sexta-feira, 25 de junho de 2021

Uma algarvia e um alentejano fizeram a festa!

           Mas fomos nós quem atirou os foguetes e fomos apanhar as canas. Uma nota sobre o espectáculo de Cidália Moreira e Luís Capão no palco do Auditório do Casino Estoril. O fado nunca envelhece e aquece os corações na saudade de estarmos juntos.
            A ressurreição é um fenómeno que particularmente me agrada, Pessoas que tanto deram, dum momento para o outro votadas ao esquecimento e que ora retornam. Os valores absolutos não morrem; podem perecer os relativos, alcandorados pelas circunstâncias; o absoluto permanece, ainda que diferentes sejam os valores cimeiros aí prantados pelas contingências do momento. Como a semente: fica na terra, aconchegada, quieta, semanas ou até meses a fio; depois, um belo dia, um raminho verde espreita e diz «Olá! Estou aqui!». Tenho uma paciência sensata com as nossas orquídeas; passam meses, longos meses, sem mudarem nada; as «raízes» (que não são raízes), quedas, nem tugem. E, numa manhã, ao olharmos para o vaso, lá se descobre o rebento a prometer a beleza.
            Cidália Moreira nasceu em Olhão a 1 de Janeiro de 1944. Lembro-me de a ter visto, estava então no auge a sua aura de «fadista cigana», na monumental de Cascais, antes do 25 de Abril, se não erro. Encantava-nos o seu «Oh! Quem me dera ter outra vez 20 anos!». Fazendo jus a esse êxito foi o que primeiro nos cantou, na noite de 17 passado, no primeiro de dois espectáculos no Auditório do Casino Estoril. Longos cabelos pretos, xaile longo, vestido negro até aos pés, arrecadas nas orelhas… «O Primeiro Amor!». Mas só depois do azougue dum alentejano. Luís Capão. Fato grená. «Sou do fado», «Saudades trago comigo», «Canto o fado».
            No ecrã, ao fundo, iriam passar os nomes dos fados. Boa ideia. No palco, um jeito de viela lisboeta: o candeeiro antigo, a luz escassa, o banco de jardim, o recanto de uma tasca com garrafão e copos…
            E a noite fez-se assim, com os fados d’outrora e alguns do presente: »Miúdo da rua», «Ela é Lisboa», «O fado mora em Lisboa», «A ternura dos 40», «Lisboa menina e moça»… Tudo virtuosamente acompanhado por Hugo Edgar, na guitarra portuguesa; Pedro Morato, na viola de fado; e Miguel Gelpi, no contrabaixo – que, aliás, nos deliciaram também com duas guitarradas de aplaudir.
            Escrevi «fizeram a festa». E foi verdade. Houve os momentos de semiobscuridade, de «casa de fado», emoção, serenidade, só uma réstia de luz  pelo palco… E a saudade veio, sorrateira, sentar-se na cadeira vazia ao nosso lado. E houve a festa, o bater de palmas compassado, a mostrar como nos artistas e no público assim se matava a sede de tão longos meses de isolamento. E foi muito boa a partilha. Aliás, outra coisa não seria de esperar quando se juntam em palco as raízes ciganas e, sobretudo, algarvias (ah! mulher marfada!) da jovem septuagenária Cidália Moreira e a esfuziante boa disposição do jovem alentejano de Alter do Chão, Luís Capão, ambos dotados de um ‘vozeirão’ que inebria!
            Sim, recordámos, como não podia deixar de ser, as noites de fado do inesquecível Carlos Zel e, depois, as que, no Salão Preto e Prata, se realizaram em sua memória. Este foi, todavia, um ecoar diferente, um auspicioso recomeço – que encheu os corações!
            Não posso, porém, terminar sem uma pergunta: donde terá caído aquela inoportuna vírgula a separar, no título do programa («E Tudo Isto é, Fado!»), o sujeito do predicado?!...

                                               José d’Encarnação

Publicado em Duas Linhas, 25 de Junho de 2021: https://duaslinhas.pt/2021/06/uma-algarvia-e-um-alentejano-fizeram-a-festa/


