sexta-feira, 19 de julho de 2024

Gorpelha

            Sempre me encantou a gorpelha.
Desde pequeno.
O jeito de se fazer em palma aquele sacão enorme que se punha sobre a albarda do animal – o burro, a mula… – assim a modos dos alforges.
Só que os alforges tinham um ar mais feminino, feitos (parecia-me) de retalhos coloridos, e serviam para lá pôr, dum lado e doutro da albarda, coisas delicadas, que a senhora comprara na feira. E sobre os alforges por serem de pano, podia a senhora sentar-se de lado, sem problemas de segurança.
A gorpelha, não. Ainda que obra de mãos femininas, claro, era objecto para ser manuseado por mãos calejadas. Lá se transportavam as alfarrobas. Menos as amêndoas que sempre me lembro de as ver em sacas, que amêndoa exige mais delicadeza de trato. Alfarroba, não. Tem casca rugosa, é comprida e ajeita-se bem na gorpelha. Também o feno. Acho que me lembro de se pôr feno na gorpelha. Feno e folharasca para a cama das bestas.
Grande invenção a gorpelha!

            E, portanto, além de ter pedido ao Emanuel Sancho que, da sua preciosa colecção, me cedesse uma foto ilustrativa (aí vai!), fui investigar a origem do nome.
Dir-me-ão logo que é golpelha que se escreve e não gorpelha. Esclarecerei que há as duas formas. Golpelha é mais difícil de pronunciar, até porque duas sílabas seguidas com l (gol e pelh) a gente gosta logo de fazer a dissimilação e mete o r. Acrescentar-se-á que, do ponto de vista etimológico, da origem da palavra, gorpelha (com r) é que está correcto, porque deriva da palavra latina «corbicula», que se encontra registada na obra do agrónomo latino Paládio (livro 3, 10.6), com o significado – imagine-se! – de «cesto pequeno». De pequeno passou a grande no Algarve (as manigâncias que a língua traz!...); e o «b» passou a «p», que é mais fácil de pronunciar.
            Anote-se: a, por vezes, indicada, origem da palavra a partir do latim «vulpicula», ‘raposa pequena’, não pode ser senão… anedota! Quanto a ser de esparto, não nego que possa ser; eu sempre a vi de empreita. Quanto a servir para transporte de fruta, amigos, vocês acham?

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 332, 20-07-2024, p. 13.

 Post-scriptum: a fotografia gentilmente enviada por Vítor Barros:



quinta-feira, 18 de julho de 2024

Vadiar

            Confessava, há dias, a um amigo a minha enorme costela de preguiçoso: procuro sempre escolher os caminhos mais fáceis, dou vazão quase imediata aos assuntos simples… «Este já está! Vamos a outro!». A pessoa fica aliviada e pode preguiçar um pouco antes de se meter noutro embaraço.
            Desse amigo recebi, em resposta, uma frase lapidar:
«A preguiça é um direito para quem trabalha!».
            E mais preguiçoso fiquei.
            Porventura, mais consciente de que muita razão tinham os Romanos, quando procuravam conciliar o ‘otium’ com o ‘negotium’, um o contrário do outro, para contrabalançar.
            Por isso me alegrei esta semana, ao receber carta de uma colega brasileira: aposentada há já algum tempo, está agora com um dos filhos a descobrir, finalmente, a terra italiana donde seus antepassados fugiram para o Brasil, por ocasião da II Grande Guerra. E recebi uma outra, de um casal amigo, francês, aposentados desde há pouco: andam a descobrir o Peru!
            Por isso, há tempos, pus a cabeça entre as mãos, ao saber, de dois outros grandes amigos meus, ele e ela. Ela, então, muito da minha amizade, cúmplices de muitas andanças. Outro dia, num jantar, explicou-me ele porque se haviam divorciado, embora continue a gostar dela. É que vivia para o seu trabalho: ela, docente, não tinha tempo para ele.
– Vamos dar um passeio?
– Desculpa, não tenho tempo, tenho um monte de testes para ver.
Era sábado, hipoteticamente dia de pausa…
Conclusão: vadiar é preciso!
          O tempo atmosférico não está, de facto, agora para vadiagens ao ar livre, porque tanto há calorzinho agora, como, daqui a pouco, surge, de repente, no horizonte, uma nuvem bem cinzenta e dá em despejar-nos o cântaro em cima! O segredo está no aproveitar: há uma nesga de sol? Vamos dar já um giro! Se houver horários a cumprir, paciência! Vamos aproveitar quando os não haja, porque, é verdade, vadiar é mesmo preciso!

