terça-feira, 1 de março de 2022

As desventuras de um tutor de bairro, em Cascais

           Aceitei de braços abertos o convite que me foi endereçado, em 2009, para ser tutor do bairro onde resido, a Pampilheira, pela empresa municipal Cascais Ambiente. Não esperava, todavia, que a minha missão viesse a ter tantos episódios mui interessantes de contar.
 
 O Bairro da Pampilheira
O núcleo inicial do bairro chama-se ainda hoje (mas só os mais antigos é que sabem) Barraca de Pau, porque a essa barraca se dirigiam os moradores dos lugares circunvizinhos quer para beberem um copo, buscar mercancia na taberna, na mercearia e na padaria ou, simplesmente, para conviver. A comunidade aí formada era constituída não apenas por saloios de raiz (poucos) mas sobretudo por gente dos Algarves e do Alentejo, que viera para o trabalho nas pedreiras ou nas quintas de pendor agrícola existentes.
            Nasceu o Bairro da Felicidade, cujo nome lembrava a mãe do Manuel Martins (o «Manel da Barraca»), falecido não há muito. O prédio era, e é, grande e mantém dependências agrícolas com alfaias, que, um dia, importará recuperar, entre as quais, uma das carroças dos anos 50.
            Sempre foi esse o meu ambiente desde pequeno e, por isso, ser tutor desse bairro era uma honra.
          Acontece, porém, que o bairro está na saída e entrada poente de Cascais e há, naturalmente, questões de trânsito – ou, como hoje se diz, de Mobilidade Urbana – que importa encarar com olhos de ver. Também para isso estão os moradores, mais do que os técnicos camarários, mormente os que se habituaram a estar nos gabinetes.
         Confesso, por tal motivo, manter um relacionamento difícil com a Divisão de Trânsito e Mobilidade da Câmara de Cascais. Não tive estudos nesse âmbito e rejo-me pelo que julgo ser o senso comum.
 
  1. O lugar para o frigorífico
            O primeiro embate – digamos assim – de que nunca mais me esqueci e já ocorreu há largos anos, aconteceu quando tive o privilégio de ser recebido pelo respectivo Chefe, que, por sinal, fora meu aluno nos Salesianos do Estoril. Ia contar-lhe o caso da Rua da Bela Vista, em Cascais, aonde então eu ia frequentemente e tinha dificuldade em arranjar lugar para estacionar e dei conta de que um vizinho morava num prédio com garagem e pintara no chão, a traços amarelos, um espaço teoricamente reservado para duas viaturas (ele só tinha uma). Aliás, na sequência, um outro morador, funcionário municipal e meu amigo de infância (andámos na escola juntos), lograra que, no prédio a seguir, onde morava, fossem colocados pilaretes, a fim de também aí se não estacionar. Achei que devia reclamar dos traços amarelos.
– Professor – retorquiu-me o Chefe – quando compra um frigorífico tem de saber previamente onde é que o vai colocar.
– Tens razão – concordei de pronto.
E vim-me embora.
Os traços amarelos continuam lá e o senhor já morreu.
 
  1. Placa à direita?
Da outra vez, o senhor vereador, perante a minha insistência, teve a gentileza de me vir buscar com o Chefe da Divisão, para eu lhe explicar onde é que me parecia dever pôr-se uma placa a identificar o Bairro da Pampilheira na Avenida Eng.º Adelino da Costa. Mostrei. Retorquiu o Chefe:
– Mas se puser a placa aqui, do lado direito de quem vai para norte, como é que se sabe que o bairro é também do lado esquerdo?
Pedi então ao Senhor Vereador que o motorista nos levasse até à rotunda que nós chamamos «de Birre». Fizemos inversão de  marcha, parámos e mostrei a placa que, do lado direito, diz CASCAIS.
– Cascais é daqui prá frente, tanto do lado direito como do esquerdo, não lhe parece?
E assim a ­– repetidamente solicitada – placa PAMPILHEIRA ainda não foi colocada na avenida. Meti ao barulho o presidente Judas, o presidente Capucho, o presidente da Junta… Nada! Placa não há!
 
  1. Pró hospital é por aqui?       
            Quando se sobe pela 3ª circular, pode haver alguma dúvida, à entrada para a A5 se, para ir para o hospital, se segue pela autoestrada ou não.
Sugeri que se pusesse aí placa a indicar a direcção correcta. Não fui atendido, por se ter considerado desnecessário.
É o que eu digo: não tenho estudos!
 
