sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Senhores, escravos e libertos numa cidade bem viva!


              Vimos, na edição de 13 de Agosto, que, um dia, escravos romanos de Pax Iulia honraram a sua senhora, Secunda, mandando fazer pedestal para que o seu rosto fosse publicamente lembrado – e ainda hoje, dois milénios passados, recordamos tão singular iniciativa. Décimo Júlio Saturnino homenageado foi também – imagine-se! – por todos os servos libertos da cidade!...

Um tipo de monumento singular

             Chamámos hermes ao monumento de Secunda. Se formos ao dicionário, encontraremos como significado dessa palavra: «Estátua de Mercúrio. Cabeça ou busto de divindade, sobre um pedestal ou pirâmide. Chama-se assim, em escultura, a um escabelo que tem representada uma cabeça de Mercúrio».
            Assim era, de facto, na sua origem. Esses monumentos erigiam-se nas estradas em honra de Mercúrio, deus dos viajantes, dos comerciantes. No panteão grego, o equivalente a Mercúrio fora Hermes – e daí adveio o nome.
            Raras são as individualidades, ainda hoje, dignas de ser perpetuadas com uma estátua ou mero busto sequer. Em Pax Iulia, até ao momento, hermes há dois: o de Secunda e este de que ora vamos falar.
         Antes, porém, importa sublinhar que, também neste domínio, Pax Iulia se singulariza no panorama das cidades lusitanas. Sim, a capital da província, Mérida, tem cinco hermes; Pax Iulia tem dois e mais nenhuma cidade lusitana tem algum. Nem Olisipo, a grande metrópole portuária, nem Scallabis (Santarém), que também exerceu funções de capitalidade!
Os historiadores Rafael Portillo, Pedro Rodríguez Oliva e Armin U. Stylow apresentaram, em 1985, o panorama dos hermes encontrados até então na Hispânia Romana. Ao todo, 26.  Esse número aumentou para 40, segundo Laura Galán Palomares deu a conhecer em 2019.
Em comentário ao que se escreveu sobre o hermes de Secunda, o Doutor Stylow esclareceu-me que a grande maioria dos hermes identificados nas províncias hispânicas da Bética e da Lusitânia pertencem ao culto doméstico do Génio ou da Juno do senhor (dominus) ou da domina, notando-se que, no conjunto deste tipo de monumentos achados na Hispânia, só no de Secunda está expresso o nome da homenageada após a menção da divindade, o que lhe confere um carácter ainda mais singular. Sublinhou que esses monumentos constituem «manifestação das relações de afecto e de lealdade que existem entre o dono e o seu escravo ou o patronus e o seu cliens. Acrescentou que «se desconhecem as circunstâncias e os possíveis objectivos dessas dedicatórias, dado o laconismo das fórmulas, mas pode suspeitar-se que se colocavam em momentos de importância para o receptor da homenagem, em cujo aniversário seguramente se adornariam os seus hermes com coroas neles penduradas».

A homenagem a Décimo Júlio Saturnino

            Transcreveu Abel Viana, no seu livro Museu Regional de Beja (1946, p. 5-6), a primeira notícia sobre o achamento desta epígrafe, em 1894, «nos entulhos do Palácio dos Infantes», notícia publicada por José Leite de Vasconcelos em 1896.
            De mármore de Trigaches, mede 49 cm de altura, 30 de largura e 22 de espessura. Guarda-se no Museu Regional, com o número de inventário B-30.

Lê-se o seguinte na sua face dianteira:

D IVLIO D F GAL / SATVRNINO / PVBLICI LIBERTI.

Inscrição latina que significa, após o desdobramento das siglas e abreviaturas:

 «A Décimo Júlio Saturnino, filho de Décimo, da tribo Galéria – os libertos públicos».

A superfície epigrafada já estava «bastante maltratada» aquando da descoberta; e se a interpretação de Décio, em vez de Décimo, feita por Leite de Vasconcelos, se deve aos não mui rigorosos conhecimentos de então, a hipótese de se ler PVBLICA LIBERTA causou perplexidade entre os epigrafistas e foi desfeita por mais acurada análise de pedra: é PVBLICI LIBERTI que lá está escrito. 

 

O significado da homenagem
            As monumentais estruturas arquitectónicas recentemente postas a descoberto na cidade – como Diário do Alentejo bem sublinhou na edição do dia 15 – denunciam uma magnificência e um estatuto que não é comum encontrar, mesmo em cidades habitualmente citadas como tendo sido importantes no tempo dos Romanos. Os fortes alicerces que sustentavam o fórum, isto é, a grande praça central da urbe, mostram uma imponência fora do comum – e os bejenses vão começar a sentir cada vez mais orgulho no seu esplendoroso passado.
Veja-se: a cidade tinha servos ao seu serviço! Servos que, um dia, por iniciativa dos magistrados ou a pedido da população ou porque esses servos foram amealhando pecúlio capaz de lhes comprar a liberdade… sim, esses servos lograram libertar-se!
E o que vemos nós no texto gravado no hermes de Saturnino? Libertados, quiçá por acção desse cidadão, reuniram-se e mandaram erguer-lhe um hermes! Mais: não tiveram vergonha em se identificar como publici liberti, «libertos públicos»!
Identificámos não há muito uma inscrição de Abelterium – a actual Alter do Chão – com que a familia urbana homenageou uma divindade. Ora, a familia urbana é exactamente o conjunto dos escravos da cidade! E isso mostra como, na verdade, o espírito inclusivo – de que na actualidade tanto se preconiza! –  não era novidade na Antiguidade. Novidade nenhuma!
Objectar-se-á: «Mas eles, os Romanos, não eram esclavagistas?». Por terem escravos? – pergunto. E tenho outra pergunta de imediato: «Poder-me-ão fazer o favor de olhar derredor?... Sim, agora, no primeiro quartel do magnificente século XXI! Que lhes parece nesse domínio dos… «escravos»?...
Décimo Júlio Saturnino foi um cidadão de Pax Iulia. Esteve inscrito, por isso, na tribuno Galéria, que era a da colónia criada por César. Teve origem livre, pois vem identificado com o nome do pai, por sinal Décimo como ele. Seguramente exerceu funções políticas e gozava de amplo prestígio social; contudo – e esse é um aspecto a sublinhar –  quem os servos públicos homenageiam não é o político, é o Homem que apenas pelo seu nome vem identificado! Sem menção de honrarias, títulos; sem adjectivos! O Homem!
Pertencia à família Júlia. Seguramente uma das mais numerosas então na colónia; pelo cognome, Saturnino, pode ele ou seus antepassados serem originários do Norte de África. Nada mais se sabe dele, ainda que se suspeite que o Décimo Júlio Saturnino, também ele filho de Décimo e da tribo Galéria, citado no rol de pessoas gravado numa placa rectangular de mármore do tipo Estremoz / Vila Viçosa, achado na Herdade da Amendoeira, nas Neves, possa ser o mesmo. Também aí, todavia, nada mais se diz a seu respeito.
E oiço uma vozinha sarcástica:
«Não achas que foi ele que incentivou os servos a fazerem isso?».
Poderia ter sido, na verdade – e estamos a raciocinar em termos de actualidade, é bem de ver!... Neste caso, porém, afigura-se-me que seria ousadia de mais, até porque, sendo libertos ‘públicos’, a homenagem terá, finalmente, envolvido todos os pacenses!

Publicado no Diário do Alentejo [Beja], 22-10-2021, p. 13.

Sem comentários:

Enviar um comentário