quarta-feira, 2 de março de 2022

A propósito de O Suave Jugo, o mais recente livro de António Salvado

            Intrigante, a imagem da capa: Cristo com Sua coroa de espinhos? Homem pensativamente acabrunhado, sob esse «jugo» (qual?) ainda que proclamadamente «suave»?
Refiro-me ao mais recente livro de poemas do consagrado poeta albicastrense António Salvado, intitulado precisamente O Suave Jugo. Uma edição MCMN, apoiada pelo Município de Castelo Branco. Outubro de 2021. 56 páginas. Bem sugestivos desenhos a carvão de Miguel Elias, dramáticos na sua negridão e emaranhada textura.
Na I parte se recolhem poemas, que foram na sua maior parte lidos, explica o Autor, nos «Encuentros ‘Los Poetas y Dios’», realizados em Toral de los Gusmanes (Léon), em vários anos. Treze poemas, presididos pela imagem de Cristo em pose de flagelação.
Na II, elucida de novo o Autor (p. 23), estão incluídos poemas «dispersos por revistas portuguesas e espanholas» (muitos foram mesmo traduzidos em castelhano, embora aqui venha só a versão original), «e em horizonte temporal, no que se refere à sua publicação, muito largo». Abre-a uma triste flor de largas pétalas nuas. Na p. 42, Cristo carrega a cruz; na 44, está crucificado.
A III parte é um rei mago no seu camelo quem na abre. Mais poemas nascidos desses encontros dos poetas com Deus, que se me permita a alteração sintáctica.
Se o último poema do livro, pungente oração, consubstancia todo o sentir do Poeta não ousarei afirmá-lo, embora o pressinta. Todas as emoções, amarguras, confidências, soluços por que, ao longo do livro e do tempo e da vida, foi passando? Quiçá.
Primeiro, uma dúvida sua: se Deus se dará conta de que nele, Homem, se cruzam «o céu e a terra», que é como quem diz esse diálogo permanente entre a montanha e o vale, o subir e o rastejar.
Sente-se, afinal, remador, a cortar a força das águas para chegar aonde Ele existe «sem tempo» – e o Homem a carecer de tempo, qual borboleta que, fechada no casulo, espera o momento de o romper... Contudo, é também prisioneiro, a implorar libertação – «Olhos abertos mas sem nada verem, / passos cansados mas sem movimento…»), tendo a impressão de que, afinal, o seu Senhor está bem longe. Por ele suspira, alfim: «Antes do sal da morte, / Senhor, que eu chegue a Ti».
Perpassa por todo o livro esse arreigado misticismo, que busca arrimo em S. Juan de la Cruz, Santo António, S. Francisco, Santa Teresa de Ávila…
Publicado o livro num 3º trimestre do ano, aureolado de permanente ligação com o Divino, o Autor não poderia deixar de aludir ao Natal. E fá-lo com aquela maviosidade que do Menino promana («mãozinhas cheiinhas de ternura»), não sem, no poema «Endividam-se…» (p.14), pôr mesmo o dedo na ferida aberta por muitos Natais de artifício, no doloroso contraste entre o «jantar bem lauto e bem comido» e «o doce olhar da Mãe   enternecido / e o bafo d’animais p’r’ò aquecerem…». «Natal sem presépio» (p. 29) evoca os incêndios de Pedrógão Grande: «onde acolher-Te em tal destruição / […] p’ra que outra vez Tu possas renascer / na manjedoura que também ardeu?». Não esquecendo estoutra prece singela: «Rogo-Te: que a Tua mão / ponha fim à pandemia» (p. 31).
Lê-se de afogadilho este O Suave Jugo – que, afinal, não foi tão suave assim, nem o de Cristo e muito menos é o nosso! – na avidez de querer mais e chegar ao fim. Erra, porém, quem, ao terminar, ouse pôr-lhe um ponto final. Não há ponto final a pôr. Reticências talvez – a obrigarem a voltar atrás, aqui e além, naquele momento mágico antes do quotidiano adormecer.

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Reconquista [Castelo Branco] nº 3961, 10-02-2022, p. 31.

 

1 comentário:

  1. Uma recensão lindíssima a um livro que deve ser notável. Especialmente porque, acabada a leitura, apetece repescar momentos que apelam à reflexão. É isso que se espera da escrita literária, também. António Salvado é um Poeta muito querido, com uma vastíssima obra reconhecida em Portugal e fora do pais. Este belo texto deu-me vontade de conhecer mais este livro. Muito grata, José d´Encarnação.

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