sexta-feira, 15 de outubro de 2021

O tabaco

            Recordo, amiúde, pela estranheza que me causou, a entrevista que, nos anos 90, tive ocasião de fazer a um ancião. É que, já não sei a que propósito, ele saiu-se-me com esta:
– Pois olhe para mim. Se ainda aqui estou, com esta idade, é porque fumei!
Franzi o sobrolho. Ecoaram na minha cabeça todas as vozes incessantes de vitupério contra o tabaco.
– Como assim? – perguntei.
– Eu explico. Na minha família quase toda a gente morreu com a pneumónica. Eu escapei. Disse-me o médico: «Porque o meu amigo fumava!». O fumo do tabaco matara o vírus! E aqui estou, são e salvo.
Percebi. Na verdade, em si, fumar não é um mal. Vício é deixar-se levar pela ânsia de fumar. No fundo, o que interessaria era combater o que leva a acender uns cigarros nos outros. A ansiedade atroz em que se nos vão os dias, sem que se pare, algures no meio da caminhada, para reflectir e tomar outra direcção.
Ocorreu-me esta conversa antiga, ao ler um dos trabalhos premiados nos XIII Jogos Florais da Junta de Freguesia de S. Domingos de Rana, onde o tema proposto era «Sustentabilidade». Já estremecêramos, os membros do júri, ao ler o Pensamento I de um concorrente de 14 anos:
 
                            Barulho
                            Um barulho forte
                            Ressoa no pátio da escola
                            O vento arrasta uma lata vazia 
 
O Pensamento II ainda mais nos seduziu:
 
                            A formiga
                            Acabou a diversão
                            Formigas trituram
                            Restos de cigarros.
 
Assim. Suave, mas forte, o murro no estômago! E, pelos carreiros, as formigas já não levam bagos de cevada ou trigo, pedacitos de pão, cascas de cereais… Tabaco!...
O mundo do que é mais pequeno a dar-nos lições!
E contava-me o Tomé, há dias, em Beja, quando mostrei a minha admiração pelas vastidões sem fim de oliveiras alinhadas, na empobrecedora agricultura intensiva:

           – Sabes? A gente vinha, à noite, de Castro Verde para Beja e chegávamos a casa com o para-brisas e os faróis cheios de cadáveres de insectos. Agora, nem um! Morreu tudo com os químicos. E vão morrer os pássaros que os não têm para alimento.

Tritura a formiga o tabaco, há uma lata vazia empurrada pelo vento e já não há insectos noite afora…

                                    José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 808, 15-10-2021, p. 12.

 

7 comentários:

  1. Eu, pecadora/fumadora me confesso...

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  2. O fumo do tabaco não mata vírus, mas aconchega-lhes os cobertores da cama, e funciona como broncoconstrictor e vadoconstritor, acidentes que nos encurtam a vida. - Varela Pires

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  3. Jorge Santos
    Também já não vejo andorinhas no beiral de minha nem empoleiradas nos fios de telefone, nem bandos de pardais no relvado e passeio de pedra e poucas abelhas nas uvas maduras e doces da minha ramada... Coisas do clima? Dos químicos?

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  4. Que belo texto, uma chamada de atenção para a mudança feita de muita desolação. Não há insectos, haverá poucos pássaros...E nós humanos, quanto mais viremos a sofrer com o uso excessivo dos químicos? Mas depois há o exemplo do idoso que fumava e que, por causa do tabaco, conseguira resistir à pneumónica. Dizia ele...Pena que o tabaco fumado excessivamente hoje em dia, não consiga combater as pragas que nos assolam. Muito grata pela partilha deste texto.

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  5. Não consigo convencer-me acerca da inevitabilidade das culturas intensivas por esse Alentejo fora e, lamentavelmente, não só... Mas cada vez estou mais convencido das mancomunações dos interesses que manipulam os governos e que nos desgovernam. Primeiro, aos insectos; depois, a nós. Até que reste apenas o barulho de uma lata vazia empurrada pelo vento. Grande abraço, caro Professor.

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