sexta-feira, 24 de março de 2023

O jovem das canções de amor

            Aos 18 anos, todos estamos apaixonados e todos sonhamos com uma ideal pessoa amada, a cujos pés até nos prostraríamos em preito de vassalagem, tamanha a beleza que dela havia de irradiar. Estrela fulgurante, pôr-do-sol dolente, pétala perfumada, deusa de impecáveis contornos e terno olhar    

E, vai daí, se algum jeito há para pôr em palavras escritas tais líricos devaneios, escrevemos, escrevemos, metemos na gaveta, relemos e, um dia, é capaz de sair um livro de poemas. Sorte teremos se houver quem no-lo queira publicar – se até aos mais entrados nesse mundo dos amores e das letras amiúde (ou quase sempre) rotundamente à poesia as portas teimam em se fechar.
            Tal não aconteceu com o são-brasense José Dias Sancho. Mal entrara nos 18 aninhos e já vira publicado, em 1916, um dos seus primeiros livros, Canções de Amor, donde ressumbra, na verdade, esse juvenil e sonhador enleio:
«Sorri p’ra mim!... Não vês como eu te fito / Esp’rando a graça d’um teu doce olhar? / Minh’alma, n’um nirvana, de joelhos / Aqui está, junto a ti, p’ra te adorar».
            Terá sido difícil obter sorriso tão desejado; mas a estreita colaboração da Universidade do Algarve com a Câmara Municipal de S. Brás de Alportel fez que, mais de cem anos passados, desses românticos suspiros ora pudéssemos testemunhar.
            Duplo louvor, pois, cumpre dar: ao Município, por não ter querido deixar seus créditos por mãos alheias e diligenciou para que um dos seus lídimos poetas não fosse esquecido, paulatinamente publicando o seu legado; à Universidade do Algarve, na pessoa da doutora Sílvia Quinteiro, que, doutorada em Estudos Literários, na especialidade de Literatura Comparada, se disponibilizou para levar a bom termo o empreendimento.
           
            Canções de Amor e Outros Poemas é, pois, o IV volume da série que está a ser publicada pela Opera Omnia, de Braga, com supervisão da Doutora Sílvia Quinteiro, em colaboração com Maria José Marques e Ana Cláudia Silva. Não se publicaram aqui apenas os versos do livro Canções de Amor; as coordenadoras colheram textos em publicações periódicas regionais e nacionais e no-los apresentaram por ordem cronológica, de 1913 a 1930. Uma vez que José Dias Sancho faleceu a 10 de Janeiro de 1929 (ainda não completara 31 anos), os escritos datados de 1930 foram publicados postumamente. E assim com ele nos é dado agora conviver.

                                                         José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 316, 20-03-2023, p. 13. 

 

quinta-feira, 16 de março de 2023

Contemplar

             Naquela manhã, surpreendi-me. Abri a janela, a fim de, em acção de graças, saudar o alvorecer. Na altíssima araucária do jardim vizinho poisava um bando de rolas. Bem lá nos ramos do cimo, serenas, como que também elas agradeciam ter um poleiro assim, altaneiro e tranquilo, nesse dia sem uma aragem sequer.