                                               José d’Encarnação

            Publicado no jornal Renascimento (Mangualde), nº 867, 15-07-2024, p. 10.

sexta-feira, 21 de junho de 2024

Renascimento

             Já são mais de 300 as crónicas que este jornal me albergou e ainda não me interrogara sobre qual o motivo porque lhe terão dado esse nome. Constará das crónicas; estará, eventualmente, explicado no editorial do 1º número. Prefiro, todavia, atribuir-lhe eu uma razão, passível – ou não – de acertar no prognóstico.
            Explico-me.
            Nas pausas da escrita, deambulo pelo jardim e admiro o evoluir das plantas e, sobretudo, das flores: ontem, era botão, hoje desabrochou; ontem, ostentava as pétalas ao vento num chamariz de insectos para os estames gulosos, hoje está com vontade de me dizer que o seu ciclo vistoso por ora acabou. Mal a luminosidade dá em diminuir há pétalas que se recolhem, como pestanas a proteger a visão, há folhinhas que se encostam umas às outras, num acoitar protector…
Cycas revoluta
          
            Muito me apraz saudar, pelos finais de Maio, a cycas revoluta, nome científico de uma palmeirinha anã, de jeito pré-histórico, qual bonsai. O nome comum é sagu-de-jardim. Do tronco lhe saem compridas folhas, alargando-se em pavoneante copa. E por esses finais de Maio, chama-me: é que o meio do tronco se prepara para eclodir e, mui suavemente, em movimento lentíssimo e imperceptível, as folhinhas muito chegadas unas às outras, protegidas por um manto de penugem (dir-se-ia), vão crescendo e desprendendo-se. Fotógrafos especialistas da vegetação decerto já puseram uma câmara ao pé para, no decorrer dos dias, a objectiva ir disparando e proporcionando, assim, a visão acabada do que é, a meu ver, uma verdadeira maravilha. Semanas após semanas, até o verde viçoso se espreguiçar em leque.

            Daí me surgiu a palavra. «Renascimento», para título de jornal regional, é auspício e é programa de luta:
– auspício, por cada número veicular notícia de iniciativas inovadoras, vontade de renovação dinâmica;
– programa de luta, porque há que espicaçar os menos audazes, sugerir outros caminhos, apontar metas, sacudir da modorra em que amiúde há a tentação de se ficar.
A carruagem está em andamento? Deixemo-la ir, que a inércia se encarregará do empurrão. Não é verdade: o movimento da inércia não é, como poderia pensar-se, mais veloz à medida que se aproxima do fim: vai adormecendo, adormecendo. E esse adormir já não interessa a ninguém.

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 866, Junho de 2024, p. 10.

