Dói-me o
coração ao ir de Birre para a Areia, em Cascais, ao passear-me pelos terrenos a
nordeste da Areia ou mesmo pelos campos a nordeste do Aeródromo de Tires.
É que, aí,
as propriedades ainda estão, em grande parte, divididas por muros de pedra solta,
os valados, cuja importância nunca será de mais salientar. E temo que isso se
vá perder!
Primeiro,
porque – a par dos moroiços, que são aqueles montes de pedra existentes nalguns
terrenos de lavoura – constituem esses valados o sábio aproveitamentodas
pedras que havia pelo terreno e que foram sendo recolhidas precisamente para fazer
esses muros que delimitam as propriedades.
Depois,
porque representam a forma tradicional de delimitação e, como se comprova, pela
sua durabilidade durante séculos, resistentes a chuvadas e, até, a tremores de
terra, são mesmo funcionais e encerram invulgar beleza, dada a variedade dos
seus componentes.
Mormente no
Alentejo, são esses valados e, de modo especial, os moroiços, muito benquistos
pelos arqueólogos, dado que, amiúde, é neles – caso tenha sido por perto
edificada uma villa romana – que acabam por se encontrar elementos arquitectónicos
de relevo e, inclusive, pedras com inscrições. Uma mina!
Além disso,
a sabedoria dos camponeses não deixou os seus créditos por mãos alheias e, por
isso, nunca foi descuidada a relevante função do valado na retensão de terras
e, também, pela cuidadosa destruição do seu traçado (por exemplo, de uns com
outros em forma de ziguezague, como, hoje, aqui e além, se faz nas passagens de
peões
urbanas…),
diminuem a velocidade das águas em caso de intensa chuvada, o que tem, complementarmente,
a não menos relevante função de aumentarem a retenção da água no solo.
Para mim,
algarvio do Barrocal, criado na infância e na juventude pelos terrenos agrícolas
desta Cascais ocidental – outrora agrícola e de matos e, hoje, a ceder, escandalosamente,
à suicida tendência de se impermeabilizarem os solos (põe-te alerta, vila de
Cascais, que, vinda do Norte, a enxurrada agora espreita!...) –, para mim, o
valado é uma obra de arte. E muito me agradaria que arquitectos e paisagistas,
ao delinearem as vedações das propriedades, se não importassem de manter
valados existentes ou, na necessidade de outros construir, usassem as resistentes
técnicas de antanho. O que eu regozijaria!
Volto
agora, por isso, ao Barrocal, onde docentes da Universidade do Algarve estão
empenhados num projecto de preservação e reabilitação dos valados, inclusive chamando
a atenção para as perspectivas turísticas que proporciona.
Do artigo «Renewing terraces anda
drystone walls of Algarvian Barrocal, Cultural anda touristic values», em que
preconizam a valorização e renovação dos valados no Barrocal algarvio,
sublinhado o seu valor turístico e cultural, da autoria de Marta Marçal e
Gonçalo Prates, a que se juntou Stefan Rosendahl (da Universidade Lusófona) –
acessível em http://hdl.handle.net/10400.1/10342
–, transcrevo a seguinte bem elucidativa passagem:
«No
entanto, é precisamente este “pequeno” património que gera uma maior
identificação com o lugar e com as raízes e a terra das pessoas. É o principal
definidor do genius loci e da identidade cultural de cada comunidade.
Aparentemente, são elementos
simples, sem grande importância, mas quando se começa a estudar e a investigar
as técnicas, a localização, as suas características construtivas, e por que
razão são assim, este património revela uma complexidade inerente, tanto no
manuseamento como no desenho e na construção, que não seria de esperar num
“património menor”.
No caso das construções em pedra solta
– ou seja, pedras empilhadas sem qualquer tipo de aglutinante –, à primeira
vista e para um observador menos atento, as pedras parecem dispostas ao acaso,
seja nas paredes ou no território; no entanto, a permanência destas construções
revela, por parte do construtor, um sentido de equilíbrio e uma arte na
montagem da alvenaria que está longe de ser simples».
Isso se tem
verificado e importa, por conseguinte, preservar o que, mui sabiamente, os
antepassados nos quiseram legar.
José
d’Encarnação
Publicado em Duas Linhas, a
13 de Abril de 2025: https://duaslinhas.pt/2025/04/os-valados-patrimonio-a-nao-desprezar/