Fotos gentilmente cedidas pelo Gabinete de Imprensa da Estoril-Sol

quarta-feira, 23 de junho de 2021

A ver se a gente se entende…

               O estudante, acabado o curso, interrogava-me: «E agora, professor?». E eu perguntava-lhe o que ele queria fazer na vida.
            – Gerir uma sapataria?... Então, começa a olhar para as lojas, lê tudo o que encontres sobre isso, interroga-te sobre o que poderias melhorar, oferece-te para estagiar gratuitamente numa loja.
         – Ser jornalista de cultura? Vai a todos os eventos culturais que possas: inauguração de exposições, conferências, concertos… Observa como se organizam, que documentação é dada, que aspectos são deveras interessantes… Há uma recepção antes? Não hesites em pegar no teu copo e, se adregar meteres conversa com alguém, não deixes de o fazer.. Serenamente, faz-te conhecido, sem te pores, no entanto, em bicos de pés. E se aproveitares para fazer uma nota de reportagem e enviares, como quem não quer a coisa, para um jornal local?
            – Queres ser arqueólogo? Então, lê tudo o que puderes sobre esses temas, candidata-te a integrar uma equipa de escavações…
            Importante: não queiras assentar praça em general, que os que hoje vês em lugares cimeiros passaram as passinhas do Algarve para chegarem onde estão, salvo mui raras excepções! Sim, se for necessário ires para caixa dum supermercado, vai, que não te caem os parentes na lama e já viste a quantidade de pessoas que vão passar a contactar-te diariamente? Pode muito bem ser que, entre essas, haja uma que goste da tua maneira de ser. E se fores um bom caixa, se souberes sorrir, quem sabe?...
            Um dos lugares mais importantes na época romana eram as termas. Não fundamentalmente por as pessoas necessitarem de tomar banhos, mas porque as termas tinham um espaço destinado à troca de impressões e muitas das iniciativas, a todos os níveis, eram preparadas aí, pois os Romanos sabiam unir o «otium» ao «negotium»!
            Portanto, qual a razão do título desta crónica aqui e agora?
Eu explico.
É que vamos entrar em campanha eleitoral para as autarquias. E, já que o não souberam fazer no decurso do seu mandato, todos os já eleitos – e os que, porventura, sonham em (re)candidatar-se – não deveriam, a meu ver, desaproveitar todas as ocasiões para serem conhecidos. «A iniciativa é do partido que ganhou e eu não estou para lhe dar brilho!» - Errado! Primeiro, porque a iniciativa é do Executivo e não dum partido e, por sinal, até se integra na defesa do património, no fomento do bem-estar dos munícipes – e não foi isso que tu também incluíste no teu programa eleitoral? Depois, estando presente, melhor verificas o que corre bem e o que corre menos bem e o que, se fores tu a programar, poderás vir a fazer melhor.
            E vou ao fundo da questão que me levou a este desabafo. Com toda a franqueza e não por ser a minha associação uma das promotoras, com o Município, das cerimónias, que até correram bastante bem (congratulo-me), evocativas de Camões. É que procurei, entre a multidão, os eleitos pela «oposição» – e não os vi (com excepção da Junta de Freguesia de S. Domingos de Rana, que sempre teve outra posição). Como habitualmente não estão (se não erro) em outras iniciativas camarárias – e que, por serem ‘camarárias’, de todos são, acho eu! A ver se a gente se entende!...
            Lá diz o Povo: «Quem não aparece esquece!».

                                                      José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 335, 2021-06-23, p. 6.

domingo, 20 de junho de 2021

A esgalha da cortiça

            Desde pequeno que ouvia minha mãe falar «teu pai ia para a esgalha da cortiça». Não sei se antes de casar, se já depois. Da vida de meu pai antes de casar eu só fixei dois pormenores: ia de burro (ou burra, já não sei) comprar peixe a Olhão, para vender depois como arrieiro (dali ele perceber de peixe como poucos…); e prestou serviço militar nos Açores, com meu tio Blé – e veio daí o namoro com minha mãe. Da esgalha da cortiça nunca calhou falar-me ou, se falou, eu não fixei. Aliás, eu não perceberia muito bem o que aquilo era; mas ficava com a ideia de que podiam ser, simultaneamente, uma coisa boa e uma coisa ruim. Boa, porque era trabalho; má, porque minha mãe ficava sozinha e não lhe parecia que tudo se passasse pelos Alentejos com o cuidado devido.
            Mais tarde, aprendi; e, nos últimos tempos, vim a saber que fora uma das principais riquezas da minha terra, que havia fábricas a empregar o pessoal. Mais recentemente, não só S. Brás foi o primeiro concelho a pugnar pela reciclagem das rolhas, como empresas há aqui (perdoem-me se as não menciono) que dão cartas a nível nacional e internacional na apresentação dos mais singulares produtos confeccionados em cortiça – que é um louvar a Deus! Por isso, como professor da disciplina de História e Geografia de Portugal, nunca me esquecia de anunciar com orgulho «Portugal, o 1º produtor mundial de cortiça»!
            Bem andou, pois, o nosso amigo Correia Martins por, com a publicação do livro «A Cortiça, S. Brás de Alportel e o Algarve no século XIX», reavivar as lembranças dessa actividade em que os corticeiros são-brasenses muito se notabilizaram, não apenas aqui mas também por algumas das terras alentejanas, como Coruche. E há aí toda uma história que pouco a pouco se vai fazendo. E ainda bem!
O livro é uma edição de «Sul, Sol e Sal» (de Loulé),; teve revisão de Isabel Brito; data de Abril; para além do texto, apresenta sugestivas fotos; e, para gáudio dos menos familiarizados com estas terminologias locais, traz bem oportuno ‘vocabulário corticeiro’, onde, por sinal, não aparece a palavra «esgalha», certamente por ser de todos conhecida. Esse vocabulário, contudo, não é assim tão ‘leve’, como poderia parecer. Exemplifico: uma das entradas é «questão corticeira», onde, em breves traços, se sintetiza uma polémica que, pelo seu alcance e consequências, muito deu que falar no final do século XIX e primórdios do século XX.
 