quarta-feira, 19 de junho de 2024

Alfarroba

Que poderá incluir-se numa crónica a que se dê o título de Alfarroba?
Sei que o nome já foi adoptado para designação de estabelecimentos comerciais. Acerca da genuína e antiga utilização do fruto para alimentação dos animais domésticos – o porco, o burro, a mula, o cavalo… – nada poderá acrescentar-se, a não ser garantir que isso foi outrora e, nos nossos dias, à alfarroba se reservam outras especialidades mais gostosas e de maior rendimento, que as bestas se alimentam agora com rações artificiais, genericamente alteradas. Estamos conversados.
            Consegui que, num dos recantos ajardinados do meu bairro suburbano, se preservasse a alfarrobeira que por lá espontaneamente crescera, ao pé duns carrascos. Também no Casal Saloio de Outeiro de Polima, o Centro de Interpretação do Espaço Rural de Cascais, se implantou no pátio interior uma oliveira e uma alfarrobeira, árvores simbólicas, na intenção de lembrar que, nessa região saloia, muito sangue algarvio ainda corre. A do Casal não vi bem como é; a do meu bairro é brava, não dá alfarroba de jeito, não floresce como deve ser para atrair abelha.
            O que, de facto, mais me encanta na alfarrobeira é precisamente esse cheirinho acre, bem activo, das suas flores e as abelhas a não resistiram ao convite dos suculentos estames. A do meu bairro não tem.
            Comi alfarrobas em criança, quase por brincadeira (confesso). Um sabor áspero, farinhento… Dispomos agora de licor de alfarroba, de biscoitos de alfarroba, de creme de alfarroba, tabletes... E pugnamos para que a ladroagem se não atreva a varejar árvores alheias…
            Diligenciei, com êxito, para que a palavra ‘folharasca’ entrasse no Dicionário Digital das Língua Portuguesa em permanente actualização pela Academia das Ciências de Lisboa. Foi acolhido, como regionalismo algarvio, no sentido de «conjunto das folhas secas da alfarrobeira caídas». Aí se justifica a inserção com a seguinte passagem d’O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge: «Macário caiu de joelhos às abas de uma alfarrobeira submersa em folharasca» (1995, p. 195).
            Rezam os outros dicionários que – como se suspeitava – a palavra vem do árabe: al-carroba, alkharrub. Por isso não estranhamos em ver escrito num rótulo CAROB – qual tentação mediterrânica! E que tentação, senhores!

                                               José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 331, 20-06-2024, p. 13.

segunda-feira, 20 de maio de 2024

O hífen e o travessão


            Contestei, em Agosto de 2012, a correcção que me fora feita num texto: haviam posto um hífen onde eu queria um travessão. Foi-me respondido que a revista, por ser editada por um organismo oficial, tinha de seguir as regras da NP 405-1 de 1994. Como perguntei junto de quem eu poderia protestar contra uma dessas regras que está errada, foi-me dito que «o protesto deverá ser enviado para o editor da norma, o Instituto Português de Qualidade, ou para a Biblioteca Nacional de Portugal». Da BNP não obtive resposta.

Não é fácil a escolha entre hífen e travessão e, por isso, nem sempre o algoritmo dos processadores de texto acerta. O normal é pôr hífen e tem de ser o escrevente a alterar quando há erro.
Na gramática, vêm explicados os casos em que o hífen se usa: por exemplo, «para indicar, no fim de linha, a divisão da sílaba», «para ligar os pronomes enclíticos às formas verbais» (lavo-me). Geralmente não se registam anomalias nesse uso por ser vulgar, o algoritmo foi bem programado; anote-se, todavia, que o novo acordo ortográfico suprimiu o seu uso «para ligar a preposição de às formas monossilábicas do presente do indicativo do verbo haver»: escreve-se agora hei de, hás de, há de, hão de.
O travessão, por seu turno, «serve não só para chamar a atenção para a palavra ou palavras que se seguem, mas ainda para, nos diálogos, indicar a mudança de interlocutor. Pode substituir o parêntesis.
E é aqui que amiúde se erra. Ora veja-se a frase: «O António – que é um excelente rapaz – telefonou-me». Neste caso, amiúde, o algoritmo não fecha o inciso com travessão mas com hífen e é preciso o autor estar bem atento para não deixar passar o lapso.
Uma regra simples pode ser esta:
– O hífen está sempre ligado à palavra, não se deixa espaço: ‘telefonou-me’;
– O travessão, ao invés, nos textos em português (em castelhano, é diferente), deve ter sempre espaço antes e depois.
Verifiquem-se dois aspectos, no que se acaba de ler: como se tratava de uma enumeração, usou-se no início o travessão; contudo, o algoritmo não mudou automaticamente do hífen para o travessão; tive de ir, no teclado, aos símbolos ou accionar ctrl + hífen para lograr pôr travessão.
Como dá muito ‘trabalho’ (!), o mais corrente é… que não se ligue importância a isso – e Deus seja louvado!

