terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Dar notas

            Passei minha vida a dar notas. Estabelecia critérios, era de 0 a 20 e sempre me habituei a usar a escala toda, há alunos a quem dei 20 e outros a quem dei 0. Entre 0 e 20, uma infinidade de tons, porque me ensinaram que não somos todos iguais e há que premiar quem trabalha e chamar a atenção de quem precisa de se esforçar mais um bocadinho.

Admiro as corridas de Fórmula Um. Não apenas porque tive oportunidade de vibrar com algumas no Autódromo do Estoril – ai aquele Ayrton Senna de mui saudosa memória!... – mas, sobretudo, porque o primeiro lugar na grelha de partida é decidido às centésimas de segundo. Sei eu lá o que é uma centésima de segundo! O certo é que se sabe e, para ter unhas a fim de tocar nessa guitarra, há que treinar, treinar, treinar e obedecer a rigorosas regras, inclusive de alimentação e de comportamento.
Não seria, pois, difícil de perceber que regras idênticas se deviam aplicar no dia-a-dia. Mas não, não se percebe. Instituiu-se no funcionalismo público o sistema de avaliações. Falo do português. Decerto em todos os países se passa da mesma forma, porque quando um faz uma coisa os outros vêm logo atrás e copiam… Se tens a nota máxima, podes subir na escala. Hoje até isso não existe, porque desistiram de deixar subir. Se não tens ou andas assim assim, ficas aí, amochas. Claro, toda a gente passou a ter a nota máxima. Um dia, àquele funcionário que não fazia a ponta dum corno e que eu passara o ano a incentivá-lo e nada, quis dar-lhe a nota que me pareceu justa, até para ver se o espicaçava mais. Não me deixaram, porque assim, coitadinho, ia cair o Carmo e a Trindade! Não caiu. E o senhor lá continuou na mesma.
            Disse-se dos critérios. A gente sabe quais são e adapta-se. Albarda-se o burro à vontade do dono, mesmo quando se reconhece asneira pegada. O dono quer assim, assim se faz. E o dono quer, porque do estrangeiro lhe disseram que era assim – e o que percebem os estrangeiros de como se põe bem a albarda ao burro, se eles nem burros têm? Mas peroram, ou seja, ditam leis. Assim, no âmbito académico universitário, para avaliar os docentes. Regras: tens de escrever em inglês; deves escrever muitas páginas; só podes publicar em revistas com todos os rr e ss, internacionalmente reconhecidas... «Mas eu gosto é de escrever numa revista local ou num jornal regional, para divulgar cultura!». «Poder podes, mas para currículo, menino, isso de nada te serve. Esquece!».

                                                           José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 816, 15-02-2022, p. 12.

2 comentários:

  1. É para poder ser livre de escrever coisas sérias que daqui a 7 meses "bato com a porta", mando os "Senhores do Saber" às malvas ( em sentido figurado, porque sou contra a pena de morte) e já poderei escrever cientificamente...e em português de Portugal, para portugueses e os outros se quiserem que traduzam! Abraço, Grande Zd'E.

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  2. Passei 44 anos da vida como professora. A questionar sempre como podia distinguir um 10 de um 11. Abracei com esperança, a reformadora passagem da escala dos 0-20 os níveis1-5, substitui números por extensos comentários nos testes, trabalhos, etc, para na hora das "notas, ser obrigada a converter comentários em números...
    Livrei me disso há 2 anos! Bem hajas Zé, por te lembrares de mim como boa aluna mas não teres ideia da nota que me deste! Eu tb não me lembro e essa é uma falha de memória que não lamento.

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