quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

As Pontes de Coimbra que se Afogaram no Rio

            Aceite para publicação pela secção da Região Centro da Ordem dos Engenheiros, este livro do Professor Jorge de Alarcão, fruto de longa maturação, não se confina à problemática técnica em que a construção, a vida e a destruição de uma ponte primordialmente faz pensar: cálculos de estruturas, localizações, cotas, aparelhos, dimensões… Seria, assim, obra para engenheiro miudamente estudar, ainda que a conotação histórica, do ao longo do tempo, tivesse de estar sempre presente. Não é. Ou melhor: também o é, forçosamente; mas, ao passarem-se estas folhas em A4 deitadas (em jeito de álbum), como num convite a andar, à medida que se avança, na leitura ou num simples folhear, com paragem aqui e além, a sensação que de imediato nos invade é de que, pelo rio e pelas pontes, depressa mergulhamos na História. A história de uma cidade que à beira-rio nasceu, cresceu e se foi transformando.
            Notícias se tinham de que a travessia poderia não ter sido sempre pelo mesmo local e que várias pontes houvera; contudo, o esmiuçar dessa história, comparando documentos gráficos e escritos, colhendo pormenores onde menos se esperava, ainda estava por fazer. E o que Jorge de Alarcão nos apresenta é, na verdade, o ressuscitar de todo esse viver coimbrão, embalado pelo murmurar do Mondego ora latente, ora impetuoso, ora regrado.
Uma prosa densa, bem alicerçada em documentação – como o devem ser as pontes – e brilhantemente servida pelas ilustrações que José Luís Madeira, eloquente e mui graciosamente, com todo o rigor soube interpretar, ‘humanizando-as’, inclusive, como no caso da fig. 33, em que ouvimos o tropear dos cavalos da caleche ou o bater metálico, descompassado e rouco dos chocalhos dos bois a puxar carro ajoujado, ou como na fig. 40, em que imaginamos almocreves e negócios na conversa... Aliás, logo a capa, com essa elegantíssima reprodução de uma iluminura da Crónica de D. João I, de Fernão Lopes, nos cativa: «Chegou el-rei a Coimbra e muita gente com ele e pousou nos paços de Santa Clara, junto com a ponte da cidade». E se este passo ora se transcreve é com o intuito de bem demonstrar, logo assim, que o Autor a todas as minudências – aparentes minudências… – não hesitou em lançar mão para ‘iluminar’ o caminho que, mui cautelosamente, se aventurou a singrar. E fez bem.
            111 páginas, profusamente ilustradas (são 52 as figuras, com legendas nas p. 105-107), ISBN 978-989-8152-08-4, adequado papel couché.
            Apresentação a cargo de Celestino Flórido Quaresma (da Ordem dos Engenheiros) e do Prof. Providência e Costa (de Engenharia Civil da FCTUC). Aí se identificam de imediato as pontes em análise: a romana, de barcas primeiro, quiçá, e de pedra depois, «que D. Afonso Henriques mandou restaurar (e que terá tido reconstruções parciais entre os séculos XII e XIV) e a manuelina, erguida em 1513» e que terá aproveitado alguns dos pilares da anterior. E se (afirma-se) «a ponte tem que respeitar, preservar e embelezar o rio que atravessa e o local onde se insere», também o seu estudo se há-de inserir nas vidas que rio e cidade sentiram palpitar; por isso, na Apresentação se acrescenta que este «é quase um tratado de história da Engenharia portuguesa», com os seus altos e baixos, no salutar cruzamento da «História com a Engenharia» e «da História da Arte com a Arquitectura, sem esquecer a Arqueologia».
            Na «nota introdutória» explicita o Autor, como é seu hábito, os objectivos que se fixou, o público que visou entusiasmar: «Escrevemo-lo para leitores que, sem habilitações académicas nessas áreas [História, Geografia, Ciências da Terra], se interessam pela história da cidade de Coimbra». É também por isso que trata em capítulo próprio a questão do assoreamento do rio, por requerer um olhar mais técnico, linguagem mais hermética e, por conseguinte, menos atraente.
            E os capítulos ficaram assim distribuídos: «Da ponte romana à ponte de D. Afonso Henriques» (p. 15-24); «A ponte de D. Manuel» (p. 25-53), com três subcapítulos (história documental, a fábrica da ponte e seus defeitos, remendos e remédios da ponte manuelina até 1632); «A torre da Portagem» (da página 54 à 68 onde se inclui bonita reconstituição, em graciosa aguarela – fig. 40 –, assinada, mais uma vez, pelo talento de José Luís Madeira); «O cais da cidade no século XVI» (p. 69-71); «O largo da Portagem» (p. 72-83); «O assoreamento do rio e as cotas das pontes» (p. 84-104). As referências bibliográficas vão da pág. 108 à 111 e por elas se verifica como o Autor também soube exemplarmente convocar para o trabalho os resultados da investigação sobre os diferentes períodos da história da cidade, levada a efeito pelos seus colegas, nomeadamente docentes da Faculdade de Letras.
            É, afinal, se calhar, uma Coimbra desconhecida que das pontes se vai enxergando séculos afora. Ficaremos a saber que, «na Idade Média, contribuir para obras em pontes era considerado obra de caridade ou devoção» (p. 19). Teremos por muito exemplar para a governação actual a preocupação de el-rei D. João II, em carta de 14 de Maio de 1488: «[…] Que vejais logo com bons oficiais a dita ponte e se veja com bom exame e diligência o que por orçamento haverá mister para, com a menos opressão do povo, se poder corrigir e remediar.» (p. 23, actualizei a grafia) – «Grande rei!» se exclamará! E haveremos de maliciosamente sorrir, quando soubermos que, algures no século XVI, um guardião do convento de S. Francisco, Frei João de Azevedo de seu nome, «não rezava o ofício divino, dizia apressuradamente a missa e com pouca devoção, jogava cartas de noite, no mosteiro, com pessoa secular, tinha mulher em Condeixa, com quem às vezes dormia em sua cela (para além de dormir com outras duas mulheres casadas» (p. 31). Compreenderemos, enfim, que, apesar de estarmos então em 1981, haja sido de muito lamentar que as obras levadas a efeito na zona da torre da portagem não tenham tido «acompanhamento arqueológico que registasse com rigor os dados», porque «o acompanhamento arqueológico de obras urbanas não era ainda de regra em Coimbra e o sítio dos achados (o de maior trânsito da cidade) não se compadecia com trabalhos prolongados» (p. 67), e se algo se logrou registar foi porque o Autor, de passagem, solicitou a «um técnico da Direcção Regional dos Serviços Hidráulicos que acompanhava a obra» lhe fizesse um esboço das «estruturas então redescobertas» (fig. 34, p. 62).
            Apesar da anunciada aridez dos dados técnicos, dir-se-á, porém, que Jorge de Alarcão sabe burilar a linguagem de forma a tornar aliciante até essa aridez. E sublinhe-se – porque é cada vez mais de aplaudir, nos tempos que correm, em que facilmente se descura a revisão… – que não encontrámos gralhas nem vírgulas fora do sítio. E o ‘salto’ na tradução do passo da Chronica Gothorum (p. 18) é mácula imperceptível que mais realça ainda a extrema correcção de todo o conjunto: As Pontes de Coimbra que se Afogaram no Rio, um livro exemplar!

                                               
Publicado no Cyberjornal, edição de 12-02-2013:
Divulgado através da archport, a 13-02-2013:
Acessível também em: http://hdl.handle.net/10316/21644

           

1 comentário:

  1. Este também roubei; contudo, vale tanto a pena cometer estes delitos...
    António Tavares

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