                                                                                               José d’Encarnação

Publicado no jornal Renascimento, de Mangualde, edição nº 865, 15-05-2024, p. 10.

 

 

Irás vencerás não morrerás

             A frase escolhida para título desta crónica tem uma história – real ou inventada – sobejamente conhecida.

           Atribuída a oráculo proferido pela pitonisa de Delfos, em resposta à consulta de um soldado (segundo uma versão) ou dos conselheiros de Alexandre-o-Grande (segundo outra), é amiúde citada para demonstrar o valor da vírgula.

           De facto, sem vírgulas a frase tem dois sentidos opostos, dependendo do sítio onde a vírgula se puser:
1)      Irás vencerás não, morrerás
2)      Irás vencerás, não morrerás
Dir-se-á que tudo isso é tão comezinho que não justifica nova crónica.
           Quiçá justifique, se atentarmos no desleixo generalizado que se verifica quanto ao uso da vírgula. Mesmo pessoas altamente instruídas caem, por exemplo, no erro de separar o sujeito do predicado por meio duma vírgula e não sabem quando é que depois do pronome relativo se deve – ou não – pôr vírgula.

           Por isso, merece pensar-se no uso da pontuação.

           Há regras. Importa aplicá-las na linguagem escrita, que se quer escorreita.

           Lembro-me que alguém desabafou: «Que chatice! Ele está sempre a pôr vírgulas!». Outro confidenciou-me: «Isso nos poemas a pontuação atrapalha tudo!». E um terceiro perguntava-me: «Leste o ‘Memorial do Convento’?».

           Respondo:
Aceito que o poeta não queira usar pontuação, como o pintor pode não dar título a um quadro. Ambos preferem dar liberdade: cada qual entenda como quiser. Acham que essa liberdade enriquece a obra. Aceito.

Uma coisa é, todavia, a linguagem escrita dum texto científico, normal, outra a linguagem literária. De facto, tanto Saramago como Lídia Jorge usam a pontuação para se aproximarem da linguagem oral. Nos seus livros, o ponto equivale a uma pausa na fala, mesmo que seja a meio da frase.

Em suma, não basta ter aprendido a escrever. Expressar-se por escrito exige prática, atenção e, sem dúvida, algum esforço. Não admira, por isso, que se esteja a recorrer cada vez mais aos emojis, que é como quem diz: «Interpreta à tua vontade! Mando-te um grande coração vermelho; interpreta ‘gosto’, ‘amo-te!’, ‘adoro-te!’, ‘gosto de ti!’ – como quiseres. Confesso, no entanto, que por palavras fica tudo muito mais explícito. E eu sempre prefiro um «adoro-te!» a um mero «gosto de ti!». O coração vermelho, ao ter tudo, acaba por nada ter. Fica-se na dúvida. E é chato!

 

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 330, 20-05-2024, p. 13.

 

Classificar? – Não!

           Há, com muita frequência, a ideia de que promover a classificação de um sítio ou monumento como de «interesse público» ou «de interesse nacional» ou, mesmo, como «monumento nacional» constitui a forma mais adequada e certeira de esse sítio ou edifício virem a ser, de facto, mais bem preservados e até venham a obter-se para o efeito, alguns desses fundos largamente publicitados e nem sempre aplicados (pensa-se!...) por não haver espírito de iniciativa.
            Errado!
            Primeiro, porque o caminho até à classificação é mais longo que a légua da Póvoa; depois, porque, classificação conseguida, mais longo ainda é o caminho para se lograr obter algum proveito.
Na verdade, importa não esquecer que as várias secções dum ministério – qualquer que ele seja! – estão atafulhadas de processos até ao tecto e as secretárias, se não estão vazias por falta de pessoal, têm lá um senhor ou uma senhora postados diante de uma rima de processos que não sabem por onde é que hão de começar!
            Depois, há a legislação! Decretos, portarias, despachos, complementos a despachos, decretos regulamentares… Alto, que ‘decretos regulamentares’ é o que menos há e, sem eles, as determinações do decreto correspondente não se conseguem concretizar. Uma floresta virgem ou um velho castelo cheio de alçapões e portas estreitas e portas disfarçadas em paredes…
            Conclusão: não caia na esparrela, não proponha a classificação de coisa nenhuma.
            Dou dois exemplos das centenas que poderiam aduzir-se e estou certo que cada um de nós é conhecedor de dois ou três casos.
Uma colega minha herdou um mosteiro; caiu na asneira de propor a sua classificação, na esperança de que o Estado corroboraria na sua preservação. Errou! Nem o Estado corrobora nem ela pode mexer uma palha sem colher pareceres e mais pareceres dos técnicos ministeriais. Sim, daqueles que têm a tal rima de processos à frente. E o mosteiro vai-se arruinando. E a minha colega a perder a esperança.
Em Cascais, também alguém sugeriu a classificação do parque envolvente do Museu Verdades de Faria. Conseguiu. Agora o que a Câmara não consegue é que o Ministério do Ambiente gize um plano (sim, têm que ser os técnicos do Ministério a gizar!) para acudir às muitas mazelas há anos ali acumuladas. O presidente da autarquia já ameaçou e ele é bem capaz disso: «Demoram? Eu arrisco!». Abençoado!

