sexta-feira, 29 de outubro de 2021

O cacto

            Gorgoleja a fonte, indiferente ao intenso e apressado tráfego da rua, carros um atrás do outro. Na avenida, passa agora uma ambulância de sirene ligada a gritar urgências. Amena, a temperatura neste começo de tarde outonal. Tristonho, o hibisco não quer dar flores; enverdecem os cachos das hortênsias numa tristura do esplendor passado.
E, ontem, cacto, decidi visitar-te. Era uma visita adiada, desde que, do Rio de Janeiro, a amiga Norma me enviara a foto de um igual a ti, com amplas considerações elogiosas. Sabes que lhe repliquei na mesma moeda e lhe enviei fotografia tua, a garantir, orgulhoso, que também tinha. O dela viera, muito pequenino, do Arizona, em 2014. Tu nasceste aqui e confesso que já me não lembro onde te comprei.
Tens razão. Foi preciso a Norma me falar para eu me interessar por ti. Rego-te vagamente, água pouca, porque aprendi seres planta xerófita, que de muita água não carece e, perdoa-me, tenho dado mais atenção às bem cheirosas rosas e à beldade ímpar das orquídeas. Desculpa.
        Ontem, decidi penitenciar-me e fui ver-te mais de perto. Estás muito mais crescido e nada me disseste. Estão a despontar as tuas florinhas roxas, numa timidez, como que a pedirem licença para aparecer e fiquei encantado. Empoleirado no escadote, fiquei largos minutos a olhar para ti, para a tua modéstia e serenidade, para a tua vida sem alarde, e, de vez em quando, decides mostrar bonita flor, como que a sussurrar: "Eu estou aqui, não reparaste?". Não, desculpa, não reparara e tens razão que ando ocupado demais com o frenesim quotidiano e me esqueço de saborear a beleza derredor... Olha que também tu me saíste cá uma peça, como se dizia outrora! Porquê? – perguntas-me. Porque és um egoísta! Vestes-te de espinhos, assim te recatas de eventuais inimigos, mas só os usas para ti, em salvaguarda própria. Não os emprestas a ninguém e não ousas atirar alguns a quem mereceria umas picadelas valentes! Egoísta! Dêem-te umas gotas de água por semana e ficas regalado! Não vês quem precisa de uns piquinhos a preceito? Poderias pedir ao Criador que te desse a possibilidade de atirar, em tempo oportuno, umas frechadas, a doer!...
Percebo-te, porém. Abster-se de intervir é, amiúde, o melhor remédio. Como te compreendo! E acabo por gostar de ti, assim, como decidiste adornar o vaso singelo em que, há anos, não sei quantos, te coloquei. Em humilde serenidade, continuas a fazer-me companhia. Bem hajas!
 

José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 809, 01-11-2021, p. 12.

 

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Estavam no lixo e foram para o museu!

           Causou-me impressão. Depois de arrancadas portas e janelas, os funcionários entraram nas casas e foram-nas esvaziando dos pertences que os moradores lá haviam deixado. Tudo a monte para a rua ou logo para a camioneta. Ainda passei, tímido, junto dum dos montes; não ousei, porém, olhar com atenção; havia quadros; os móveis escangalhados… Depois, a máquina fez o resto, o derrube das paredes para tudo se reduzir a escombros
            Foi na semana de 18 de Outubro de 2021. No Bairro Operário José Luís, em Cascais. A 2ª fase de demolições, após os moradores terem sido realojados. Uma operação prevista. Causou-me impressão, como homem do património. Não pelas casas, não pelo recheio, mas pela eventualidade de algum desse recheio constituir memória. Não para os antigos moradores, que porventura nem disso se aperceberiam, mas para a memória colectiva. Impunha-se, quiçá, que um técnico do Património tivesse passado previamente pelas casas e as bisbilhotasse com olhos de… Património.
Tive pena.
E explico.
Primeiro: na maioria dos municípios se chegou à conclusão de que, amiúde, as famílias acabam por deitar fora fotografias antigas que já nada lhes dizem, até porque nelas há pessoas que nem sequer conheceram nem sabem quem são. Mas… e como é que estavam vestidas? Onde é que a fotografia foi tirada? Dados, esses e outros, que poderiam vir a ser úteis para a investigação histórica local.
Segundo: a estreiteza das casas tem levado a deitar fora livros, por exemplo. Felizmente, já começa a haver o cuidado de os pôr, mais ou menos bem acondicionados, junto ao contentor, a fim de poderem ser aproveitados por alguém. E quem diz livros diz loiças e outros haveres. O Eurico tem, nesse aspecto, olho de lince e livros em bom estado têm sido por nós distribuídos por bibliotecas de instituições que muito os apreciam. Sei, aliás, porque – como tutor de bairro – tenho essa obrigação, que há mesmo quem, sistematicamente (e nem sempre são os habituais ferros-velhos…), faça a ronda dos contentores, à cata de trastes aproveitáveis que outrem abandonou! Abençoados!
Estes, alguns dos livros salvos de um contentor!
            Terceiro: Toda esta conversa há-de parecer um tudo-nada estranha à maioria dos leitores. Pode ser. E também, porventura, a alguns responsáveis camarários. Importa, pois, que se passe ao terceiro ponto e se conte mais uma história. Então conto, porque uma das nossas ‘riquezas’, do Museu da Música Tradicional Portuguesa, é constituída pelos espólios legados: primeiro pelo próprio Mantero Belard, o lindo palacete da Avenida Sabóia, no Monte Estoril, depois por Lopes Graça e, mais recentemente, pelo maestro que entre nós criou, em gloriosos tempos (1993), a Nova Sinfonia Portuguesa, Álvaro Cassuto.
            E os papéis de Michel Giacometti? Sim, é verdade, também lá estão, porque, um dia, a Maria, ao sair de casa (morava perto da casa que fora do Michel), também lhe causou impressão ver tanto lixo por ali. Olhou melhor e deu o alerta! Eram os papéis do maestro que iam ser jogados fora!...
            Não foram. Estão no Museu Verdades de Faria.

