sexta-feira, 31 de julho de 2020

Chamar nomes

          Considerei a expressão «chamar nomes». Usamo-la com frequência, mas só agora é que atentei no seu real significado pejorativo. É que esses «nomes» em questão se enquadram no rol dos nomes… feios!
            E, por isso, como ora, em vez de «O Venturoso», «O de Boa Memória», «O Príncipe Perfeito» se prefere «esclavagista», «racista» e quejandos, lembrei-me da importância do nome. E vi a bruxa que, em tempos, se aboletara a fim de massacrar um inimigo: escrevera o nome dele a letras de sangue na almofada e, de agulha em punho, picava-o sem cessar, em transe, de rezas satânicas ciciadas… Massacrado o nome, destruía-se a peçonha e o alacrau não voltaria a ser o mesmo!
Damnatio memoriae
            «Nada há de novo sob o Sol», proclamava o «Eclesiastes» (1, 9), sábio livro do Antigo Testamento. Pois não. Já os Romanos praticavam a «damnatio memoriae», a «condenação da memória». Quando um imperador ou um alto funcionário caía em desgraça, se, porventura, estátua lhe fora erigida ou inscrição gravada para eternamente perdurar, vinha o canteiro de picão em punho e, em raiva, martelava miudamente as letras do nome banido, para que dele traço não restasse. Busílis, hoje, como se calcula, para os epigrafistas, que temos de descobrir, por entre as falhas superficiais, aquele rasgo elucidativo a permitir a reconstituição da História.
            Pois. «Nada de novo sob o Sol», nem mesmo nesse jeito de se atribuírem os feitos – bons ou maus – a uma pessoa, sem ter em conta o contexto em que viveram. Foi lá o D. Afonso Henriques quem conquistou Lisboa? Foi o treinador quem perdeu o jogo? Enfim, o que importa é facilitar e, para o mal, como o povo hebraico (e lá voltamos nós à Bíblia!...), encontrar um bode expiatório, que carregue todos os pecados!... Aguenta-te, ó bode!
            O nome, que nos individualiza. «Quero nomes, ouviste?» – e a polícia política tudo fazia para os extorquir. «Quero nomes já!...». E mais um pontapé!...
            Voltemos, então, aos Romanos. Deixaram-nos, por exemplo, as inscrições onde quiseram perpetuar a memória. E enquanto nós, eventualmente por decoro ou para simplificar, mandamos gravar no epitáfio uma frase comum «eterna saudade de seu marido e filhos», os Romanos não estavam com meias-medidas e ordenavam que se gravasse também o nome do encomendante: «Júlia Amena, a expensas suas, mandou fazer». Decerto a ideia seria que também ela, a Amena, um dia iria ser sepultada com o marido. E, assim, antecipava-se.
            Para nós, epigrafistas, esta forma de a pessoa se identificar na pedra assume importância capital, porque desta forma se denuncia o estatuto social: se escravo, se liberto, se cidadão romano e donde, se pertencente à ordem equestre ou senatorial. Quando subiu ao trono, o imperador Augusto decidiu como é que se havia de chamar oficialmente. Um cardeal, quando eleito papa, escolhe o nome que detém para ele um significado maior.
            Não resisto ainda, nesta ordem de ideias, a falar da – como é que se diz? – categoria profissional. Não é bem isso, mas serve. No Brasil, toda a gente é doutor; em Coimbra, também. Quem sai licenciado do Técnico, tem de ser engenheiro. Quando assinei o primeiro ofício após o doutoramento, pespeguei ‘doutor’ com todas as letras por baixo da assinatura. Houve logo alguém que lhe plantou um ponto de exclamação. E eu aprendi. Daí prá frente é sempre só o nome e… pronto!   
           
                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 324, 2020-07-29, p. 6.

4 comentários:

  1. A propósito de idiomatismos e de contexto cultural, deixo-lhe o desabafo de alguém (ouvido em contexto profissional): “Se eu chamar nomes a alguém, tudo bem. Se chamar preto, é racismo”

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  2. Este texto é delicioso. Depois de o pensador, historiador, epigrafista tecer considerações sábias à volta da importância dos nomes, ontem e hoje, termina esta viagem com uma nota de humor que prova a forma simpática e acessível como se apresenta, apesar do imenso valor.

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  3. Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

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  4. De: Adelaide Chichorro Ferreirasegunda-feira, 3 de Agosto de 2020 00:18

    Relativamente a essa matéria, lembro-me dum ano letivo em que andei às voltas com a ideia de esquecimento, tentando descodificar a palavra alemã para isso, com base num livro dum autor alemão (H. Weinrich, Lethe), cujo início dei a ler aos meus alunos. Acho que foi lá que li sobre essa coisa de a areia à beira-mar ser símbolo disso mesmo. Se quisermos chamar nomes muito feios a alguém, sugiro que o façamos de manhãzinha cedo, escrevendo-os com um pau, na areia húmida, num passeio solitário. As ondas virão e desses impropérios não ficará rasto nenhum. Condiz com a nossa brandura de costumes e alivia a alma...

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