sábado, 18 de abril de 2020

Os vizinhos


            D. Lurdes morava paredes-meias com o professor.
            Quando se encontravam, era habitual o «Olá, vizinha, como vai?», «Olá, vizinho, bom dia!».
            Um dia, porém, o professor tomou posse como Presidente da República. Dias depois, ao reencontrá-lo, D. Lurdes ficou atrapalhada, porque não sabia como falar-lhe. O professor apercebeu-se da atrapalhação e saudou:
            – Olá, vizinha!
            E ela respondeu como dantes:
            – Olá, vizinho, como vai?
            E riram-se, num cumprimento amigável.
            A história é real, como facilmente se compreende.
            E conto-a em pleno auge da pandemia do coronavírus, quando imagino – como todos, decerto – que a História futura, caso a Humanidade consiga sobreviver, terá a partir de 2020 uma nova cronologia a. C. e d. C., em que o C. significará não Cristo mas Corona. Vamos, não há dúvida, alterar por completo o nosso paradigma de vida, dar muito menos importância a pormenores que ora vemos serem de nenhum interesse e dar muito maior importância a outros, como este da vizinhança.
            Um amigo meu, por sinal poeta com obra publicada, já com a provecta idade de mais de 80 anos, «desapareceu do mapa». Perguntei por ele aos vizinhos e amigos mais chegados, porque não atendia telefone nem telemóvel nem respondia ao correio electrónico. Sabia-se que ele tinha um filho, que por sinal nunca se vira. Perguntei na Junta de Freguesia com a qual ele amiúde colaborara. Ninguém sabe do senhor! Vagamente, que foi para um lar. Desconhece-se qual, desconhece-se o contacto do filho… E todos estamos com pena de não lhe poder falar, dar-lhe quiçá uma palavra de alento. Se calhar, até já faleceu e ninguém disse nada!
            No tempo dos Romanos, os habitantes de um «vicus», a aldeia, eram os «vicini», os vizinhos. De «vicus» veio «beco», passagem estreita. Não são becos as nossas aldeias e bairros, mas essa prístina ideia de proximidade deve continuar a prevalecer. Não apenas na saudação matinal «olá, vizinha!» mas no facto de termos de todos os vizinhos e eles terem de nós os necessários contactos, para mantermos estreitas as relações em tempo de… pandemias! E não só!

                                                                       José d’Encarnação
Publicado em Noticias de S. Braz [S. Brás de Alportel] nº 281, 20-04-2020, p. 15.

7 comentários:

  1. sempre com uma história na mão e mais algumas a pairar. bom dia, vizinho

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  2. Este texto é uma ternura, uma discreta exortação ao bom convívio entre vizinhos. Morreu uma amiga nossa, comum, há uns tempos, e só tive conhecimento por acaso...Não gostei. A vida tem sido isto: não conheço muito bem os meus vizinhos, embora nunca falte a saudação. Mas concordo, como tão bem se sugere aqui no texto, que terá que se inventar um novo paradigma de vida social para o d.c, que este malvado vírus não merece maiúscula que o confunda com outras datações mais nobres. Parabéns pelo belo artigo.

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    1. Concordo com a minúscula e agradeço o bem simpático e ternurento comentário!

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Olá Amigo Professor, Boa! Accho que é uma crónica deliciosa de se ler na situação declausura em q
    nos encontramos. Prcecisamos muito de vizinhos simpáticos, como porexemplo os teus vizinhos Maia e Costa e Marcelo!
    Abraço!
    vb

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  5. Olá! Mais uma vez, um texto muito saboroso para ler e refletir. Na pressa das grandes cidades, ninguém tem tempo para conhecer ou falar com vizinhos.
    Nas pequenas localidades, ainda nos vamos conhecendo todos, melhor ou pior.
    Pode ser que agora aprendamos todos a valorizar um sorriso, um bom dia ou uma conversa no café, nem que seja só a comentar o tempo.
    Beijinho

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