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 339, 2021-10-27, p. 6.


 

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Era uma vez... um bairro operário!

            Começou, na segunda-feira, 18 de Outubro, a 2ª fase de demolição do Bairro Operário, na Pampilheira (Cascais). O fim há muito anunciado, e prestes a concretizar-se, do sonho de um visionário dos começos do século XX muito à frente do seu tempo, a fazer inveja a todos os ideólogos da integração social.

            O Bairro Operário José Luís (Monte Real) nasceu da benemerência do 1º Conde de Monte Real, Artur Porto de Melo e Faro (Rio de Janeiro, 18-8-1866 / Lisboa, 13-12-1945). O título nobiliárquico foi-lhe outorgado por el-rei D. Carlos por decreto de 21 de Outubro de 1907; aliás, a sua filantropia viria também a ser agraciada com a outorga da Grã-Cruz da Ordem de Benemerência, a 18 de Julho de 1938.

            Cascais muito lhe deve. Recorde-se que o aeroporto tem o seu nome por ter sido instalado em terrenos cedidos ao município. Faleceu ainda criança o seu filho José Luís Cardoso Pereira da Silva de Melo e Faro, o que lhe causou grande desgosto e motivou a criação da primeira creche na vila de Cascais, a Creche José Luís. Também por isso se designou «José Luís» o bairro por sua iniciativa inaugurado, a 12 de Março de 1933, em terrenos por ele doados – onde hoje se situa a parte oriental do Bairro da Pampilheira.

Uma obra muito adiante do seu tempo!

            Dir-se-á, antes de mais, para melhor se enquadrarem as demolições a que a Câmara ora lançou ombros, que, do projecto inicial (já lá vamos!) apenas se construíram quatro alas, num total de doze moradias.
A primeira ala, mais próxima da Av. Adelino Amaro da Costa, foi demolida há já alguns anos, depois de terem falecido os moradores. A Câmara transformou o espaço em parque de estacionamento, hoje gerido financeiramente pela Mobi Cascais. A quarta ala, oriental, de três moradias, junto ao Parque da Pampilheira, também ele gerido pela Mobi Cascais, estava desocupada há mais de um ano e é essa que ora está a ser demolida. Restam as duas alas interiores, de que apenas estão habitadas quatro casas.
Já houve ocasião de fazer referência a esse inovador projecto, de que se publicou síntese no livro Recantos de Cascais, de 2007, páginas 21 a 24. Daí se respigam, pois, os elementos mais significativos.
Assim, importa frisar que a execução do bairro ocupou lugar de destaque no relatório elaborado pelo Tenente António Rodrigues Cardoso, delegado em Cascais do Governo da Ditadura Militar, sobre as «obras e melhoramentos realizados pela Câmara Municipal até 31 de Dezembro de 1932. Datado de 1933, explicita o relatório nas suas 36 páginas que todas as casas estão dotadas de «dois pequenos quintais, água encanada e casa de banho devidamente apetrechada com W. C., tina e chuveiro».
Realce-se: a preocupação com a higiene e, por outro lado, a possibilidade de, nos quintais, haver pequeno horto e capoeiras. O projecto ficou a dever-se ao Arquitecto Jorge Segurado, da Repartição de Engenharia da Câmara.
          Há, porém, um aspecto a que nunca se terá dado a importância merecida, mormente se pensarmos que houve, há pouco, eleições autárquicas e, em relação aos bairros sociais, algo de semelhante está – agora! – a ser encarado. E o que é? Ora veja-se: estipulou-se então que as rendas seriam de 60 ou 80 escudos, «conforme os inquilinos desejarem ser ou não proprietários do prédio que habitem durante 20 anos»!
            As verbas assim conseguidas reverteriam a favor da creche atrás citada; o fundo de amortização reforçaria as dotações que «todos os anos a Câmara destinará a novas construções». Não destinou.

