quinta-feira, 18 de julho de 2024

Vadiar

            Confessava, há dias, a um amigo a minha enorme costela de preguiçoso: procuro sempre escolher os caminhos mais fáceis, dou vazão quase imediata aos assuntos simples… «Este já está! Vamos a outro!». A pessoa fica aliviada e pode preguiçar um pouco antes de se meter noutro embaraço.
            Desse amigo recebi, em resposta, uma frase lapidar:
«A preguiça é um direito para quem trabalha!».
            E mais preguiçoso fiquei.
            Porventura, mais consciente de que muita razão tinham os Romanos, quando procuravam conciliar o ‘otium’ com o ‘negotium’, um o contrário do outro, para contrabalançar.
            Por isso me alegrei esta semana, ao receber carta de uma colega brasileira: aposentada há já algum tempo, está agora com um dos filhos a descobrir, finalmente, a terra italiana donde seus antepassados fugiram para o Brasil, por ocasião da II Grande Guerra. E recebi uma outra, de um casal amigo, francês, aposentados desde há pouco: andam a descobrir o Peru!
            Por isso, há tempos, pus a cabeça entre as mãos, ao saber, de dois outros grandes amigos meus, ele e ela. Ela, então, muito da minha amizade, cúmplices de muitas andanças. Outro dia, num jantar, explicou-me ele porque se haviam divorciado, embora continue a gostar dela. É que vivia para o seu trabalho: ela, docente, não tinha tempo para ele.
– Vamos dar um passeio?
– Desculpa, não tenho tempo, tenho um monte de testes para ver.
Era sábado, hipoteticamente dia de pausa…
Conclusão: vadiar é preciso!
          O tempo atmosférico não está, de facto, agora para vadiagens ao ar livre, porque tanto há calorzinho agora, como, daqui a pouco, surge, de repente, no horizonte, uma nuvem bem cinzenta e dá em despejar-nos o cântaro em cima! O segredo está no aproveitar: há uma nesga de sol? Vamos dar já um giro! Se houver horários a cumprir, paciência! Vamos aproveitar quando os não haja, porque, é verdade, vadiar é mesmo preciso!

                                               José d’Encarnação

            Publicado no jornal Renascimento (Mangualde), nº 867, 15-07-2024, p. 10.

2 comentários:

  1. Boa noite Zé
    Eu adorei este texto! Devia colocar aqui entre parêntesis (mas onde já se viu uma exortação à vadiagem?) que o otium ajuda o negotium, logo, toca a ociar, se me permites o paleologismo.
    Se eu pudesse ociava de manhã à noite, porque dá boas cores e é mesmo "um direito para quem trabalha" depois de muito ter trabalhado.
    Mas de manhã à noite também será exagero, não é? Bom pelo menos "otium cum dignitate", como sugeria Cícero.
    Noite muito feliz. Um beijinho.

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  2. Vadiar é não só preciso, como é um direito e uma importante conquista civilizacional. Abraço

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