segunda-feira, 20 de maio de 2024

O hífen e o travessão


            Contestei, em Agosto de 2012, a correcção que me fora feita num texto: haviam posto um hífen onde eu queria um travessão. Foi-me respondido que a revista, por ser editada por um organismo oficial, tinha de seguir as regras da NP 405-1 de 1994. Como perguntei junto de quem eu poderia protestar contra uma dessas regras que está errada, foi-me dito que «o protesto deverá ser enviado para o editor da norma, o Instituto Português de Qualidade, ou para a Biblioteca Nacional de Portugal». Da BNP não obtive resposta.

Não é fácil a escolha entre hífen e travessão e, por isso, nem sempre o algoritmo dos processadores de texto acerta. O normal é pôr hífen e tem de ser o escrevente a alterar quando há erro.
Na gramática, vêm explicados os casos em que o hífen se usa: por exemplo, «para indicar, no fim de linha, a divisão da sílaba», «para ligar os pronomes enclíticos às formas verbais» (lavo-me). Geralmente não se registam anomalias nesse uso por ser vulgar, o algoritmo foi bem programado; anote-se, todavia, que o novo acordo ortográfico suprimiu o seu uso «para ligar a preposição de às formas monossilábicas do presente do indicativo do verbo haver»: escreve-se agora hei de, hás de, há de, hão de.
O travessão, por seu turno, «serve não só para chamar a atenção para a palavra ou palavras que se seguem, mas ainda para, nos diálogos, indicar a mudança de interlocutor. Pode substituir o parêntesis.
E é aqui que amiúde se erra. Ora veja-se a frase: «O António – que é um excelente rapaz – telefonou-me». Neste caso, amiúde, o algoritmo não fecha o inciso com travessão mas com hífen e é preciso o autor estar bem atento para não deixar passar o lapso.
Uma regra simples pode ser esta:
– O hífen está sempre ligado à palavra, não se deixa espaço: ‘telefonou-me’;
– O travessão, ao invés, nos textos em português (em castelhano, é diferente), deve ter sempre espaço antes e depois.
Verifiquem-se dois aspectos, no que se acaba de ler: como se tratava de uma enumeração, usou-se no início o travessão; contudo, o algoritmo não mudou automaticamente do hífen para o travessão; tive de ir, no teclado, aos símbolos ou accionar ctrl + hífen para lograr pôr travessão.
Como dá muito ‘trabalho’ (!), o mais corrente é… que não se ligue importância a isso – e Deus seja louvado!

                                                                                               José d’Encarnação

Publicado no jornal Renascimento, de Mangualde, edição nº 865, 15-05-2024, p. 10.

 

 

Irás vencerás não morrerás

             A frase escolhida para título desta crónica tem uma história – real ou inventada – sobejamente conhecida.

           Atribuída a oráculo proferido pela pitonisa de Delfos, em resposta à consulta de um soldado (segundo uma versão) ou dos conselheiros de Alexandre-o-Grande (segundo outra), é amiúde citada para demonstrar o valor da vírgula.

           De facto, sem vírgulas a frase tem dois sentidos opostos, dependendo do sítio onde a vírgula se puser:
1)      Irás vencerás não, morrerás
2)      Irás vencerás, não morrerás
Dir-se-á que tudo isso é tão comezinho que não justifica nova crónica.
           Quiçá justifique, se atentarmos no desleixo generalizado que se verifica quanto ao uso da vírgula. Mesmo pessoas altamente instruídas caem, por exemplo, no erro de separar o sujeito do predicado por meio duma vírgula e não sabem quando é que depois do pronome relativo se deve – ou não – pôr vírgula.

           Por isso, merece pensar-se no uso da pontuação.

           Há regras. Importa aplicá-las na linguagem escrita, que se quer escorreita.

           Lembro-me que alguém desabafou: «Que chatice! Ele está sempre a pôr vírgulas!». Outro confidenciou-me: «Isso nos poemas a pontuação atrapalha tudo!». E um terceiro perguntava-me: «Leste o ‘Memorial do Convento’?».

           Respondo:
Aceito que o poeta não queira usar pontuação, como o pintor pode não dar título a um quadro. Ambos preferem dar liberdade: cada qual entenda como quiser. Acham que essa liberdade enriquece a obra. Aceito.

Uma coisa é, todavia, a linguagem escrita dum texto científico, normal, outra a linguagem literária. De facto, tanto Saramago como Lídia Jorge usam a pontuação para se aproximarem da linguagem oral. Nos seus livros, o ponto equivale a uma pausa na fala, mesmo que seja a meio da frase.

Em suma, não basta ter aprendido a escrever. Expressar-se por escrito exige prática, atenção e, sem dúvida, algum esforço. Não admira, por isso, que se esteja a recorrer cada vez mais aos emojis, que é como quem diz: «Interpreta à tua vontade! Mando-te um grande coração vermelho; interpreta ‘gosto’, ‘amo-te!’, ‘adoro-te!’, ‘gosto de ti!’ – como quiseres. Confesso, no entanto, que por palavras fica tudo muito mais explícito. E eu sempre prefiro um «adoro-te!» a um mero «gosto de ti!». O coração vermelho, ao ter tudo, acaba por nada ter. Fica-se na dúvida. E é chato!