  1. E o Cobre é prá frente!
            Ao sair da autoestrada para Cascais, há, antes dessa «rotunda de Birre», uma placa que indica a direcção COBRE em frente. Para o Cobre, no entanto, ou se entra logo ali, na rotunda, à esquerda, ou não há mais placa nenhuma a indicar quando é que pode voltar-se para o Cobre. Não consegui ainda explicar (que raio de professor me saíste, ó Zé!) e uma das respostas que já recebi, por mais do que uma vez (porque eu sou do género ‘água mole em pedra dura…’), sempre nos mesmos termos, foi:
                              
«Na sequência de informação prestada pela Divisão de Trânsito e Mobilidade, após deslocação de técnico ao local,  verificou-se que a indicação de Cobre no painel direcional está correta. Indica uma das possibilidades de entrar na localidade do Cobre pela via distribuidora, a Av. Eng.º Adelino Amaro Costa, pelo que a mesma  não será alterada» (Refª E-DCID/2019/23023, email de 27/04/2020 16:15 h.).
Tenho esperança que, qualquer dia, um Senhor Presidente venha ver e tenha força para mudar a posição do nome (é só isso que basta fazer!!!).
  
  1. Os mais difíceis 90 graus!
            Consegui, com o incondicional apoio dos serviços camarários e o empenho pessoal do vereador Frederico Nunes, que, na empena altamente degradada dum edifício central do bairro, o pintor de renome internacional Rocket01 (o  nome artístico do inglês  Chris Butcher) pintasse o mural que faz as delícias dos residentes e dos muitos passantes. Sucede, todavia, que é negro o fundo escolhido pelo artista e, por tal motivo, o recanto formado no entroncamento das ruas Eça de Queiroz e Diogo do Couto se tornou mais sombrio à noite. Acresce que por aí – através de passagem deveras angusta – se vai aceder ao agora agradável recanto ajardinado que dá para a Rua Fernão Lopes.
            Pareceu-me – cá está o estuporado senso comum! – que seria fácil resolver essa obscuridade: bastava pedir à E-Redes que rodasse 90 graus a posição do candeeiro! Isso propus aos serviços camarários:
«Ocorrência nº: 2912838
Categoria: Ocorrências » Iluminação Pública » Avaria
Descrição: Tendo em conta a concretização do mural na empena do prédio de esquina entre as ruas Diogo do Couto e Eça de Queiroz, no Bairro da Pampilheira, solicito os bons ofícios dos respectivos serviços camarários para se solicitar à EDP a alteração de orientação do candeeiro de iluminação pública do poste que fica mesmo defronte do mural.
Trata-se de uma zona não muito iluminada e a orientação do candeeiro no sentido da Diogo do Couto (em vez de estar para a Eça de Queiroz) não só evitaria esse espaço de penumbra mas, sobretudo, acabaria por iluminar o painel agora concluído, o qual, mantendo-se a orientação em que o cadeeiro ora está, permanece na sombra, o que é acentuado pelo facto de ser negro o fundo do mural».
Asneira! Porque é que eu havia de falar do mural?
Por isso, cá veio a resposta (email de 24 de setembro de 2021 09:30 h, Ocorrência nº [#2912838]):
«No seguimento do seu contacto, que agradecemos, cumpre-nos informar que, de acordo com a Divisão de Obras de Vias e Infraestruturas, a luminária que se encontra orientada para a rua Eça de Queiroz não pode ser deslocada para a rua em questão».
Perdão, desta vez não foi a Divisão de Trânsito, tenho o azar de encontrar várias pela frente!
Retorqui (email desse mesmo dia às 10.39 h):
«Claro, para um leigo, mudar a posição de um candeeiro de uma para outra face do poste não se afigura tarefa complexa para a EDP; razões técnicas haverá, que muito me agradaria me fossem comunicadas».
Não tive, na altura, resposta às razões técnicas, mas vim a tê-las mais tarde (email de 16/11/21 12:20  h):
«No seguimento do seu contacto, que agradecemos, e após nova consulta ao departamento responsável, cumpre-nos informar que a função da iluminaria [sic] é iluminar a via pública, pelo que não se nos afigura correta [sic] alterar a posição da mesma a função da iluminação pública é iluminar a via pública e não as empenas ou fachadas dos edifícios».
Entretanto, o meu email de Setembro voltou a aparecer nos serviços, certamente por outra via; foi-lhe, pois, dada outra referência (E-DCID/2021/20900) e acabei por receber (email de 21/02/2022 11:21 h. – Ocorrência nº IOL-2912838) o seguinte:
«No seguimento do seu contacto, que agradecemos, cumpre-nos informar que de acordo com a Divisão de Obras de Vias e Infraestruturas, mantemos a informação prestada. A função da IP é iluminar a via pública e não as empenas ou fachadas dos edifícios».
Rendi-me. Da E-Redes, do Porto, disseram-me que nada podiam fazer, sem mandado expresso da Câmara. Perdi também esta batalha. Se Deus me der vida e saúde, não me apetece, todavia, perder a guerra, mesmo que o Senhor Presidente – que também foi meu aluno – não possa intervir. Sei que os chefes não duram sempre e, se Deus quiser, a gente ainda vai estar por cá mais uns tempinhos. Eu ou outro tutor! Oxalá!

