domingo, 20 de março de 2022

Uma luta sem tréguas!

            Embora esteja a redigir esta nota em plena guerra da Ucrânia, a minha luta não é essa, mas sim pela defesa da nossa identidade. Aliás, não é essa também a luta dos Ucranianos?
            Ele há invasores armados até aos dentes e há invasores sub-reptícios, a morder pela calada, a roubarem-nos, sem nós nos apercebermos, aquilo que nos pertence. Sim, tens razão, agrada-me saborear, nestes meados de Fevereiro, uma uvinhas pretas sem grainha. Vêm do Peru. Prometo também comer as nossas, quando vierem. E, se de mim dependesse, também insistiria em que, na nossa altura, se enviassem para o Peru as nossas uvas também. Boa contrapartida!
            O que me rala, confesso, é esta invasão sorrateira, mas maligna, de vocábulos e expressões que não são nossas. Certo: concordo que o inglês (e estamos a vê-lo, a todo o momento, nesta questão da guerra) se arvore em língua universal. Para que se entendam todos, está certo. Mas… eu prefiro acachapar-me aqui, que está um frio do camano ou do camandro, o dia está manhoso quê sê lá!, o bichano já deixou de fazer bilharetas e está para ali deitado, que nem um palheirão, de pêlo todo empeçado, como quem não tem palma para tamiças e nem lhe apetece fazer empreita. Nem já se bandeia de um lado para o outro, a pedir festas…
            Esse bichano tem história. Apareceu-nos aqui todo lampeiro, aprochegou-se como assalariado à pregunta de emprego e arranjou cá governo: o colo da minha avó! E que bem conservado que ele está!
            Mas agora observo que, na correnteza do palavreado, me saiu o vocábulo camano e também camandro. Sim, é palavra vulgar, dir-se-á; contudo, a sua raiz é erudita, pasme-se! Vem da expressão latina «quam magnus», «quão magno»! Camanho, camano, camandro são variações coloquiais com esse sentido de grandeza. «Frio do camano» é, pois, uma frialdade de alto lá com o charuto! Ora pois.

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 304, 20-03-2022, p. 13.

 

quinta-feira, 17 de março de 2022

A emoção foi rainha no Salão Preto e Prata

Contam-se por centenas as vezes que estive no Salão Preto e Prata do Casino Estoril para assistir aos mais variados espectáculos. Nenhum, porém, logrou ter a carga emotiva que por completo o envolveu no passado domingo, dia 13.
            O espectáculo solidário «Paz na Ucrânia» mereceu lotação quase completa, devido ao proselitismo dos rotários e seus amigos.
Coube, de facto, ao Rotary Club de Oeiras – que agregou a si os clubes da zona (Algés, Alfragide, Carnaxide, Cascais-Estoril, Parede-Carcavelos e Sintra) – a iniciativa, prontamente acolhida por uma série de entidades que decidiram estar presentes em palco: Clube de Carnaxide de Cultura e Desporto, Escola de Dança Eva Vieira de Almeida, Sítio Azul (Academia de Dança do Estoril),  Mais Música (Grupo Juvenil do Coro de Santo Amaro de Oeiras), Oeiras Dance Academy, ArteMove Escola de Dança, Lev’Arte, Mosaico Espiritual.
            Não será exagero afirmar que, se habitualmente interpretam bem as peças que escolheram para apresentar, os corpos de baile esmeraram-se, numa entusiástica atitude de quem sabe que, através da dança, das singulares coreografias, da sua entrega, se está a mostrar que a Paz é possível e que a Arte, em todas as suas múltiplas manifestações, pode eficazmente contribuir para a maior união entre os povos. Vimos danças bem variadas ao som de bem variados géneros musicais. E que bem que se dançou! E como o espectáculo se desenrolou sem pressas nem atropelos mas num ritmo pausado, como quem diz temos pressa de ver a Paz mas queremos tranquilamente fazer saborear os movimentos artísticos que mui gostosamente ensaiámos. Pela Arte vamos lá!
            Quase no final, a actuação do Coro dos Antigos Orfeonistas da Universidade de Coimbra (desta feita de capas caídas, em luto pelo presidente da Associação Académica que nessa tarde morrera em consequência dum acidente). José Afonso, Luiz Goes – por eles – estiveram connosco, na proclamação dos valores da Amizade e da Luta sem tréguas pela Liberdade: «Traz outro amigo também!», junta-te aos que sentimos a dor dos inocentes. Momento forte este, que as capas negras ainda mais robusteceram!
            