Gosto de as contemplar, as araucárias. Há uma de cada lado, em jardins diferentes, como que a ladearem o meu ângulo de visão para o dorso verde-escuro da serra de Sintra. Aquela sensação de termos os pés em terra e a vista que se espraia e se eleva. No sossego da aurora, as luzes acabaram de apagar-se, os carros ainda não deram em mostrar-se sôfregos na pressa de quem nem tempo teve de saborear o pequeno-almoço e já se apoquenta com não chegar atrasado. Ainda não. A correria só daqui a minutos chegará.
Fui educado a ter, pela manhã de cada dia, esse tempo de contemplação interior, a projectar as horas seguintes; mas também a contemplação do exterior enriquece. Um olhar de ver, o sabor inusitado de nos sentarmos no corredor de uma grande superfície. O mundo à nossa volta e nós a saborear os momentos, a sentir a pulsação das veias, a dominar a respiração e, até, a dar caminho ao pensamento, não o deixando por i à rédea solta, que esse mundo traz mensagens a reter…
Os rostos, os trajos, as tatuagens. Saltam estas à vista no pouco ou no muito que os corpos deixam ver. Nos braços, nas pernas, nos peitos, em marota sedução, por vezes. A deixar-nos brejeiramente sonhadores: se é assim o que está à mostra… E, de repente, aquela recordação dos anos 60 e 70, as primeiras tatuagens, as dos soldados do Ultramar: «amor de mãe», «batalhão X», «Nambuangongo 1961»… Cada tatuagem, uma história, um desejo, uma mensagem. A mensagem que se pretende transmitir e a que os outros imaginam.
E as expressões faciais. Ali, um rosto descontraído e feliz; acolá, um carrancudo a carregar, qual Atlas gigante, o peso todo do mundo! O passo apressado ou de lazer. As roupas – sempre acredito que os senhores da moda jamais vão ter mãos a medir nem a imaginação alguma vez lhes dará tréguas. Para conforto de quem veste, para sadio entretenimento de quem pode ver. Na lembrança daquela frase à entrada do Alhambra: «Dai-me uma esmola, senhora! Que nada há mais triste no Mundo do que ser cego em Granada!».

José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 840, 15-03-2023, p. 10.

terça-feira, 7 de março de 2023

O letreiro invisível

            No capítulo «O adestramento do poder de observação», do seu livro A Arte de Estudar (Porto: Educação Nacional, 1943, p. 69) propõe Mário Gonçalves Viana a seguinte experiência:

            «Se por acaso alguém vos disser que acabou de ser apresentado a Fulano, com quem esteve a conversar toda a tarde, perguntai-lhe de chofre:
            – ¿ De que cor são os olhos desse indivíduo?
            – ¿ De que cor era o fato?
            – ¿ Que feições tem ele?
            – ¿ A gravata era de laço ou de nó?
            – ¿ Tem algum sinal particular no rosto?
            – ¿ Usa, na conversa, alguma palavra-parasita?
            – ¿ Qual é o seu gesto característico?
            Disparai esta e outras perguntas idênticas à pessoa que esteve toda a tarde com o referido Fulano, e, regra geral, ela ficará desolada, por não saber responder-vos a nenhum destes quesitos:
            – É curioso… Não reparei».
 
            Olha-se, mas não se vê.
            Em todas as ciências, quer nas ditas humanas e sociais, quer, sobretudo, nas experimentais, a atenção ao pormenor assume importância capital. Todas as grandes descobertas, sabe-se, se ficaram a dever à observação de algo que, até então, passara completamente despercebido.
            Sempre o Homem gostou de deixar rasto da sua passagem, por exemplo através de letras gravadas na pedra. Para que as lessem. «Amo-te pequenina» foi mensagem pintada a negro, bem à vista, num painel da estrada para Venda do Pinheiro; está lá, há anos; certamente a «pequenina» o terá lido – para consolo do seu louco amante.
            De facto, não basta escrever; importa que o destinatário leia o que se escreve. Por conseguinte, se se talham letras no mármore, urge fazer para que fiquem visíveis. Habitualmente, recorre-se à pintura, porque – ainda que gravadas em bisel com badame – só em especiais condições de iluminação  o claro-escuro funciona.
            Temos, pois, ideia de que muitas inscrições romanas, Para melhor se lerem, poderiam ter sido pintadas, embora, na actualidade, essa pintura se tenha totalmente perdido. Disso se procurou dar conta no Arquivo Epigráfico de Idanha-a-Velha, mostrando algumas inscrições pintadas (fig. 1).
Isso mesmo se vê nos cemitérios, de que, a título de curiosidade, pelo seu significado sociocultural, se apresenta um testemunho. Morreu um soldado em combate; isso se assinalou na fachada do jazigo de família; veio o 25 de Abril, essa morte deixou de ser ‘heróica’ e motivo de orgulho; repintou-se, por isso, o nome e deixou-se por pintar a causa da morte (fig. 2).