                                               José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 329, 20-04-2024, p. 13.

terça-feira, 7 de maio de 2024

As bicadas de Camilo

            Houve um sábio que escreveu: “Temo o homem dum só livro". Já se não sabe bem quem foi; a máxima não deixa, contudo, de ser válida, independentemente de quem a concebeu. Plasma a frase a convicção de que se tratará de alguém cabeçudo, avesso à pluralidade.
Gosto, porém, de pensar que tem cada um de nós um livro de cabeceira, de leitura frequente, ainda que não única.
Aconteceu-me que, ao dar uma vista de olhos pela estante, Noites de Lamego me chamou a atenção e decidi voltar a ler, agora, evidentemente, com olhos bem diferentes dos que eu tinha em Julho de 83.
          Interessaram-me, sobretudo, as bicadas de Camilo Castelo Branco. E de duas delas, de carácter político, ora se dá conta, ainda que sabendo ser A Queda dum Anjo, o suprassumo da sua sagacidade.
Sagrara-se vitorioso o Duque de Saldanha, arauto da Regeneração. E logo “todos os talentos e capacidades se identificaram com a regeneração; triunfaram em 1851 às ideias de 1846”. Gonçalves Basto, porém, que, no seu jornal, tanto apoiara o  “dadivoso duque”, foi esquecido pelas suas mãos-rotas, ele que até já fora cônsul em Vigo e condecorado na Ordem de Nossa Senhora de Vila Viçosa!
Do comendador Inácio José Leituga, do concelho de Cinfães, “pessoa abastada, bom vizinho e de mui sãos costumes e notória cristandade” conta Camilo que, após ter dobrado, em doze anos, a sua fortuna, “a consideração pública no seu concelho tocou o apogeu. Foi juiz ordinário em 1841, administrador em 1844, presidente da Câmara em 1845 […], foi comendador da Conceição em 1852 e eleito deputado […] em 1854”.
Nessa condição, acreditado “pela modéstia e sisudeza do silêncio”, “conseguiu empregar uns dezanove parentes que tinha em dezanove lugares. Virtude rara! Porque há deputados que fazem despachar dezanove parentes para trinta e oito lugares.”

Estava-se em meados do século XIX.

 

José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 864, 01-05-2024, p. 10.

 

