quarta-feira, 16 de março de 2022

A mensagem ameaçadora

                António viu que o senhor com quem cortara relações lhe tentara telefonar. Aliás, como não atendera, ele deixara-lhe mensagem de voz. António demorou a ouvi-la. Temia o pior. Chegou a pensar que a mulher do ex-amigo podia ter morrido e não saberia como actuar nesse caso, indeciso entre a amizade para com a mulher e as relações cortadas. Que lhe quereria? Coisa boa não era, decerto. Hesitou. Hesitou. E a ansiedade aumentava. Decidiu-se. Nada de anormal. Apenas uma ameaça: «Se continuar a enviar mensagens para a minha caixa de correio, eu processo-o!». António esquecera-se de excluir o ex-amigo da sua lista de informações. Excluiu-o de pronto e ficou de espírito aliviado
            Escreveu Joseph Murphy uma frase que amiúde me ocorre: «Viu um bocado de  corda, imaginou uma serpente, ficou transido de medo!».
            Acredito que tanto os que lutaram na guerra colonial como, agora, crianças, mulheres e até homens, que ouvem barulho anormal, de imediato imaginem sirene de alarme ou motor de avião inimigo! E reagem em consonância! O medo! O horror!.
              A missão, nossa e de todos à uma: a de reverter o raciocínio. Matar horrores! Plantar orquídeas no jardim do pensamento – é, ainda, o apelo de Joseph Murphy.
            Maria viu um ratinho no jardim. Entrou em pânico, pôs ratoeiras em tudo o que é sítio, quis logo avisar a respectiva divisão camarária para reclamar desinfestação no bairro. Passaram duas semanas, as ratoeiras ainda têm o isco de queijo e nunca mais se viu ratinho algum…
            O docente veio até ao corredor numa pausa dos exames orais. A aluna, uma senhora que ele conhecia bem, assídua às aulas, atenta, estava numa pilha. Conversaram um pouco e ela confessou os nervos. O exame foi daí a pouco. Era no tempo em que só havia uma telenovela brasileira; deu, pois, para o docente lhe perguntar se tinha visto o episódio do dia anterior; tinha; e foi esse o motivo da conversa. Uns dez minutos. «Pode ir sentar-se, Guilhermina!». «Mas, doutor» – retorquiu, assustada – «não me quer examinar?». «Já examinei!». E perante o seu espanto, explicou-lhe que, no meio da troca de impressões sobre a novela, ele fora metendo perguntas de comparação com a matéria da disciplina, a que ela, sem dar conta, por estar descontraída, prontamente respondera, e bem! 
                                                                 
                                            José d’Encarnação
 
Publicado em Renascimento [Mangualde] 818, 15-03-2022. p. 12.

1 comentário:

  1. Também li e comentei este texto (lembro-me bem) de modo que acredito que haja por aqui um ciber-ratinho a roer alguma coisa...Em alguns casos duplica os comentários, quase de certeza para compensar.
    As três curtas histórias condensadas no texto, evocam outras e, mérito delas, sugerem-me retorno.
    Conheço algumas sequelas do medo incontrolado que não deixam viver plenamente e, por isso, impedem a recuperação de amizades. Grata estou até ao fim da vida a uma professora que aos 9 anos me ensinou que, se alguma coisa me parecesse estranha, procurasse sempre uma explicação plausível, porque ela havia de existir.
    Os ratinhos...Existiam na minha infância e comiam o queijo todo. A minha mãe adorava dormir a sesta no Verão. Na cave da casa, com paredes de pedra magnífica de Ançã, obrigava-me a fazê-lo junto dela, mas eu nunca tinha sono! Um dia lembrei-me de inventar que vira passar um ratinho por ali. O pavor que ela tinha dos bichos era tal, que se pôs de pé em cima da cama aos gritos, a pedir que me livrasse dele. E o rebuliço daquela tarde encerrou para sempre as sessões de sesta.
    Examinar alunos! O João Querido era amigo de uma pessoa de família, ambos professores. Tinha uma raiva a exames, que dizia bastarem as impressões de um ano inteiro para julgar um aluno. Mas havia as admissões aos liceus...Essa pessoa de família tinha a seu cargo um menino, irmão do namorado, que preparou para o liceu. O Querido mandou-a ir tomar café, esperou que o miúdo terminasse a prova e mandou-lhe fazer o rascunho de uma composição. A troco de chocolates, o sonso do rapaz leu aquele desastre à professora, quando ela chegou...
    Era tão feia, tão má a "redacção", que ela primeiro olhou o garoto com vontade de lhe dar um bofetão, depois desmaiou. Quando voltou a si e percebeu que era uma brincadeira, aplicou o estalo no rosto do João Querido. Peço desculpa pela extensão do comentário, mas a seriedade do humor do texto, trouxe isto tudo à ideia.

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