O letreiro invisível

            Sirvam estas reflexões para introduzir a história que o Doutor Carlos Fabião teve a gentileza de me contar.
            Enviou-me a fotografia (fig. 3), de um trecho marmóreo da entrada da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Nada de especial: a parede com placas rectangulares, mármore branco e rosado, como era de uso nas construções do Estado Novo.
            Fiquei deveras intrigado: que motivo teria levado Carlos Fabião a enviar-me estas imagens?
            Decidi-me, então, a usar um daqueles truques a que hoje se recorre para descobrir o oculto. E a surpresa surgiu! (Fig. 4).
            A intenção estava clara: milhares de pessoas têm passado por ali, ao longo de décadas. Quantas se terão apercebido da existência do letreiro?
 
EDIFICIO CONSTRUIDO
PELO
MINISTÉRIO
DAS
OBRAS PUBLICAS
1958

                                                    

      José d’Encarnação

Publicado  em Duas Linhas,1-03-2023: https://duaslinhas.pt/2023/03/o-letreiro-invisivel/

Fig. 1 - Inscrição romana, com letras pintadas agora.

Fig. 2 - Pintura selectiva

Fig. 3 - A parede nua

Fig. 4 - O letreiro invisível

quarta-feira, 1 de março de 2023

Com corda e tudo!

            De todos os que o Ti Zefo tinha no rebanho, era aquele que mais encantava o Chiquinho. Um cordeirinho que saltava, saltava, brincalhão. O Chiquinho fazia-lhe festas, festas, assim com olhos cobiçosos, quanto gostaria de o ter no seu quintal e de poder levá-lo a pastar! Só para ele. Que o Ti Zefo tinha uma porção deles e talvez não se importasse de lho dar. Podia até pedir aos pais que lho comprassem. Até já lhe dera um nome: o Saltitão!

Ti Zefo depressa percebeu o enleio e, numa tarde quentinha de Março, prometeu:
– Chiquinho, eu dou-te o Saltitão!
– A sério, Ti Zefo?
– A sério. Mas há uma condição: rezas o padre-nosso em voz alta, sem te distraíres um bocadinho.
E o Chiquinho começou logo:
– Pai nosso, que estais no Céu…
Ia aí no «pão nosso de cada dia», quando, de repente, se voltou para o Ti Zefo:
– Com corda e tudo, Ti Zefo?
– Sim, Chiquinho. Era com corda e tudo, se tivesses cumprido a condição: o padre-nosso até ao fim, sem distracção!...
Lembro-me diariamente desta história, ao abrir o correio electrónico. Não há dia nenhum em que o «assunto» da mensagem nada tenha a ver com o seu conteúdo; em que o corrector automático não tenha feito das suas, escrevendo uma estranha palavra, sem o remetente reparar; em que os erros ortográficos pululam… Tudo a denunciar pressa, vontade de despachar, uma distracção pegada! Como a do Chiquinho. Estava-se a fazer uma coisa e a pensar noutra.
Amiúde se diz «uma coisa de cada vez», «um dia de cada vez». Máximas sábias, essas! Como o letreiro das antigas passagens de nível: «ATENÇÃO!». É uma das poucas palavras alemãs que eu conheço: ACHTUNG!
Quando jovem, tive a sorte de ler, e sublinhar, o capítulo «Adestramento da atenção», d’A Arte de Estudar, de Mário Gonçalves Viana. Agora ancião, ainda o releio. Na consciência plena da anosognosia, o constante atropelo de ideias na cabeça. Tenho, por isso, papelitos por toda a casa: quando uma ideia surge, escrevo-a logo e volto ao que estava a fazer. Uma coisa de cada vez!

José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 839, 01-03-2023, p. 10.