quinta-feira, 24 de abril de 2025

Maravilhar-se!

            Acabo de me aperceber que estou a usar, com bastante frequência, a exclamação «Maravilha!», em resposta a eloquente mensagem recebida que particularmente me agradou. E isso me leva a reflectir sobre a capacidade de nos maravilharmos, hoje cada vez mais embotada, porque tudo nos parece natural.
            É natural o melro querer fazer o ninho naquele ramo do pinheiro.
É natural os pardais virem, pipilando, aninhar-se nos buracos dos tijolos decorativos da minha varanda, mal o Sol começa a descer, e deles saírem, lestos, assim que alvorece.

É natural o jarro ter uma enorme corola branca e, dentro dela, bem visível, o sedutor filete amarelo, num apetite para as abelhas e outros insectos que, desta forma, alegremente também  contribuem para a polinização.
É natural, é natural…
           E pelo ‘natural’ nos ficamos, sem pensar na necessidade de efectivo retorno à capacidade de nos maravilharmos e de, pela maravilha, contagiarmos as nossas crianças.
         O psiquiatra Daniel Sampaio deixou esta frase no seu livro «Covid 19 – Relato de um Sobrevivente»:

«Esta simbiose da realidade com a imaginação, se não fora trágica nas presentes circunstâncias, pelo que de situação de delírio implicava, seria verdadeiramente sublime».

Sublime seria, advoga Daniel Sampaio, haver no dia a dia estreita simbiose entre a realidade e a imaginação.

À imaginação, à capacidade de sonhar, eu ousaria acrescentar agora à palavra ‘realidade’ uma terceira: a capacidade de melhor a apreciar, maravilhando-nos com tanto de espantoso há à nossa volta.

                                               José d’Encarnação

 Publicado no jornal Renascimento (Mangualde), nº 877, 20-04-2025, p. 10.

 

quinta-feira, 17 de abril de 2025

Os valados, património a não desprezar

             Dói-me o coração ao ir de Birre para a Areia, em Cascais, ao passear-me pelos terrenos a nordeste da Areia ou mesmo pelos campos a nordeste do Aeródromo de Tires.
            É que, aí, as propriedades ainda estão, em grande parte, divididas por muros de pedra solta, os valados, cuja importância nunca será de mais salientar. E temo que isso se vá perder!
            Primeiro, porque – a par dos moroiços, que são aqueles montes de pedra existentes nalguns terrenos de lavoura – constituem esses valados o sábio aproveitamentodas pedras que havia pelo terreno e que foram sendo recolhidas precisamente para fazer esses muros que delimitam as propriedades.
            Depois, porque representam a forma tradicional de delimitação e, como se comprova, pela sua durabilidade durante séculos, resistentes a chuvadas e, até, a tremores de terra, são mesmo funcionais e encerram invulgar beleza, dada a variedade dos seus componentes.
            Mormente no Alentejo, são esses valados e, de modo especial, os moroiços, muito benquistos pelos arqueólogos, dado que, amiúde, é neles – caso tenha sido por perto edificada uma villa romana – que acabam por se encontrar elementos arquitectónicos de relevo e, inclusive, pedras com inscrições. Uma mina!
            Além disso, a sabedoria dos camponeses não deixou os seus créditos por mãos alheias e, por isso, nunca foi descuidada a relevante função do valado na retensão de terras e, também, pela cuidadosa destruição do seu traçado (por exemplo, de uns com outros em forma de ziguezague, como, hoje, aqui e além, se faz nas passagens de peões urbanas[JE1] …), diminuem a velocidade das águas em caso de intensa chuvada, o que tem, complementarmente, a não menos relevante função de aumentarem a retenção da água no solo.
            Para mim, algarvio do Barrocal, criado na infância e na juventude pelos terrenos agrícolas desta Cascais ocidental – outrora agrícola e de matos e, hoje, a ceder, escandalosamente, à suicida tendência de se impermeabilizarem os solos (põe-te alerta, vila de Cascais, que, vinda do Norte, a enxurrada agora espreita!...) –, para mim, o valado é uma obra de arte. E muito me agradaria que arquitectos e paisagistas, ao delinearem as vedações das propriedades, se não importassem de manter valados existentes ou, na necessidade de outros construir, usassem as resistentes técnicas de antanho. O que eu regozijaria!

            Volto agora, por isso, ao Barrocal, onde docentes da Universidade do Algarve estão empenhados num projecto de preservação e reabilitação dos valados, inclusive chamando a atenção para as perspectivas turísticas que proporciona.

Do artigo «Renewing terraces anda drystone walls of Algarvian Barrocal, Cultural anda touristic values», em que preconizam a valorização e renovação dos valados no Barrocal algarvio, sublinhado o seu valor turístico e cultural, da autoria de Marta Marçal e Gonçalo Prates, a que se juntou Stefan Rosendahl (da Universidade Lusófona) – acessível em http://hdl.handle.net/10400.1/10342 –, transcrevo a seguinte bem elucidativa passagem:

            «No entanto, é precisamente este “pequeno” património que gera uma maior identificação com o lugar e com as raízes e a terra das pessoas. É o principal definidor do genius loci e da identidade cultural de cada comunidade.
Aparentemente, são elementos simples, sem grande importância, mas quando se começa a estudar e a investigar as técnicas, a localização, as suas características construtivas, e por que razão são assim, este património revela uma complexidade inerente, tanto no manuseamento como no desenho e na construção, que não seria de esperar num “património menor”.
No caso das construções em pedra solta – ou seja, pedras empilhadas sem qualquer tipo de aglutinante –, à primeira vista e para um observador menos atento, as pedras parecem dispostas ao acaso, seja nas paredes ou no território; no entanto, a permanência destas construções revela, por parte do construtor, um sentido de equilíbrio e uma arte na montagem da alvenaria que está longe de ser simples».

            Isso se tem verificado e importa, por conseguinte, preservar o que, mui sabiamente, os antepassados nos quiseram legar.

                                                                José d’Encarnação

Publicado em Duas Linhas, a 13 de Abril de 2025: https://duaslinhas.pt/2025/04/os-valados-patrimonio-a-nao-desprezar/


 [JE1]