terça-feira, 7 de março de 2023

O letreiro invisível

            No capítulo «O adestramento do poder de observação», do seu livro A Arte de Estudar (Porto: Educação Nacional, 1943, p. 69) propõe Mário Gonçalves Viana a seguinte experiência:

            «Se por acaso alguém vos disser que acabou de ser apresentado a Fulano, com quem esteve a conversar toda a tarde, perguntai-lhe de chofre:
            – ¿ De que cor são os olhos desse indivíduo?
            – ¿ De que cor era o fato?
            – ¿ Que feições tem ele?
            – ¿ A gravata era de laço ou de nó?
            – ¿ Tem algum sinal particular no rosto?
            – ¿ Usa, na conversa, alguma palavra-parasita?
            – ¿ Qual é o seu gesto característico?
            Disparai esta e outras perguntas idênticas à pessoa que esteve toda a tarde com o referido Fulano, e, regra geral, ela ficará desolada, por não saber responder-vos a nenhum destes quesitos:
            – É curioso… Não reparei».
 
            Olha-se, mas não se vê.
            Em todas as ciências, quer nas ditas humanas e sociais, quer, sobretudo, nas experimentais, a atenção ao pormenor assume importância capital. Todas as grandes descobertas, sabe-se, se ficaram a dever à observação de algo que, até então, passara completamente despercebido.
            Sempre o Homem gostou de deixar rasto da sua passagem, por exemplo através de letras gravadas na pedra. Para que as lessem. «Amo-te pequenina» foi mensagem pintada a negro, bem à vista, num painel da estrada para Venda do Pinheiro; está lá, há anos; certamente a «pequenina» o terá lido – para consolo do seu louco amante.
            De facto, não basta escrever; importa que o destinatário leia o que se escreve. Por conseguinte, se se talham letras no mármore, urge fazer para que fiquem visíveis. Habitualmente, recorre-se à pintura, porque – ainda que gravadas em bisel com badame – só em especiais condições de iluminação  o claro-escuro funciona.
            Temos, pois, ideia de que muitas inscrições romanas, Para melhor se lerem, poderiam ter sido pintadas, embora, na actualidade, essa pintura se tenha totalmente perdido. Disso se procurou dar conta no Arquivo Epigráfico de Idanha-a-Velha, mostrando algumas inscrições pintadas (fig. 1).
Isso mesmo se vê nos cemitérios, de que, a título de curiosidade, pelo seu significado sociocultural, se apresenta um testemunho. Morreu um soldado em combate; isso se assinalou na fachada do jazigo de família; veio o 25 de Abril, essa morte deixou de ser ‘heróica’ e motivo de orgulho; repintou-se, por isso, o nome e deixou-se por pintar a causa da morte (fig. 2).

O letreiro invisível

            Sirvam estas reflexões para introduzir a história que o Doutor Carlos Fabião teve a gentileza de me contar.
            Enviou-me a fotografia (fig. 3), de um trecho marmóreo da entrada da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Nada de especial: a parede com placas rectangulares, mármore branco e rosado, como era de uso nas construções do Estado Novo.
            Fiquei deveras intrigado: que motivo teria levado Carlos Fabião a enviar-me estas imagens?
            Decidi-me, então, a usar um daqueles truques a que hoje se recorre para descobrir o oculto. E a surpresa surgiu! (Fig. 4).
            A intenção estava clara: milhares de pessoas têm passado por ali, ao longo de décadas. Quantas se terão apercebido da existência do letreiro?
 
EDIFICIO CONSTRUIDO
PELO
MINISTÉRIO
DAS
OBRAS PUBLICAS
1958

                                                    

      José d’Encarnação

Publicado  em Duas Linhas,1-03-2023: https://duaslinhas.pt/2023/03/o-letreiro-invisivel/

Fig. 1 - Inscrição romana, com letras pintadas agora.

Fig. 2 - Pintura selectiva

Fig. 3 - A parede nua

Fig. 4 - O letreiro invisível

2 comentários:

  1. Reúno, de seguida, os comentários que diversos colegas tiveram a gentileza à publicação no 'Duas Linhas':
    Ramirez Sadaba, Jose Luis
    2 de março de 2023 07:21
    Muy ilustrativo, José

    pedro salvado
    2 de março de 2023 07:16
    É sempre um prazer. Bem haja, estimado Professor Amigo, por tudo o que nos ensina e delicia.

    Regina Anacleto
    2 de março de 2023 02:07
    Quantos “letreiros” estarão espalhados por aí, sumidos, sem se dar por eles?
    Políticos, amorosos, insultuosos, reclamos, propaganda…
    Seria interessante recolhê-los, pois parece-me que dariam um bom estudo sociológico, e não só.

    Cardim Ribeiro
    01/03/23 21:16
    Que coisa gira!
    Nem tu, nem eu, nem (quase) ninguém deu por isso ao longo dos anos - das décadas!!!

    maria helena coelho
    1 de março de 2023 20:02
    Só tu para escreveres isto!..
    És um verdadeiro Sherlock Holmes!...

    Eugenio Ramon Lujan Martinez
    1 de março de 2023
    Muy interesante.

    Alice Marques
    01/03/23 13:50
    Adorei. Mesmo. Quanta sensibilidade! Que saber olhar e ver!
    Habituado a ver letreiros invisíveis, só mesmo tu para desafiar o mármore onde é tão fácil ninguém ver nada.

    Maria Manuel Borges
    1 de março de 2023 16:51
    Gostei muito!

    cinzia vismara
    1 de março de 2023 16:47
    👍👏 Bravo!

    Armin Stylow
    1 de março de 2023 16:14
    ¡Genial!

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  2. Também lá estava o meu e bem extenso....

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