            Houve, todavia, quatro outros momentos que provocaram calorosos aplausos e não permitiram ignorar uma que outra lágrima furtiva que teimou em escorrer por muitas faces presentes: as «Estrelinhas», bonito nome dado a jovens, a meninos e a meninas da Escola Ucraniana do Estoril, envergando os seus vistosos e garridos trajos típicos, actuaram no princípio, mais duas vezes entre os conjuntos (como eloquentes páginas de separação entre os capítulos dum livro) e, apoteoticamente, no final! Uma alegria esfusiante, as cores amarelo e azul clara da bandeira voltejavam, o ritmo electrizava. Quanto não gostaríamos que fossem esses ritmos e não os das bombas nem o sinistro ronco dos aviões em voo rasante a ecoar por terras de Ucrânia! Quanto não gostaríamos! E os rostos suaves e miudinhos mereciam que essoutros sons destruidores num ápice desaparecessem. O quadro final, então, de bandeiras portuguesa e ucraniana a ondular numa prece (dir-se-ia!), calou bem fundo nos espectadores, arrancou fartos aplausos, um traiçoeiro nó se nos apertou na garganta! Em pleno século XXI, não pode ser! Não pode ser!
            Houve, após o espectáculo, as falas protocolares – dos organizadores, do Presidente da Câmara de Cascais, do representantes da Embaixada da Ucrânia… Agradecimentos, votos, anseios…
            E saímos, em silêncio. O autocolante que puséramos na lapela gritava PEACE, nessa língua ora universal em que, afinal, todos acabamos por nos entender. Só quem devia é que não se entende…
           Espectáculo rotário foi. Os fundos recolhidos reverteram integralmente para as vítimas da guerra, através do RI District 2232 da Ucrânia. E há que dar os parabéns aos organizadores porque um espectáculo desta envergadura foi montado em pouquíssimo tempo e correu muito bem, com um profissionalismo invejável! Que a necessidade e a urgência aguçaram o engenho!

            [Ilustrações gentilmente cedidas pelo Gabinete de Comunicação da Estoril-Sol e também retiradas da página do Facebook do Rotary Club de Oeiras].

                                                                       José d’Encarnação

 Publicado em Duas Linhas, 17 de Março de 2022: https://duaslinhas.pt/2022/03/a-emocao-foi-rainha-no-salao-preto-e-prata/

 

quarta-feira, 16 de março de 2022

A mensagem ameaçadora

                António viu que o senhor com quem cortara relações lhe tentara telefonar. Aliás, como não atendera, ele deixara-lhe mensagem de voz. António demorou a ouvi-la. Temia o pior. Chegou a pensar que a mulher do ex-amigo podia ter morrido e não saberia como actuar nesse caso, indeciso entre a amizade para com a mulher e as relações cortadas. Que lhe quereria? Coisa boa não era, decerto. Hesitou. Hesitou. E a ansiedade aumentava. Decidiu-se. Nada de anormal. Apenas uma ameaça: «Se continuar a enviar mensagens para a minha caixa de correio, eu processo-o!». António esquecera-se de excluir o ex-amigo da sua lista de informações. Excluiu-o de pronto e ficou de espírito aliviado
            Escreveu Joseph Murphy uma frase que amiúde me ocorre: «Viu um bocado de  corda, imaginou uma serpente, ficou transido de medo!».
            Acredito que tanto os que lutaram na guerra colonial como, agora, crianças, mulheres e até homens, que ouvem barulho anormal, de imediato imaginem sirene de alarme ou motor de avião inimigo! E reagem em consonância! O medo! O horror!.
              A missão, nossa e de todos à uma: a de reverter o raciocínio. Matar horrores! Plantar orquídeas no jardim do pensamento – é, ainda, o apelo de Joseph Murphy.
            Maria viu um ratinho no jardim. Entrou em pânico, pôs ratoeiras em tudo o que é sítio, quis logo avisar a respectiva divisão camarária para reclamar desinfestação no bairro. Passaram duas semanas, as ratoeiras ainda têm o isco de queijo e nunca mais se viu ratinho algum…
            O docente veio até ao corredor numa pausa dos exames orais. A aluna, uma senhora que ele conhecia bem, assídua às aulas, atenta, estava numa pilha. Conversaram um pouco e ela confessou os nervos. O exame foi daí a pouco. Era no tempo em que só havia uma telenovela brasileira; deu, pois, para o docente lhe perguntar se tinha visto o episódio do dia anterior; tinha; e foi esse o motivo da conversa. Uns dez minutos. «Pode ir sentar-se, Guilhermina!». «Mas, doutor» – retorquiu, assustada – «não me quer examinar?». «Já examinei!». E perante o seu espanto, explicou-lhe que, no meio da troca de impressões sobre a novela, ele fora metendo perguntas de comparação com a matéria da disciplina, a que ela, sem dar conta, por estar descontraída, prontamente respondera, e bem! 
                                                                 
                                            José d’Encarnação
 
Publicado em Renascimento [Mangualde] 818, 15-03-2022. p. 12.

terça-feira, 15 de março de 2022

À sombra da alfarrobeira!

