sábado, 30 de julho de 2022

Pelas competências nos vamos perdendo…

            A história é bem conhecida. O trabalhador faz o buraco no passeio com todo o seu cuidado, afunda-o quanto lhe parece necessário, enquanto o colega o observa atentamente. Acabada a tarefa, descansam os dois, para fumar um cigarrinho. Uns dez minutinhos depois,. o primeiro avança uns dez metros, começa a levantar a calçada, os pequenos paralelepípedos um a um, sem pressas, e o outro pega na pá e encarrega-se de tapar o buraco, ajeitando o melhor que pode as pedras retiradas. E assim por diante. Um dos vizinhos fica intrigado e não resiste a perguntar:

– Não percebo. Então você abre e o seu colega fecha, assim sem mais nem menos?
– Sabe, amigo, é que nós somos três: eu abro o buraco e aqui o meu camarada tem por obrigação tapá-lo. Aconteceu que o nosso camarada encarregado de trazer as árvores para plantar ficou com covid e telefonou a dizer que não vem.
 
Pois.
Amiúde nos interrogamos, por exemplo, com as equipas de arranjo em postes elétricos ou de telefone: vêm três ou quatro, um sobe ao poste, os outros ficam em baixo a ver se tudo corre bem.
Admirei-me, há anos, quando vi chegar a equipa de um canal de televisão que vinha gravar imagens para o indicativo de uma série. Uma caterva! Um era o motorista, outro pegava nos cabos, dois eram os câmaras, eu dava opiniões, a realizadora da série dava ordens, um outro segurava nos holofotes... Compreendi, então, ao vivo, o que significa o bem longo rol de pessoas que compõem a equipa duma gravação, por mais singela que seja.
O mundo das competências e da especialização cada vez mais importante e necessária e compreensível.
Sabe-se, por outro lado, quanto importa, hoje, passar por diferentes estádios, a fim de ganhar múltiplas competências. A constante rotatividade de pessoas de um serviço para outro numa instituição (agora, ficas de rececionista, amanhã dás apoio a consultas, depois de amanhã atendes na secretaria…) constitui norma geral, que já não causa perplexidades.
Aplicada, porém, às competências de entidades, essas regras mudam de figura e causam-nos mais estranheza, porventura, do que ao vizinho que vira os abre e tapa buracos, na medida em que (e a imagem, nesta Primavera de 2022, poderá ser bem pertinente!) insistentemente se proclama «Em tempo de guerra não se limpam armas!», que é como quem diz, usando outro aforisma, «para grandes males grandes remédios».
            Quando, por exemplo, é a preservação dum património cultural relevante que está em causa, todas as boas vontades se devem ajuntar. Assim aconteceu em Cascais, onde, depois de longos anos de negociações (algumas ainda em curso), os fortes da orla marítima, já há muito desafectados das suas funções militares e em risco de ruína, foram, pouco a pouco, entregues pelo Património do Estado ao Município e a outras entidades, como a Faculdade de Ciências para instalação do prestigiado Laboratório Marítimo da Guia, outrora chamado ‘do Museu Bocage’ e agora pólo do MARE – Marine and Environmental Sciences Centre. Pode ver-se uma panorâmica dessa reutilização em http://hdl.handle.net/10316/24359
            Podes, porém, um dia receber uma carta assim:
            «Suponho que te recordes de há cerca de um ano te ter perguntado se aceitarias participar num júri de catedrático aqui na Universidade. Infelizmente, fomos obrigados a alterar a composição desse júri, porque o decreto lei que saiu em Dezembro para progressão na carreira obriga a que os júris tenham equilíbrio de género... Assim, para que isso aconteça, diminuímos o tamanho do júri, saindo homens, neste caso os homens já reformados/jubilados e eu próprio. Quero, por um lado, pedir-te desculpa desta alteração e, por outro, agradecer-te a disponibilidade que mostraste para este concurso, bem como para outros anteriores».
            E porventura comentarás: «Estranho mundo este em que, por cega obediência a modas a ganhar estatuto de lei, o critério  do género prevalece sobre o da a competência!...».