 

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 330, 20-05-2024, p. 13.

 

Classificar? – Não!

           Há, com muita frequência, a ideia de que promover a classificação de um sítio ou monumento como de «interesse público» ou «de interesse nacional» ou, mesmo, como «monumento nacional» constitui a forma mais adequada e certeira de esse sítio ou edifício virem a ser, de facto, mais bem preservados e até venham a obter-se para o efeito, alguns desses fundos largamente publicitados e nem sempre aplicados (pensa-se!...) por não haver espírito de iniciativa.
            Errado!
            Primeiro, porque o caminho até à classificação é mais longo que a légua da Póvoa; depois, porque, classificação conseguida, mais longo ainda é o caminho para se lograr obter algum proveito.
Na verdade, importa não esquecer que as várias secções dum ministério – qualquer que ele seja! – estão atafulhadas de processos até ao tecto e as secretárias, se não estão vazias por falta de pessoal, têm lá um senhor ou uma senhora postados diante de uma rima de processos que não sabem por onde é que hão de começar!
            Depois, há a legislação! Decretos, portarias, despachos, complementos a despachos, decretos regulamentares… Alto, que ‘decretos regulamentares’ é o que menos há e, sem eles, as determinações do decreto correspondente não se conseguem concretizar. Uma floresta virgem ou um velho castelo cheio de alçapões e portas estreitas e portas disfarçadas em paredes…
            Conclusão: não caia na esparrela, não proponha a classificação de coisa nenhuma.
            Dou dois exemplos das centenas que poderiam aduzir-se e estou certo que cada um de nós é conhecedor de dois ou três casos.
Uma colega minha herdou um mosteiro; caiu na asneira de propor a sua classificação, na esperança de que o Estado corroboraria na sua preservação. Errou! Nem o Estado corrobora nem ela pode mexer uma palha sem colher pareceres e mais pareceres dos técnicos ministeriais. Sim, daqueles que têm a tal rima de processos à frente. E o mosteiro vai-se arruinando. E a minha colega a perder a esperança.
Em Cascais, também alguém sugeriu a classificação do parque envolvente do Museu Verdades de Faria. Conseguiu. Agora o que a Câmara não consegue é que o Ministério do Ambiente gize um plano (sim, têm que ser os técnicos do Ministério a gizar!) para acudir às muitas mazelas há anos ali acumuladas. O presidente da autarquia já ameaçou e ele é bem capaz disso: «Demoram? Eu arrisco!». Abençoado!

                                               José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 329, 20-04-2024, p. 13.

terça-feira, 7 de maio de 2024

As bicadas de Camilo

            Houve um sábio que escreveu: “Temo o homem dum só livro". Já se não sabe bem quem foi; a máxima não deixa, contudo, de ser válida, independentemente de quem a concebeu. Plasma a frase a convicção de que se tratará de alguém cabeçudo, avesso à pluralidade.
Gosto, porém, de pensar que tem cada um de nós um livro de cabeceira, de leitura frequente, ainda que não única.
Aconteceu-me que, ao dar uma vista de olhos pela estante, Noites de Lamego me chamou a atenção e decidi voltar a ler, agora, evidentemente, com olhos bem diferentes dos que eu tinha em Julho de 83.
          Interessaram-me, sobretudo, as bicadas de Camilo Castelo Branco. E de duas delas, de carácter político, ora se dá conta, ainda que sabendo ser A Queda dum Anjo, o suprassumo da sua sagacidade.
Sagrara-se vitorioso o Duque de Saldanha, arauto da Regeneração. E logo “todos os talentos e capacidades se identificaram com a regeneração; triunfaram em 1851 às ideias de 1846”. Gonçalves Basto, porém, que, no seu jornal, tanto apoiara o  “dadivoso duque”, foi esquecido pelas suas mãos-rotas, ele que até já fora cônsul em Vigo e condecorado na Ordem de Nossa Senhora de Vila Viçosa!
Do comendador Inácio José Leituga, do concelho de Cinfães, “pessoa abastada, bom vizinho e de mui sãos costumes e notória cristandade” conta Camilo que, após ter dobrado, em doze anos, a sua fortuna, “a consideração pública no seu concelho tocou o apogeu. Foi juiz ordinário em 1841, administrador em 1844, presidente da Câmara em 1845 […], foi comendador da Conceição em 1852 e eleito deputado […] em 1854”.
Nessa condição, acreditado “pela modéstia e sisudeza do silêncio”, “conseguiu empregar uns dezanove parentes que tinha em dezanove lugares. Virtude rara! Porque há deputados que fazem despachar dezanove parentes para trinta e oito lugares.”

Estava-se em meados do século XIX.

 

José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 864, 01-05-2024, p. 10.