            Conclusão: é livro para ler!

                                              José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz, nº 295, 20-06-2021, p. 13.

 

Esta palavra «paixão»

            Dei por mim a pensar no verdadeiro significado da palavra «paixão», esse um impulso quase irresistível, dominante, difícil de explicar.
Costuma dizer-se que a paixão cega, porque só ilumina com forte chapada de luz o objecto dessa paixão, deixando propositadamente tudo o resto na mais completa escuridão.
Sobre a cólera, escreveu Saint-Exupéry:
«A cólera não cega ninguém; ela é cega por natureza» («La colère ne rend pas aveugle: elle naît d’être aveugle» – Citadelle, Gallimard, Paris, 1948, p. 474).
O mesmo se poderá dizer da paixão: irrompe – e uma pessoa fica apanhada na teia e nem se apercebe bem porquê.
          No meio de uma troca de correspondência com a Associação de Paralisia Cerebral de Lisboa, enviei em anexo, em jeito de cumprimento, a foto dum recanto do nosso jardim. E recebi esta resposta:
«Muito agradecemos a foto das belíssimas rosas do vosso jardim. A minha mãe adora rosas e orquídeas, por isso é a cuidadora das flores do meu pequeno jardim. Eu limito-me a fotografá-las! […] Fotografia é mais que um hobby, é uma paixão para mim. Infelizmente com pouco tempo para me dedicar a ela».
          Comecei a compreender melhor a razão por que muitos amigos estavam a pôr flores na sua página do Facebook. Sobretudo os de mais idade.
Pouco tempo antes dessa correspondência, eu chegara à fala com Fernando Ferreira, que, «aos 40 anos» – como escreve em breve apresentação biográfica – «teve finalmente a possibilidade de comprar uma máquina fotográfica digital, o que veio impulsionar a sua paixão». Cá está a palavra, outra vez! E veja-se no que deu:
          «Gostava de um dia poder registar a Fauna e Flora do concelho de Vila do Conde, inclusive de toda a Paisagem Protegida Regional do Litoral de Vila do Conde e Reserva Ornitológica de Mindelo, para posteriormente publicar e expor todos esses registos à população em geral, fazendo também a divulgação didáctica do seu trabalho pelas Escolas, de forma a alertar e dar a conhecer todo o tesouro natural que temos e que devemos preservar».
            Abençoado!
          Um ‘tesouro’ que, naturalmente, eu convido a espreitar já na respectiva página do Facebook: «Fernando Ferreira Photography!».

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 801, 15-06-2021, p. 11.

Mosca Tigre (Eristalinus taeniops) - Foto de F. Ferreira

quarta-feira, 16 de junho de 2021

Por esses matos além...

               A pandemia trouxe maior atenção à Natureza e espicaçou ainda mais o desejo de usufruir do bom ar puro de regalar pulmões.
            Cascais antecipou-se a esse anseio e criou bem agradáveis parques urbanos. Há, porém, um que nos incita a ir, mui saudavelmente, por esses matos além…
              Vamos vê-lo.