domingo, 21 de abril de 2024

Palavras e expressões

            Recordo amiúde a história que Laborinho Lúcio nos contou, aquando da visita do Curso de Conservador de Museus ao Centro de Estudos Judiciários, que na altura dirigia, sobre a necessidade de os juízes se inteirarem dos significados locasis das palavras e expressões.
            O juiz recém-chegado a Vila Real de Trás-os-Montes manifestou a sua perplexidade por o queixoso ter posto processo por difamação contra um vizinho, por este lhe ter chamado «minhoto»:
            – Eu não percebo! O nosso escrivão também é minhoto e não se rala nada com isso!
            O Minho é, como se sabe, uma região onde abunda o gado bovino…
            – Está bem, eu ponho no jacó!
            Também esta resposta pode causar surpresa ao recém-chegado a Coimbra. Jacó é o nome popular dado ao caixote do lixo e ao cesto dos papéis, desde que, em Outubro de 1929, o presidente da Câmara, João dos Santos Jacob, propôs a criação dos recipientes para o lixo, que o povo logo começou a chamar «jacós».
Mantendo-nos em Coimbra, igualmente surpreenderá ouvir «depois tens uma cortada à esquerda e vais por aí». Cortada é travessa, atalho, na nomenclatura da Lusa Atenas; quiçá, uma boa alternativa ao estrangeirismo «link» dos computadores…
– Amanhã, dás-me boleia?
Poucos saberão, porventura, a origem da expressão. Boleia era, nas antigas carruagens, o pequeno assento ao lado do condutor, amiúde usado para levar quem não tinha outro transporte e, por isso, ‘apanhava uma boleia». Já no Brasil, o termo é carona. Poderá ter origem parecida à da boleia em Portugal, porque aí se chama de carona uma peça do arreio que se coloca por baixo do lombo do animal. Creio, pois, sem lógica a hipótese de a palavra vir do castelhano e, este, do latim «caro», que significa carne, como os dicionaristas sustentam.
– Levas-me aí um sopapo, que até vais a nove!

Foi numa visita de estudo do Curso de Museologia ao Museu do Eléctrico, no Porto, que percebi o verdadeiro significado da palavra: no volante do guarda-freio, 9 é a velocidade máxima que o eléctrico dá!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Renascimento [Mangualde], nº 863, 15/4/2024, p. 10.

quinta-feira, 4 de abril de 2024

Os nossos termos vernáculos

             Não baixamos os braços, nós, os defensores da língua portuguesa. Diariamente pugnamos contra a avassaladora invasão de termos estrangeiros, aceites amiúde sob o pretexto de que melhor exprimem o que se pretende dizer.
            Sim, é difícil resistir, por exemplo, ao uso da palavra email, em vez de ‘correio electrónico’. E até já sabemos: pronuncia-se ‘imeil’ – e toda a gente compreende. Aceita-se, aqui, a derrota. Contudo, novas e aguerridas frentes de batalha se abrem.
            Assim, João Lourenço Roque, refugiado no lugar de Calvos da remota freguesia beirã de Sarzedas, não tem hesitado dar a conhecer nas suas crónicas (publicadas depois em livro sob o título de «Digressões Interiores») termos e expressões da «linguagem à moda antiga»: estraboucher = rebolar com dores e espasmos, «prendi o burro a uma estaca, mas ele comido com moscardos tanto estrafouchou que partiu o cabresto, largou os atafais e abalou desinfriado ós fanicos lombas acima…».

            A propósito da fotografia dos cestos à venda na feira, escreve Alberto Correia («Ruralidades» 2023, p. 35): «E o cesteiro que logo de manhã se senta no seu banco armado com o ferro de lavrar no preparo das corras, as delgadas tiras de madeira de castanho, de mimosa, de sanguinho ou os vimes do ribeiro»… Quem há aí que use no quotidiano essas palavras?
            Maria Mícaela Soares, etnóloga que fez a sua vida na Assembleia Distrital de Lisboa e percorreu, por isso, todo o distrito, mormente a região saloia, legou-nos o livro «Glossário de Linguagem Popular – Apontamentos», volume de quase 400 páginas, agora postumamente editado pela Câmara Municipal de Cascais. Esse longo e mui atento contacto com o povo, por um lado, e, por outro, a miúda leitura dos nossos clássicos, sobretudo aqueles que à linguagem dedicaram largas páginas, deu-lhe azo a compendiar centenas de expressões que, essas sim, fazem parte do nosso quotidiano e são, por isso, inacessíveis aos estrangeiros e, cada vez menos, às gentes da cidade embalsamadas em vocábulos da estranja: «esticar o pernil», «essa nem lembrava ao diabo», «daí, menino, eu lavo as minhas mãos», «pareces, homem, uma tábua de engomar», «ah! esses, cuidado com eles, fazem mão baixa de tudo, chiça, penico, chapéu de coco!»…
            Dar baixa devíamos nós das palavras inglesas que grassam como peste malina e pôr em alta, ao invés, os termos que nosso falar tanto enobrece.
 
