhe aconteça querer meter o prato no frigorífico, quando o ia pôr no micro-ondas para aquecer; porque deve fazer palavras cruzadas, sudoku, caminhadas, mexer-se!... Porque é que está proibido de, pela manhã, dizer – enquanto, a custo, retira uma perna e depois a outra de debaixo do lençol… – «Que chatice! Mais um dia para me aturar a mim mesmo!», em vez de, num agradecimento, abrir a janela, respirar fundo e proclamar «Está um lindo dia para sorrir!».
E não é que está mesmo!...

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 838, 15-02-2023, p. 10.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Uma questão de fronteiras há 2000 anos!

            Está o mundo em guerra por causa de territórios que se disputam, por de um lado se não reconhecerem os limites acordados. Chovem notícias de familiares que se matam por causa de partilhas, por uma nesga de terra. Apresentaram muitos fregueses reclamação junto da Assembleia da República por discordarem da “Lei Relvas”, que, por via do determinado na Lei n.º 11-A/2013, de 28 de Janeiro, uniu mais ou menos arbitrariamente territórios de freguesias.

Quando se vai na estrada temos a placa identificativa à entrada das povoações e outra à saída com uma diagonal a vermelho para dizer que acabou. Como quando se passa a mão pelo dorso de um gato, ele levanta o rabo: «Alto! Acabou gato!»…
            Não é de agora esse felino instinto, como não são de agora as rixas pela posse de terras e territórios – nem terminarão jamais enquanto o Homem for Homem!...
 
            Vêm todas estas reflexões a propósito de uma pedra antiga, do tempo dos Romanos, datada do ano 43 da nossa era que foi recentemente encontrada, o que provocou enorme regozijo entre os historiadores – e já se vai saber porquê.
Estarão todos recordados de que uma das grandes obras feitas na Lusitânia, no tempo do Imperador Trajano, mais propriamente no ano 105 da nossa era, foi a chamada ponte de Alcântara, sobre o rio Tejo, que liga, na Beira Baixa, o território português ao espanhol (Alcântara está do outro lado). Obra que resultou do esforço conjunto de uma série de povos, que necessitavam de aí atravessar o rio e para isso se juntaram.
Grande disputa houve, pois, entre os investigadores da História Antiga, porque deram em querer saber onde é que esses povos, pré-romanos de origem, efectivamente se haviam localizado. Entre eles estavam os Arabrigenses e os Coilarnos. E muito se discutiu e muitas hipóteses se aventaram. O importante seria – dizia-se sempre! – que se encontrassem no terreno pedras que indicassem assim como as placas das freguesias: deste lado é A, daqueloutro é B.
Pois imagine-se que é mais uma dessas pedras que acaba de se encontrar, a delimitar o território dos Colarnos do dos Arabrigenses!
E se duas das três anteriores poderiam estar, mais ou menos, no sítio onde, no tempo do imperador Cláudio, haviam sido colocadas, esta última, pelo seu peso (cerca de tonelada e meia) e por se haver encontrado enterrada, estava decerto não muito longe do sítio original.
E os investigadores rejubilaram! Não só porque, finalmente, tinham uma pedra que se lia quase na totalidade, mas também porque, com tantos documentos – é a primeira vez que, no território da antiga Lusitânia, tal acontece! – já se pode quase garantir preto no branco que o rio Tedo, ali para as bandas do concelho de Armamar, na Beira Alta, delimitava os Colarnos dos Arabrigenses!
Acrescente-se que o monumento foi identificado porque, quando o historiador andava pelas aldeias a perguntar por ‘pedras antigas’, alguém lhe disse que tinha ideia de ter visto uma há muito tempo, mas não se lembrava bem onde; e o historiador não largou o rasto e outro aldeão até já vira as letras e sabia onde era, embora agora estivessem meio enterradas.
Assim, com a diligente e prestimosa autorização do proprietário e a pronta colaboração da Câmara Municipal de Armamar, a pedra foi mui cuidadosamente retirada, o seu estudo foi feito e vamos publicá-lo muito em breve numa revista da especialidade.
 
José d’Encarnação
José Carlos Santos

Publicado em Duas Linhas, 12-02-2023: https://duaslinhas.pt/2023/02/uma-questao-de-fronteiras-ha-2000-anos/

A escavadora em mui cautelosa acção

A face lateral esquerda, onde se lê INTER AR(arabrigenses)

A face lateral direita, onde se lê [INTE]R COLAR(nos)

A face dianteira com a identificação do imperador Cláudio