Parques urbanos

            Criaram-se, felizmente, por toda a Cascais (pode dizer-se) parques urbanos. Já tínhamos, na vila, o Parque Marechal Carmona, verdadeiro coração verde, e o Parque Palmela. Este, embora escondido por trás daquelas bisarmas, oferece motivos que bastem para aliciar a uma visita, dotado como está de adequados equipamentos para bons instantes de lazer. Aliás, como que envergonhadas do seu descomunal volume, as bisarmas deixaram medrar árvores e plantas nos interstícios, aliciaram o passante com o bonito jardim fronteiro e possibilitaram aquela fresca entrada para o parque propriamente dito. Todavia, ainda se mantém parcialmente encoberto por painéis publicitários o bosque de dragoeiros, único em Portugal, uma jóia que a burocracia camarária ainda não logrou mostrar na sua plenitude, apesar dos sucessivos apelos.
            Mas há mais, nesta zona ocidental cascalense! Ainda no perímetro da vila, o Parque do Outeiro da Vela e o Parque Urbano da Ribeira dos Mochos, junto ao Bairro do Rosário. Deste se concretizou já a continuação, ainda sem nome próprio (‘Parque Urbano da Pampilheira’, porque não?), entre a Avenida Raul Solnado e a Rua Gomes Leal – e ficou bem esse vale, nicho ecológico de muita passarada.
            Para nascente, outro vale existe, o da Ribeira das Vinhas e também ele foi arranjado com passadiços até quase à 3ª circular. O Município vai aceitar a doação duma azenha e será bem agradável, daqui a uns tempos, continuarmos a passear por esse leito e vermos, de vez em quando, se tal for possível, a azenha a funcionar.

Um parque mui diferente
            A plataforma sobre o Rio Marmeleiro, em Murches, onde funcionou o campo de tiro aos pratos, foi judiciosamente aproveitada para se criar o Parque Urbano Penhas do Marmeleiro.
            Nome bem dado:
            1º) Porque, lá ao fundo, corre o leito do «Rio» Marmeleiro, nome do curso de água que terá, a jusante, a (mais conhecida) designação de Ribeira das Vinhas, atrás referida. Foi a abundância de marmeleiros que medram nas suas margens que lhe justificou o nome.
          2º) Porque a vista que dali se abarca se estende penedias além, em graciosa cadência de sucessivas colinas.
            Há simpático parque para a pequenada brincar, inclusive «aos índios e aos cowboys, porque se construiu, para o efeito, um castelo amuralhado!... Contudo, o aliciante será, sem dúvida, não resistir à tentação de ir por aí fora, pelos coleantes passadiços a proporcionarem inesperados ângulos de visão, em atmosfera sem ruídos e pejada de bem selvagens fragrâncias.
            De «matos» se falou no título. É verdade. Mato é essa infindável variedade agreste, livre, espontânea de arbustos rasteiros, ricos em tonalidades, poiso predilecto do pássaros que por ali esvoaçam satisfeitos, aí nidificam e se alimentam. Tojos, madressilvas, carrascos e suas bolotas, troviscos e suas bagas vistosas, silvas a oferecerem amoras no seu tempo, murtinhos de acres frutinhos azuis, zimbros a sonharem com a possibilidade de os seus frutos virem a aromatizar uma boa aguardente ou a confeccionar seleccionado perfume… Todos ali serenamente convivem, oferecendo a sua singular beleza a quem a souber apreciar.
            E as flores? Ele são lírios roxos e o amarelo dos montes, orquídeas, as campainhas amarelas, a erva mosca, as bocas de lobo, as alcachofras, as margaridas do monte!… E as ervas aromáticas – como a nêveda (ou erva-das-azeitonas), os orégãos, o funcho?...
          Não, não estou a inventar! Apenas respiguei alguns nomes (dos meus mais conhecidos) do extensíssimo rol de plantas que constituem «a composição florística dos carrascais», apresentada pelo professor catedrático do Instituo Superior de Agronomia, Doutor João de Carvalho e Vasconcellos, no livro Vegetação Natural do Concelho de Cascais, páginas 12 a 16, bem densas!... Uma das preciosidades bibliográficas que integra a – nunca por de mais abençoada! – colecção do VI Centenário da Vila de Cascais, editada pela Câmara Municipal em 1964.
            Amiúde se pensa, aquando dum incêndio: «Ardeu só mato. Não houve problema de maior!». Sim, é verdade: esta vegetação espontânea tem alma para depressa se recuperar; no entanto, é com essas devastadoras chamas que um manto ímpar num ápice se esvai, um equilíbrio da biodiversidade que assim desesperadamente fenece e que mereceria, decerto, estudos mais aprofundados.
            Visitar sem pressas as Penhas do Marmeleiro, a respeitar o silêncio envolvente, puro bálsamo para a velocidade em que se nos desgastam os dias.

                                               José d’Encarnação

Publicado em Duas Linhas, 5 de Junho de 2021: https://duaslinhas.pt/2021/06/por-esses-matos-alem/

 

O forte para as guerras de índios e "cowboys"...
Panorâmica sobre o parque infantil
E o dorso ondulado da Serra de Sintra ao fundo...
Os desastrosos efeitos do incêndio de 2015