O que foi o empreendimento gorado

            O terreno doado pelo Conde abrangia o espaço que, a nascente da Avenida Amaro da Costa, vai, na actualidade, desde a Rotunda dos Bombeiros até à Rua do Cobre. Uma extensão da ordem dos 2160 metros de comprido por 100 de profundidade.
Previa-se a construção de cerca de 238 (duzentos e trinta e oito!) fogos e – pasme-se! – além de um amplo largo a meio, deveriam construir-se uma escola, duas lavandarias, dois parques infantis, o edifício das caldeiras, biblioteca e cooperativa.
Que se envergonhem os paladinos de agora! Sim, o projecto é de há cem anos, ostentando uma modernidade invejável e… só 12 (doze) fogos foram construídos! Esses que, pouco a pouco, mais não serão que mera recordação do sonho de um visionário.
Acrescentar-se-á que – não estudei o processo, mas deduzo que assim tenha sido – o Município se viu a braços com uma doação cativa de um projecto benemerente, obrigado, portanto, a cláusulas rígidas. Ou seja, não se poderia dar ao local um destino qualquer, sem que a tónica social estivesse presente, ainda que ao de leve.
Por isso, após grandes negociações (adivinha-se), a Câmara optou, na década de 50, pela figura de expropriação dos terrenos «por utilidade pública» e encarou a hipótese de uma urbanização que previsse, preferencialmente, serviços (instalaram-se no ângulo sudeste um estaleiro naval e uma grande oficina de metalomecânica), prédios de renda condicionada para inquilinos determinados, moradias de cooperativas de habitação.
A construção dessa parte oriental do Bairro da Pampilheira iniciou-se na década de 50. Os prédios foram arrendadas segundo a tarifa oficial (renda mensal de 1110 escudos). Deu-se prioridade a funcionários da Standard Eléctrica (fábrica de semicondutores inaugurada a 28 de Junho de 1968), das Finanças, da Câmara, das Conservatórias, do Tribunal (o prédio agora alindado com o mural pertence mesmo ao Ministério da Justiça), dos serviços públicos em geral. Uma área de prédios de rendimento e outra, dividida em lotes, para construção de moradias de dois pisos.
Na actualidade, essa tónica mantém-se. E se o amplo largo previsto no projecto do Arquitecto Jorge Segurado se não concretizou, o centro do bairro (digamos assim) é animado pelo comércio que se instalou no rés-do-chão de uma das alas de prédios de rendimento. Quanto ao destino do canto sudeste, em determinado momento pensado para albergar «indústrias limpas» (embora desactivado, o edifício do estaleiro naval mantém-se), está ocupado pelo Hospital CUF Cascais, por quatro oficinas de automóveis, pelo Centro de Inspecção Automóvel, pelo Centro de Distribuição Postal (e correspondente balcão de atendimento ao público), Fábrica de Malhas e Fábrica de Máscaras (pronta iniciativa camarária para fazer face à pandemia); mais perto do, ora moribundo, Bairro Operário, um restaurante oriental.

O futuro

            A 1ª fase de demolições ocorreu em Outubro de 2010. Em comunicado distribuído às redacções, no dia 8 desse mês, a Câmara anunciava:
«O espaço será agora limpo, prevendo-se num futuro próximo o seu aproveitamento  num projecto a ser desenvolvido pela Câmara Municipal».
Um documento do Gabinete de Estudos Urbanos / DUI, da Câmara, datado de Julho de 2004 sugerira uma ampla construção, cuja volumetria não vinha, porém, mencionada.

Em suma:

«Eu tive um sonho», proclamou o pastor Martin Luther King, a 28 de Agosto de 1963 – sonho cuja concretização não chegou a ver. Trinta anos antes, Artur Porto de Melo e Faro, 1º Conde de Monte Real, tivera estoutro – que também se não concretizou e cujos ‘restos’ agora recomeçaram o seu processo de extinção.
No que foi feito em seu lugar, houve cuidado em manter, ainda que ténue, a ideia de serviço público. Por conseguinte, como não poderia deixar de ser, aqui se recorda aos responsáveis autárquicos o que esse sonho e essa doação acarretavam de responsabilidade social. A ter indispensável primazia sobre visões economicistas, que desvirtuariam o necessário respeito por essoutro sonho de há um século!

                                               José d’Encarnação

Publicado em Duas Linhas, 21-10-2021: https://duaslinhas.pt/2021/10/era-uma-vez-um-bairro-social

Uma das alas construídas em 1933

Após a 1ª fase de demolições (Outubro de 2010)

A demolição da ala nascente (19-10-2021)

Altaneiros, eles espreitam!...

O estudo de 2004. A área do bairro é a tracejada.