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Duas Linhas, 28-02-2022: https://duaslinhas.pt/.../as-desventuras-de-um-tutor-de.../

5 comentários:

  1. O QUE DIREI EU,QUE VINTE ANOS SÃO PASSADOS, SEM QUE PRESTEM ATENÇÃO
    À CURVA DA RUA DO COBRE, QUE OS AUTOMOBILISTAS FAZEM COM A VELOCIDADE
    CONTROLADA PELO APETITE E NÃO TÊM MATADO GENTE POR MERA SORTE !!!
    AINDA O MÊS PASSADO VI UM INDIVÍDUO ESPALHADO DO CHÃO. ESCAPOU DO
    ÀVONTADE DE UM AUTOMOBILISTA POR MERA SORTE DELE!!! PÕEM OBSTÁCULOS
    DE REDUÇÃO DE VELOCIDADE EM TUDO QUANTO É RUA E ALI, APESAR DOS PROTESTOS,
    NADA FAZEM. ESTÃO À ESPERA DE ACIDENTE SÉRIO……… NEM SIMPLES PASSADEIRAS…

    Eduardo da Naia Marques

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  2. De: Elvira Bugalho
    1 de março de 2022 16:41

    Às tuas desventuras junto as minhas... a do jardim do Museu da Música Portuguesa...
    Porque se fazem jardins de raiz gastando rios de dinheiro e este, doado, que só precisa de pequenos arranjos, está quase abandonado, pois ninguém usufrui dele devido à displicência camarária, da Junta de Freguesia, do pelouro do Ambiente e, quiçá, da própria gestão do Jardim/Museu?

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  3. De: Teresa Pedrosa
    2 de março de 2022 11:23
    Como gosto e fico grata, por ler as suas tão assertivas notícias.
    Também concordo em absoluto com as suas tão reais observações, pois resido perto e constato muitas dessas faltas de informação e de atenção ao que nos rodeia.
    Também já tive vontade de ser Tutor de Bairro mas depois não avancei, pois vi que seria um trabalho Voluntário inglório e que muitas vezes me cansaria de remar contra a maré.
    O meu genro tem essa função e eu há anos que chamo a atenção para a colocação de um espelho num certo cruzamento desta Freguesia e, apesar do perigo do local, ninguém liga.
    Mas é muito bom que haja pessoas como o Sr.Professor, que não desiste de apresentar as suas sugestões e análises que muito beneficiam a Comunidade em que vivemos.
    Bem haja.

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  4. Isabel Maria
    Também me lembro da "barraca de pau", fui lá algumas vezes com o meu pai. Era ali, ou na taberna que existe ao lado do tanque de lavar a roupa, e havia outro café, a caminho de Cascais, do Cobre para Cascais, onde na cave se jogava a laranjinha!? Não sei bem se era este o nome do jogo, mas era tipo um campo em que arremessavam as bolas lá para dentro... o campo era mais baixo e tinha á volta sítio para as pessoas andarem... Eu tinha 5, 6 anos e os nomes não me lembro bem... Sai de lá com quase 7 anos... São recordações!

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    1. Olá, Isabel! Nas nossas recordações vagas de infância, há aspectos que permanecem e outros que ficam meio nublados. Teu pai frequentaria a taberna do Zé Martins, na Barraca de Pau, e também a do João Gordo, no Cobre, junto aos tanques. Creio que o outro café de que falas, do jogo da laranjinha (hoje, petanca ou, em italiano, as 'boccie'), seria à do Peixoto, a caminho já do Bairro Operário.

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