            Nem sempre o tutor de bairro, em Cascais, tem apenas motivos para se queixar. Importa, aliás, em tempos conturbados, dar conta de que – lenta mas seguramente – até há benefícios de que importa usufruir. E dar a conhecer.
O Bairro da Pampilheira – de que já aqui se falou (por exemplo, na edição do dia 28, p. p.) ­– pode considerar-se privilegiado em termos de espaços verdes, ou seja, daquelas zonas aonde os vizinhos poderão ir passear, respirar e… deitar o coração ao largo.
Na sua zona ocidental, passa o Rio dos Mochos (esta, a designação popular) e houve o cuidado de limpar as suas margens, alindá-las de canteiros floridos, dotá-las de bancos e criar aí um circuito entre a Av. Raul Solnado e a Rua Gomes Leal. Um passeio a não esperdiçar e a permitir a partilha com a muita passarada que aproveita os altos pinheiros, os zambujeiros e as moitas para, inclusive, nidificar. Um nicho ecológico em boa hora devidamente salvaguardado.
Desse lado, Pampilheira ainda se prolonga para norte até à Rua Dr. António Manuel Costa Matos, ainda que à urbanização dessa rua haja sido dado o nome de Jardins de Birre. Birre é para noroeste. Nesse ângulo da Pampilheira existiram pedreiras, de que restam hoje, além das ruínas de duas serrações de pedra, os montes de terra que, ao longo de décadas, a exploração de pedra foi gerando. Já se pensou em aproveitar esse espaço para evocar essa actividade que, dos anos 40 a 70, trouxe enorme riqueza a Cascais. Por enquanto, todo esse espaço está… em repouso!
Na metade oriental da Pampilheira – onde ficam, nomeadamente, o Hospital CUF Cascais e o Centro de Distribuição Postal (ainda que venha ‘Cobre’ nos seus endereços oficiais, nem tudo pode ser perfeito…) – dois espaços atrás dos prédios da Rua Eça de Queiroz, onde se preservaram vetustos pinheiros, foram ajardinados e dotados de bancos, mesas, recipientes para lixo…
Junto à Cozinha com Alma, devido à movimentação dos moradores (recorde-se que, em tempos de António Capucho, aí se quis fazer uma escola de trânsito para a pequenada aprender as regras, a exemplo da Escola de Trânsito da Abóbada), nessa zona se conseguiu um parque infantil, dotado de minipista para as bicicletas da pequenada. Está muito bem.
Para sul, corre o Ribeiro do Cobre, que passa, pois, nas traseiras dos equipamentos colectivos para que se reservou essa área sudeste do bairro residencial: o referido hospital, o Centro de Inspecções, o Centro de Distribuição Postal, a Fábrica de Máscaras do município… É esse ribeiro que limita a Pampilheira do lugar do Cobre e do Bairro Santana. As suas margens estão habitualmente limpas; pelo leito correm, de vez em quando, líquidos que não são propriamente água das chuvas, mas o sítio é ameno, nicho de muita passarada também (há casais de periquitos africanos que por lá estacionam com frequência) e, porventura, um dia, igualmente poderá ser alvo de uma reconversão de lazer.
Há, contudo, um motivo de regozijo maior, determinante, aliás, destas considerações: é que o espaço, até não há muito tempo vago e sem préstimo, junto da Rua Fernão Lopes, entre as oficinas e os prédios, foi reabilitado. Primeiro, ali se criara mui oportuno parque de estacionamento gratuito; e agora, no espaço sobrante, fez-se o arranjo que as fotos documentam. Aplaude-se!
Talvez um que outro ponto de luz ali pudesse ter sido colocado; mas louve-se o desenho, a plantação de espécies autóctones com rega automática e, sobretudo, o realce dada às árvores aí existentes! Exacto! A mostrar que, afinal, em clima dito atlântico, temos vegetação mediterrânica aí! Mantiveram-se os carrascos, os olivões (nome que o povo dá aos oliveirões, as oliveiras bravas, não enxertadas) e… uma alfarrobeira! Quem diria? E é justamente sob ela que se colocaram dois dos bancos! Abençoados! Já no espaço arranjado a poente, por detrás da antiga padaria, se preservara uma figueira e um almecoqueiro!
Em suma: espaços para lazer não faltam (e até temos mais um, junto à Rotunda dos Bombeiros Voluntários, a espreitar os arranha-céus que do lado de lá vão crescendo…). Vamos é torcer para que não falte ânimo para deles, mui serenamente, usufruir!

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Duas Linhas,15-03-2022: https://duaslinhas.pt/2022/03/a-sombra-da-alfarrobeira/