                                                                José d'Encarnação

            Publicado em Renascimento [Mangualde], nº 862, 1/4/2024, p. 10.

quarta-feira, 20 de março de 2024

Molhem as cordas!

            Reza a história que, a dado momento da operação de se erguer, no meio da Praça de S. Pedro, o obelisco vindo do Egipto, no ano 37 d. C., o pânico se apossou dos operários, porque as cordas começaram a ranger e se corria sério risco de partirem e, caindo, o obelisco partir-se, além de poder ferir gravemente alguém. O que é que se faz, que não se faz…
            De repente, há um grito na multidão silenciosa:
            Aqua alle funni! Molhem as cordas!
            Assim se fez, numa pressa. O obelisco, de 350 toneladas, mantém-se, pois, na Praça de S. Pedro desde esse dia, quase fatídico, de 10 de Setembro de 1589. E o capitão Bresca, que ousara quebrar o silêncio a todos imposto durante a operação sob pena de morte, acabou por ser agraciado pelo Papa Sisto V e o seu grito assume-se, hoje, como símbolo da luta contra a prepotência.
           Ao investigar a prática da caça nos começos do século XX em Cascais, apercebi-me, nas narrativas, da maior preocupação dos caçadores: a água para os cães! Deveriam organizar o seu périplo de modo a passarem, no tempo oportuno, por um chafariz ou um charco onde os animais pudessem dessedentar-se. Compreendo isso, hoje, claramente, porque o meu labrador, antes e depois dos passeios diários, nunca se esquece de beber.
        A importância da água não carece de argumentação, até porque há uma espécie de norma vulgarmente aceite (quiçá cientificamente documentada) de que devemos beber litro e meio de água por dia. Meu urologista torceu o nariz, há dias, quando, cheio de vergonha, eu lhe confessei o pecado de negligenciar essa norma; percebi, pelo seu ar, que merecia penitência.
            A questão põe-se também – e cada vez mais – em relação à qualidade da água, mormente da água que nos é fornecida pela «companhia», palavra que serve para identificar o organismo oficial encarregado desse fornecimento. Somos, por vezes, surpreendidos por depósitos estranhos ou por um sabor «a cloro» e aumenta a tentação de consumirmos água engarrafada (preconiza-se que não seja sempre da mesma origem). Lembro-me que, em pequeno, ouvia dizer que meu padrinho Garcia, de Olhão, era o distribuidor-mor da água de Monchique, uma das que, na verdade, quiçá pelo seu alto teor alcalino (9,5 de ph) ou em homenagem ao meu padrinho, eu também tenho em casa habitualmente.
Direi, porém, que fiquei mui agradavelmente surpreendido quando, em Maio do ano passado, me foi apresentada à mesa, na cantina da Universidade do Algarve, uma garrafa que dizia «Água da Torneira». Congratulei-me. Até enviei mensagem ao nosso ex-presidente António Eusébio, o que ora preside às Águas do Algarve, S. A., a congratular-me com a iniciativa.
      Nesta aflição em que estamos aqui no Sul, na iminência de racionamento do precioso líquido, duas medidas se preconizam, como toda a gente sabe: poupar e não desperdiçar. Poupança a nível individual e familiar; poupança, de modo especial, a nível das estruturas, para evitar fugas na canalização. A reabilitação de poços insere-se igualmente – deveria inserir-se – nessa preocupação. S. Brás de Alportel, pela sua localização em vale tem, como se sabe, potencialidades a nível freático. Lembro-me sempre das bicas dos Vilarinhos ou do poço do Corotelo, que era público e hoje se encontra, ao que parece, inoperacional – e importará saber porquê). Tudo o que contribua para diminuir os lençóis subterrâneos ou os contaminar deve ser prioritário impedir.

                                               José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 328, 20-03-2024, p. 13.