Castro Verde

            Passei por Castro Verde, vila a que, em meu entender, pese embora a sua escassa população (isso dos votos é sempre um problema…), importa dar maior atenção.
Há a campanha para atribuir uma classificação de valor universal à sua Basílica Real, para além de já ser monumento nacional:
          «A escala grandiosa do edifício projetado por João Antunes, célebre arquiteto das ordens militares de Santiago e Avis, torna-o numa referência marcante na silhueta urbana, visível à distância. Mas o monumento é igualmente notável pelo seu património integrado e móvel, com destaque para os ciclos de azulejaria e pintura mural – nos quais se exalta a importância nacional daquele acontecimento bélico –, os altares de talha dourada e policromada e o imaginário mariano» – escreveu-se no texto de publicidade.
            Pelas suas características ímpares, o território castrense foi classificado pela UNESCO como Reserva Mundial da Biosfera – e é um encanto ver as abetardas e passar pelo Centro de Educação Ambiental do Vale Gonçalinho, o ai-jesus da Liga de Protecção da Natureza.
            No entanto, para além do Museu da Ruralidade – cuja visita também se impõe – há em Castro o Museu da Lucerna. E é este último que sofre na pele, digamos assim, os malefícios do jogo das competências.
            Aconteceu que em Santa Bárbara de Padrões se encontraram centenas de lucernas romanas votivas. Um espólio único, a que o casal Maia – como nos habituámos a chamar aos saudosos Maria Adelaide Maia e seu marido Manuel – prestou a devida atenção, não apenas através da publicação, em 1997, pelo Núcleo de Arqueologia da Cortiçol, do livro Lucernas de Santa Bárbara, da autoria justamente de Maria Garcia Pereira Maia, mas sobretudo pela criação desse Museu da Lucerna, já de renome internacional, como é sabido. Aí se mostram dezenas de lucernas, das centenas dos mais variados tipos e decorações, que há em depósito, além do chamado signário de Espanca, um documento único da «escrita do Sudoeste».
Sobejamente se tem reconhecido a relevância histórico-arqueológica da zona, quer pelo valioso espólio arqueológico que se dá como aí tendo sido encontrado (http://hdl.handle.net/10316/31736), quer por estar a ser cada vez mais consentânea a hipótese de que foi, porventura, em Santa Bárbara de Padrões que se localizou a cidade romana de Arandis ou Arannis, que consta de repertórios antigos. João Pedro Bernardes teve ocasião de o demonstrar no artigo «A propósito da localização de Arannis/Arandis» (Conimbriga 45 2006 153-164). Aliás, não é por acaso que está em Castro a Extensão de Arqueologia da Direcção Regional da Cultura do Alentejo!
E que tem a ver Castro Verde com o preâmbulo em que se falou de buracos e de competências?
Nasceu o Museu da Lucerna da iniciativa da Cortiçol – Cooperativa de Informação e Cultura, a que, desde o início, a Somincor – Sociedade Mineira de Neves Corvo, S. A., empresa concessionária das minas de Neves-Corvo, não regateou mui lúcido apoio. Ora, a sua manutenção e, sobretudo, o seu desenvolvimento vão requerer que se sentem à mesa as entidades que poderão, em conjunto, ter competência para o efeito: a Cortiçol, a Direcção Regional da Cultura e a própria Câmara Municipal. Um ‘assento’ que não pode tardar, como se compreende.
                                Ilustração de J. L. Madeira
Toda a glória, beleza e alguma incerteza (terrena) que paira nas estrelas! 

O Museu da Lucerna constitui, na verdade, um dos muitos casos que, por esse Portugal afora, haverá – numa espera, sempre longa de mais, de que as competências se deslindem e assumam.
Um dos encantos do Rio Grande do Sul, no Brasil, são as «colónias» espalhadas pelo seu interior, redutos da ‘colonização’ aí concretizada pelas sucessivas levas dos que, do interior da Europa flagelada pela II Grande Guerra, ali buscaram refúgio. Outro, quiçá pouco conhecido, é o facto de, num recanto desse estado brasileiro, se falar o pomerano, uma língua baixo-saxónica que já nem é falada na região do Mar Báltico donde fugiram as gentes e que, no Brasil, capricharam em manter a sua língua nativa.
A evocação do pomerano e das ‘colónias’ que houve ensejo de visitar, em Maio de 2008, por ocasião do VI Encontro Nacional de História Antiga, organizado pela Universidade Federal de Pelotas, surgiu-me porque nos movimentamos sempre, queiramos ou não, pelos meandros duma memória a preservar. Por outro lado, de então me ficou a suave imagem duma das colónias, a São Manoel, onde se instalaram, em 1883, imigrantes de origem italiana; aí, no Moinho Gottinari ou Templo das Águas, Martha e Marco Gottinari ajeitaram amplo labirinto no meio do canavial que bordeja sussurrante arroio em cachoeira. Davam-se voltas e voltas e lograva-se, por fim, encontrar a saída!...
Que para o Museu da Lucerna – e para tantos outros casos idênticos em longas expectativas de mui desencontradas competências – depressa se dêem as necessárias voltas e se encontre uma saída feliz!

                                               José d’Encarnação  

Publicado em Al-madan on line, tomo 2 do nº 25, Julho de 2022, p. 6-8.

quarta-feira, 20 de julho de 2022

O cheiro do Barrocal

            Peço perdão. Em Setembro, familiares desafiaram-me para uns dias em Altura e à minha terra natal apenas me foi possível dar um olá fugaz, no abraço terno à tia Chica, de 96 anos feitos. Subi à açoteia da casa onde nasci, espraiei o olhar por essas duas encostas, a que vai do Corotelo para os Vilarinhos e a que desce de S. Romão até à estrada nacional 270. Não agarrei no lápis para escrever impressões; não usei a câmara do telemóvel para fixar uma paisagem que há décadas tenho bem presente.
            Peço perdão, porque foi em Altura, manhã cedo, enquanto o resto do pessoal se aprontava com a pequenada para breve manhã na praia (ai, estes pés à procura de lamejinhas!...) que adreguei pegar numa folha e anotar.
            A casa dava para os campos: alfarrobeiras, oliveiras, amendoeiras, azinheiras, figueiras… O cheiro do Barrocal no seu esplendor! Encantou-me aquela oliveira pequena, úbere de verde azeitona grada, no leito do regato seco e, antes de abalar, lá fui ripar, sem autorização prévia de eventual proprietário, uns quilos que logrei curar a preceito (da retalhada e da pisada) e que me consolou semanas a fio.
            Além, uma capoeira com perus brancos e pardos (sempre em corrimaças, não sabiam estar quietos), garnisés… Também lá no alto, um avião fugia.
            No cimo duma torre, o depósito de água dava altura para as regas, hoje inúteis (nada havia para regar!), mas lá estava a canalização e o fio eléctrico que vida daria a todo o mecanismo.
            Na terra ao lado, uma estufa de framboesas.
            Estufas vira eu, muitas. O sábio aproveitamento de um clima ameno, sem que – alvitro eu – se menospreze o que nos identifica, as tais alfarrobeiras, figueiras, oliveiras e amendoeiras, cujos frutos deveria ser proibido deixar perder.

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 308, 20-07-2022, p. 13.

sexta-feira, 15 de julho de 2022

Os talentos

            Antes de partir, o senhor chamou os empregados e deu a cada uma porção de dinheiro, com a recomendação de que dele se servissem como achassem melhor.

Na parábola do Evangelho (Mateus 25, 14-30), especifica-se: deu talentos. O talento era a moeda de então, como o euro agora. Fazia parte do sistema monetário romano e torna-se hoje bem difícil ajuizar quanto poderia valer. Fica-se, porém, com a ideia de que o senhor da parábola não teria sido parco na oferta.
            Conhece-se a continuação da história: cada um fez como lhe pareceu melhor e, no regresso, o senhor premiou quem lograra obter maior rendimento.
            De talento, moeda, a palavra ganhou – porventura devido à parábola – o conceito de dote, capacidade específica que o animal detém logo à nascença: «Nasceu para…». Claro, de imediato nos ocorre «nasceu para ser feliz», o anseio de todos os humanos. Há, contudo, o lado concreto: nasceu para ser músico, atleta, professor, político…
            Acentua-se, por conseguinte, o dom natural, a propensão inata, sabendo-se, todavia, que esse dom pode vir a ser amarfanhado ou potenciado. A Psicologia aponta nitidamente para a potenciação, partindo do princípio de que, se há dotes adquiridos pós-nascença, eles só foram possíveis por haver para eles plataforma favorável.
            Não gosto do nome do programa Got Talent:
– 1º) porque, embora compreenda a obrigatória obediência ao paradigma criado pelo talentoso inglês Simon Cowell, se poderia ter salvaguardado, no contrato, a possibilidade de o baptizar com nome português;
– depois, porque got significa adquirido e, se é certo que o talento se aperfeiçoa, caso ele não esteja na matriz da pessoa, escusado será pensar que ela venha a ser… talentosa.
Compete a cada um – e primeiro aos pais e aos educadores – observar-se e observarem, a fim de se fazer a escolha acertada.
Se temos de prestar contas de como usámos os talentos? A parábola não admite excepções!
Não nasci para ser marceneiro; até o vulgar parafuso não fica bem à primeira! Há, porém, um talento que faço questão em potenciar. Único, excepcional, perecível, fugidio, difícil de agarrar: o tempo! 24 horas do dia, 60 m numa hora, 60 s num minuto! Considero-o o talento mais importante. E esse todos o temos! À nascença!

                                               José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 826, 15-07-2022, p. 12.  [Imagem de Vagda Campos]

Post-scriptum: Na época romana, o talento era uma moeda de conta, ou seja, nunca foi uma moeda física efectiva. Atribuía-se-lhe o peso de 27,300 gramas e valia 100 asses. Recorde-se que o denário (palavra donde deriva ‘dinheiro’) valia 10 asses.